quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha

(CONTÉM SPOILERS)

Documentário "true crime" da Netflix sobre o assassinato de uma mãe grávida e suas 2 filhas pequenas que ocorreu em 2018 no Colorado. Toda a história é contada através de câmeras de segurança, vídeos de redes sociais, câmeras acopladas a uniformes de policiais (as "bodycams" que têm sido usadas nos EUA pra combater a violência policial), o que dá um ar moderno e inovador pro documentário, que jamais poderia ter sido feito dessa forma até há poucos anos. Há material o suficiente pra contar a história, mas ainda senti falta de depoimentos, narração, material gravado especialmente para o documentário — acho que esse tipo de restrição estética (assim como found-footage ou filmes que se propõem a mostrar apenas a tela do computador) acaba servindo mais como um gimmick do que como algo que enriquece a experiência. Mas a história é tão chocante que no fim isso não diminuiu em nada meu envolvimento.

Talvez o que tenha mais me marcado nessa tragédia seja a ilustração do quão destrutivas são relações baseadas em altruísmo e em certos valores religiosos. Embora esse seja um caso extremo, a dinâmica psicológica entre o casal é assustadoramente comum e reflete inúmeros relacionamentos que observamos por aí: a dinâmica doentia entre a pessoa que quer sair da relação, que não deseja mais dar amor, mas se sente no dever moral de permanecer, de continuar se doando, e a outra que percebe claramente que o outro quer sair da relação, mas finge não ver, e reforça o sentimento de pena e de dever moral para tentar prendê-lo, e se enganar que isso é o equivalente a ter seu amor. Embora o marido seja o único psicopata aqui, e a esposa obviamente não possa ser culpada em nada pela própria morte, pelo menos no que diz respeito ao relacionamento ela parece sim ter contribuído para sua deterioração. Ambos parecem ter sido irresponsáveis enquanto parceiros, de uma maneira que infelizmente é muito comum na raça humana. Se o marido não fosse dominado por sentimentos de dever, altruísmo, se ele respeitasse a própria felicidade, no momento em que ele percebesse que a relação não tinha mais futuro, ele teria parado de ter filhos, de assumir novos compromissos, teria tido uma conversa franca com a esposa, e se separado dela da maneira menos dolorosa possível. A esposa, por outro lado, se fosse independente e tivesse respeito próprio o bastante, não iria considerar ficar com alguém que não está genuinamente interessado nela. Em vez de reforçar o senso de culpa, teria deixado claro para o marido que ela preferiria se divorciar a manter um casamento infeliz a qualquer custo. Mas não... Ela não parecia se incomodar com o sacrifício dele. Pelo contrário — repare como ela fala admirada do fato de que o marido a conheceu quando ela estava doente, no seu pior estado, sugerindo que há algo de caridoso e não egoísta no amor dele, e que essa seria a base da relação. Óbvio que não iria durar. Nada disso justifica infidelidade, violência, é claro, mas uma situação tóxica como essa nunca se sustenta por muito tempo sem que os 2 lados não estejam colaborando com ela.

Fica muito claro no filme por que o relacionamento foi se deteriorando. O que permanece um mistério é o que levou o marido — que aparentava ser uma pessoa normal — a fazer algo tão monstruoso. É como se o filme estivesse mais interessado no lado do relacionamento, em expor a infidelidade e a violência masculina em geral, como se isso bastasse pra explicar o crime, do que em estudar a mente de Chris em particular, entender por que ele foi capaz de fazer o que fez, o que havia de incomum nele psicologicamente, emocionalmente, eticamente, já que milhões de outras pessoas passam por situações como essa todos os dias e nem todas terminam em massacre.


American Murder: The Family Next Door / EUA / 2020 / Jenny Popplewell

NOTA: 7.0

2 comentários:

Edi disse...

Eu assisti este documentário no ID Investigação Discovery, e tive o mesmo raciocínio que você
comentou. Fazendo um parêntese aqui, gosto muito de ler os seus comentários dos filmes e tanto é que agora faço o contrário, assisto um determinado filme e depois vou ver se o Caio assistiu para ver se bate com a minha visão, quando acerto, fico muito feliz.

Caio Amaral disse...

Oi Edi, que legal, fico feliz.. lamento não estar escrevendo tanto quanto antes.. tenho reservado meus comentários pros filmes de maior destaque ou pros que geram mais debate.. Mas às vezes quando não posto sobre um filme que vi, o pessoal me pergunta nos comentários e eu faço uma mini-review aqui mesmo, o que é sempre uma possibilidade, hehe. abs!!