sábado, 20 de fevereiro de 2021

Introdução

(Capítulo 1 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Este livro foi baseado em uma série de textos teóricos que escrevi ao longo de mais de 10 anos em meu blog. Escrevendo críticas de filmes nos anos 2000 e 2010, comecei a perceber que tudo aquilo de que eu mais gostava no entretenimento americano estava em decadência, se deteriorando — tudo aquilo que tinha sido uma inspiração para mim na cultura popular americana durante minha infância e adolescência nos anos 80 e 90 estava sendo esquecido, abandonado e às vezes até atacado.

Espero que o livro não pareça motivado apenas por um senso de nostalgia pessoal. Como vimos de forma bem-humorada no filme Meia-Noite em Paris de Woody Allen, é um fenômeno comum cada geração achar que houve uma “era de ouro” em sua juventude, e que a cultura atual é decadente, pessimista, sem valor. Mas uma vez ficando explícitos os elementos fundamentais daquilo que vim a chamar de “Idealismo”, espero convencê-los que de fato ocorreu uma mudança notável na cultura nas últimas décadas, e que o Idealismo não diz respeito apenas ao meu gosto pessoal, mas a princípios que descrevem uma categoria real de arte e entretenimento, que coincidentemente estava em alta na época em que eu cresci. Sim, inevitavelmente tenho um apego especial pelo entretenimento da “minha época” e isso vai ficar evidente ao longo do livro, mas quando olho para o passado e penso em termos de princípios universais, vejo que o Idealismo estava tão presente na cultura americana em 1939 quanto estava em 1989.

Esta não é a primeira vez que os EUA passam por uma fase “Anti-Idealista”. O fato é que a cultura é como um pêndulo e está sempre oscilando entre um lado e outro. Forças “Idealistas” e “Anti-Idealistas” estão sempre brigando umas contra as outras, alternando-se no poder e brigando para ver quem será a força dominante do momento.

O que determina essas mudanças são as ideias em alta na cultura, a filosofia predominante em determinada era, que acaba impactando o comportamento, as tendências e a arte desse período. Uma explosão de entretenimento Idealista ocorreu no final da década de 70, junto com um senso renovado de otimismo em relação aos EUA, após o período de turbulência e pessimismo que caracterizou o final dos anos 60 e o início dos anos 70. Pense no surgimento de cineastas como Steven Spielberg, James Cameron, George Lucas, artistas como Michael Jackson, e o tipo de entretenimento que eles criaram a partir daí. Algo mudou na cultura, e de repente a população voltou a admirar heróis, voltou a buscar um senso de inocência, de otimismo, voltou a valorizar ambição, e subitamente o entretenimento passou a refletir esses valores. Houve uma explosão de novos talentos que iriam se tornar os ícones do entretenimento das décadas seguintes (e nossas grandes referências até hoje). O entretenimento não só se tornou mais inocente, mais otimista, como passou a ser realizado de forma grandiosa, altamente sofisticada. Tudo nos EUA tinha que ser “maior que a vida”, ambicioso, inovador, high-tech; viam-se superastros surgindo por todos os lados. Havia algo de olímpico nos esforços e nos talentos exigidos dos artistas dessa época. Esperava-se um nível quase sobre-humano de habilidade e de performance — e tudo isso estava sendo empregado em produções voltadas para crianças, jovens, para a família, não apenas para impressionar críticos e intelectuais. John Williams tem um talento musical à altura do de grandes compositores do século 19, mas ele não estava escrevendo música para concertos, e sim para as pessoas comerem pipoca e torcerem por Superman e Indiana Jones no cinema. Era como se fazer o espectador sonhar e se sentir bem fosse a missão mais nobre do mundo, e as melhores mentes e talentos do planeta estivessem empenhadas em cumpri-la.

Essa atitude era observada não apenas no cinema como também em diversas áreas — na publicidade, na tecnologia, nos negócios. Pense em como Steve Jobs revolucionou os computadores nessa época, como Michael Jordan elevou o esporte para um outro nível, como a voz de Whitney Houston definiu o padrão de excelência para todas as cantoras que vieram depois, e como até em áreas inesperadas como no ilusionismo tivemos o surgimento de um astro como David Copperfield. Este período que foi da segunda metade da década de 70 até o final dos anos 90 foi uma pequena “era de ouro Idealista”, e foi o último período em que esse espírito imperou na cultura americana. No final dos anos 90, o entretenimento já começava a se tornar mais sombrio, autocrítico: os artistas da “era de ouro” começaram a perder força na cultura, imitadores menos talentosos que surgiam não tinham força para substituí-los, e o 11 de Setembro serviu como um golpe final no otimismo americano, tornando o Idealismo oficialmente uma coisa do passado, e desde então fomos mergulhando em uma das eras mais cínicas e sombrias da história recente da cultura ocidental.

Meu objetivo com este livro não é pedir o fim dos outros tipos de arte. Não é transformar toda a arte em Idealismo nem dizer que apenas isso deveria existir. Não é condenar quem gosta de outro tipo de arte e prefere produzir outras coisas. Se arte Idealista de qualidade estivesse sendo produzida hoje em abundância e sendo apreciada, eu não me importaria que outros artistas estivessem produzindo outras coisas. Todos os estilos de arte podem co-existir pacificamente, e cabe ao espectador decidir o que ele deseja consumir ou não. O problema é que quando as forças Anti-Idealistas ganham força em excesso na cultura, elas tendem a reprimir e destruir o Idealismo, de forma que ele praticamente deixe de existir (e quando existe, deixe de ser apreciado como deveria).

O que eu quero com este livro é apenas conscientizar criadores e espectadores a respeito do que é o Idealismo, explicar sua essência, seus ingredientes fundamentais, dar uma base filosófica para sua existência, e com isso quem sabe fazer com que ele seja redescoberto, revitalizado e apreciado novamente.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste livro, vou focar principalmente a arte do cinema, não só por eu considerá-la a mais completa e influente das artes, mas também por ser a que eu conheço mais intimamente. Porém, os princípios básicos do Idealismo são aplicáveis a todas as formas de arte, e vou dar exemplos disso ao longo dos capítulos.

Este não será um livro extremamente técnico. Não será um manual de como realizar um filme, de como escrever um roteiro, como se tornar um cineasta treinado e pronto para filmar. Idealismo é sobre princípios amplos, não sobre a aplicação desses princípios a cada aspecto da arte (até por isso são princípios que podem ser aplicados a artes diferentes). Não é um substituto para o conhecimento específico das técnicas e dons que cada arte em particular exige.

Talento e conhecimento técnico são coisas indispensáveis, e um dos grandes motivos para a arte estar se tornando cada vez mais pobre é que além da perda de certos ideais e valores, há também uma perda da técnica, de toda a craft do entretenimento. Essas técnicas não são nenhum segredo, não foram escondidas de ninguém. Se os artistas estão abandonando a técnica, não é pela falta de acesso a ela, pela falta de livros sobre o assunto, e sim pela falta de crença nas premissas filosóficas por trás de tais técnicas. Não é difícil, por exemplo, desenhar um belo rosto, uma vez que você estude algumas noções de harmonia facial, proporção. Mas se você acredita que beleza é um conceito ultrapassado, que projetar beleza na arte é algo moralmente duvidoso, que motivação você terá para dominar essas técnicas? Portanto, se hoje em dia a cultura se tornou cínica em relação à beleza, à autoestima, ao prazer, à felicidade, à própria razão, é apenas natural que os artistas estejam ignorando técnicas que foram desenvolvidas com base nesses princípios. Ninguém vai adotar e aplicar certas técnicas sem que tenha convicção nos propósitos por trás delas.

Muitas das ideias que vou apresentar aqui foram baseadas em observações originais minhas, mas obviamente fui influenciado e beneficiado pelas ideias de muitas pessoas que escreveram sobre arte e cinema no passado. Aprendi muito com Alfred Hitchcock, por exemplo, no livro de conversas com Truffaut, aprendi muito com “gurus” de roteiro como Robert McKee, Syd Field, ou lendo livros de entrevistas de grandes cineastas como Stanley Kubrick, Spielberg. Mas a maior influência nessa minha compreensão filosófica da arte certamente foi Ayn Rand e seus livros sobre estética, especialmente The Romantic Manifesto. A teoria do Romantismo de Rand tem grandes semelhanças com o que vou chamar de Idealismo aqui, e embora eu discorde de Rand em várias de suas posições, o Objetivismo fornece bases filosóficas importantes que irão complementar e sustentar minhas ideias, para quem tiver interesse de se aprofundar mais nessa linha de pensamento depois. Porém, é importante ressaltar as diferenças entre o Romantismo de Rand e a minha visão. A principal delas é o fato de eu focar muito mais o entretenimento do que aquilo que Rand chamava de “arte séria”. Eu tendo até a usar os dois termos intercambiavelmente, pois no Idealismo não existe de fato uma contradição entre arte e entretenimento. Rand dizia isso às vezes também, mas embora ela expressasse simpatia por coisas como James Bond e histórias de detetive, no fim ela considerava arte popular uma forma inferior de arte, algo menos sofisticado e menos importante. Para ela, as grandes obras de arte precisavam ser necessariamente filosóficas, intelectuais, ter algo explícito e profundo a dizer sobre ética, natureza humana. Rand não via o prazer do espectador como uma questão tão primordial na arte. Ela não tinha uma grande apreciação por humor, por exemplo, não considerava música contemporânea música de verdade, não simpatizava muito com fantasia, abominava o gênero horror, nem considerava o cinema uma arte completamente desenvolvida até então. O Idealismo já é favorável a tudo isso e parte do princípio de que a arte popular é tão importante — às vezes até mais importante — do que a “arte séria” (arte sofisticada que não se preocupa em entreter).

Se você pensar no que de fato introduz mudanças na cultura, no comportamento das pessoas, que tipo de arte mais influencia as pessoas a escolherem suas carreiras, moldarem suas personalidades, educarem seus filhos, decidirem que tipo de vida querem viver, como vão se vestir, qual será aquela música especial que elas irão tocar no ponto alto de seus casamentos — você verá que o entretenimento é muito mais que um passatempo para a maioria dos espectadores.

Até mesmo na vida de Rand a arte popular teve um papel fundamental: foi lendo aventuras escapistas como The Mysterious Valley, vendo filmes americanos de ação da era do cinema mudo, e ouvindo suas operettas favoritas que Rand obteve a inspiração e o combustível emocional necessário para se mudar para os EUA (onde ela foi direto para Hollywood trabalhar em blockbusters de Cecil B. DeMille). Ou seja, mesmo Rand raramente enfatizando a importância vital do entretenimento para o ser humano, acredito que em algum nível ela simpatizaria com a visão apresentada neste livro.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

Nenhum comentário:

Postar um comentário