sexta-feira, 18 de junho de 2021

Em um Bairro de Nova York

Versão para o cinema do musical de Lin-Manuel Miranda (criador de Hamilton) sobre imigrantes latinos vivendo em Nova York. Já tinha visto no teatro e achado um derivado fraco de West Side Story, e o filme não mudou essa impressão.

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- Um "Musical Naturalista" me parece uma contradição em termos, mas aqui eles dão um jeito de unir a estética de musicais a uma história cujo principal objetivo é expor o cotidiano e dramas sociais da comunidade latina de Nova York — mostrar como eles são maltratados pelo sistema, como sofrem com o racismo, com a xenofobia, etc.

- Na crítica de Juntos Novamente, eu comentei como, nos melhores musicais, as canções são motivadas por sentimentos positivos, intensos, e decorrem de eventos importantes na trama. Aqui (seguindo as premissas do Naturalismo) as canções já servem principalmente para expor as condições sociais dos latinos, e elas podem surgir do nada, não dependem de eventos narrativos, até porque o filme não tem trama, é apenas uma exploração da comunidade latina e seus diversos membros.

- Naturalismo: os personagens são todos pessoas comuns, sem grandes ambições ou virtudes de caráter (vivem pelo lema "Paciência e Fé" e têm como maior "sonho" ganhar na loteria!) — e o filme espera que a gente se identifique com eles com base nessa normalidade, nessa não-excepcionalidade.

- Os toques de fantasia (manequins ganhando vida etc.) são comuns no gênero musical, mas aqui acabam destoando, justamente porque a história no fundo é sobre questões sociais, desilusões, não sobre escapismo, sobre transportar o espectador pra uma realidade melhorada.

- As músicas não fazem nada meu estilo. Um dos motivos de eu não gostar de musicais sung-through é o fato das músicas terem que ser escritas em função de diálogos — canções acabam ficando sem forma, sem estrutura, pois vão tendo que se arrastar conforme as necessidades do texto, e melodias dramáticas acabam sendo usadas para comunicar coisas banais, assuntos corriqueiros, etc. Aqui, o musical não é inteiro cantado (ou seja, tem espaço para diálogos normais), e mesmo assim existem canções nesse formato por algum motivo... Lembro de uma discussão sobre estética (do Leonard Peikoff acho) onde ele comentava que na arte romântica você não deve incluir coisas irrelevantes, mesmo que elas aconteçam na vida real, e dava o exemplo de um herói tendo dificuldade pra abrir uma garrafa de vinho num encontro romântico. Tudo o que você inclui numa obra de arte ganha uma importância existencial extra... Portanto, incluir detalhes assim seria desaconselhável até num trecho comum do filme, que dirá numa cena musical. Mas aqui, como a intenção do filme é justamente exaltar o ordinário, o comum, nós chegamos ao absurdo de um momento onde o protagonista não só tem dificuldade pra abrir uma garrafa num encontro (numa resposta irônica ao exemplo do Peikoff), como isso é enfatizado pela música — ele fica tentando tirar o lacre enquanto canta "how do you get this gold s**t off?" num tom poético (!). 

- Também não há um senso de unidade, de integração entre tema/música/cenário/conceito nas sequências musicais. Quando lembramos de Cantando na Chuva, por exemplo, é fácil lembrar qual era a música que Gene Kelly cantava na cena da chuva, que objeto ele carregava em suas mãos, e podemos até lembrar de alguns de seus passos de dança, pois tudo era integrado ao redor de um tema simples e memorável. Aqui, apenas um ou outro momento busca esse tipo de unidade (há um pouco disso em "Carnaval del Barrio") mas em geral é tudo bem aleatório e bagunçado.. A cena na piscina pública é sobre ganhar na loteria, a cena onde os personagens dançam na lateral do prédio não tem nada a ver com desafiar a gravidade, a cena da avó no metrô não tem nada a ver com metrô... O autor parece pensar: "desde que sejam latinos em locações de Nova York, está valendo."

- A contagem regressiva para o apagão dá um vago senso de estrutura pro filme, mas na prática é só um evento aleatório que nada tem a ver com as ações e propósitos dos personagens (digo o mesmo para a morte da avó). No máximo é um uso de simbolismo pra dizer que os latinos se sentem "powerless" em NY. É um problema comum em roteiros de filmes que não têm trama: eles não têm critério pra saber quando acabar, então inventam algum evento dramático (mas puramente acidental) perto do fim, após o qual vai se criando um "clima" de desfecho.

- Tudo parece horrível nos EUA: latinos não conseguem crédito, o ensino é caro demais, falta energia, o metrô que corta o bairro é barulhento, as condições de vida são péssimas, o trabalho é árduo (não dá nem pra vender raspadinha sem a competição do "big business"), não há nenhum personagem americano gostável no filme, o racismo é tão presente na sociedade que uma menina linda como a Nina não se sente respeitada nem em um ambiente universitário por não ser branca. Eles vivem nos EUA, mas detestam a cultura americana, não querem se integrar, querem que o bairro seja exatamente como seus países de origem... É como se a América Latina fosse um paraíso abandonado, mas mesmo assim, na hora de decidir se voltam pra lá, todos resolvem permanecer nos EUA (em West Side Story, pelo menos metade dos porto-riquenhos realmente gostava da América). Nina decide continuar com seus estudos nos EUA, mas em vez de perseguir seu sucesso profissional como antes (o sonho americano a essa altura já parece uma farsa), agora seu objetivo será lutar por mudanças políticas... Ou seja, em vez de mostrar imigrantes como pessoas ambiciosas, produtivas, independentes, que podem trazer valor ao país, o filme acaba reforçando a paranóia de muitos conservadores que acham que imigrantes vão pra lá só pra viver às custas do governo, tirar o que é deles, subverter a cultura, etc.

In the Heights / 2021 / Jon M. Chu

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