terça-feira, 6 de setembro de 2022

Marte Um | Crítica

Esse ano houve uma grande reformulação no processo de seleção do filme brasileiro que irá concorrer à vaga ao Oscar. Teoricamente, o novo comitê seria mais bem informado, usaria critérios que aumentariam as chances do Brasil já a partir do Oscar 2023. Por isso, assim que Marte Um foi anunciado como o candidato, fui ao cinema conferir — mas fazia tempo que eu não ficava tão constrangido numa sala de cinema.

Em termos de proposta, mensagem, até faz sentido a escolha. O filme retrata as dificuldades de uma família negra de classe média baixa, tem uma estética totalmente Naturalista (aquele som de filme nacional onde se ouve latidos de cachorro ao fundo vindo do bairro), é cheio de mensagens políticas, sociais, faz a gente sentir pena do garoto que sonha em participar de uma missão para Marte, mas obviamente não tem recursos financeiros para isso (tudo no filme implora por uma intervenção estatal). O fato disso aumentar as chances de um filme no Oscar mostra apenas o quanto o Oscar foi deturpado nas últimas décadas; mas uma vez que filmes como Moonlight e Nomadland são o novo objeto de desejo da Academia, até faz sentido priorizar histórias como a de Marte Um.

O problema é que o filme é extremamente precário em termos de produção, direção, atuação. Não é um filme sobre pessoas necessitadas, porém feito com um mínimo de aptidão cinematográfica, certo domínio de linguagem, como um Nomadland. Muitas cenas, como as do "núcleo cômico" do condomínio, parecem encenações de Telecurso 2000. Há cenas em que o cineasta se propõe a retratar a rotina de pessoas marginalizadas — gays indo a casas noturnas na periferia, etc. — mas é tudo tão mal realizado, e os personagens se comportam de forma tão engessada e artificial, que fica a impressão que o cineasta não tem intimidade alguma com aquele universo; como essas pessoas que quando estão com gays começam a usar gírias do tipo "babado" ou "arrasou" pra se enturmar, mostrando que só têm contato com gays via novela das 7.

Nem as mensagens políticas fazem muito sentido. O filme usa algumas vezes o clichê de deixar uma TV ao fundo passando alguma notícia sobre política, eleições, algo que o autor obviamente condena, como se isso fosse o bastante pra registrar uma "crítica". A sinopse do filme diz: "A família Martins vive tranquilamente nas margens de uma grande cidade brasileira após a decepcionante posse de um presidente extremista de extrema-direita." — mas a relação das eleições com a situação da família não é nada explorada. Você ainda fica se perguntando: se no momento em que o drama se desenrola, o Bolsonaro acabou de ser eleito, isso não significa que a falta de condições da família tem mais a ver com os governos anteriores?

Talvez a "genialidade" de Marte Um para a comissão de seleção seja que não só os personagens parecem necessitados e humildes, mas que o próprio filme acaba incorporando essas "virtudes". Não se trata do realismo gourmet de Roma (2018), onde a pobreza é apresentada por lentes caras, por um diretor sofisticado que já perdeu seu lugar de fala. Aqui a pobreza é real, e o sentimento de pena vai além do nível da história: a Academia verá que não só o povo brasileiro está em apuros, mas que o próprio cinema brasileiro precisa desesperadamente de ajuda.

Marte Um (Mars One) / 2022 / Gabriel Martins

Satisfação: 0

Categoria: NI

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