quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cultura: Tongue-in-cheek vs. Straight Face

Dizer que um filme é "tongue-in-cheek" ("língua na bochecha") é dizer que ele não se leva a sério, que não é realista, está sendo feito de forma irônica, se autoparodiando. Esta costuma ser a atitude padrão dos filmes que exageram a ação e o heroísmo dos personagens pra zombarem do gênero (Idealismo Corrompido), porém recentemente assisti a alguns filmes que me deram a impressão de uma nova tendência estar surgindo: a de remover a ironia e simplesmente mostrar absurdos com uma atitude séria. Filmes como Donzela, Beekeeper: Rede de Vingança Godzilla e Kong: O Novo Império, por exemplo, levam a ação perto do nível do ridículo, porém já não têm sempre as piadinhas pra deixar óbvio pro espectador que aquilo se trata de algo irônico e autoconsciente. Até mesmo o remake de Matador de Aluguel, apesar de ter os comentários engraçadinhos, já flerta com essa nova categoria.

Isso não quer dizer que esses filmes estejam se livrando do Idealismo Corrompido e passando a levar as aventuras e os heróis a sério. Eles estão apenas adotando uma nova tática para invalidar as histórias: em vez do humor "tongue-in-cheek", agora eles estão passando para o humor "straight face" — que é quando graça vem de você manter uma expressão séria enquanto faz algo evidentemente absurdo.

Esta é a técnica de paródias como Todo Mundo em Pânico e Corra que a Polícia Vem Aí. A diferença é que em comédias, os exageros e absurdos são calculados para provocarem riso. A burrice e a ausência de lógica são levadas ao extremo para se tornarem piadas e gerarem um efeito cômico inconfundível. Isso não acontece nos filmes que citei. Esses filmes simplesmente mostram ações impossíveis, desnecessariamente exageradas, apresentam desenvolvimentos de trama que não têm um pingo de lógica (e nem disfarçam isso), mas mantendo uma atitude séria — não como quem quer que você dê uma gargalhada, mas como quem parece estar se deleitando com a ideia de não precisar se limitar à "ditadura" da lógica, da realidade, e poder escapar impune dizendo mentiras descaradas (uma atitude que está em plena harmonia com a era da "pós-verdade" e com a irracionalidade crescente da cultura).

Por serem produções caras de estúdio, nesses casos você nem consegue considerar a hipótese dos cineastas serem de fato sem-noção, como acontece em produções low-budget tipo Birdemic ou Sharknado. E também não estamos falando de filmes de Bollywood, que dariam justificar dizendo que a cultura inteira seria sem-noção. Aqui, você sabe que os cineastas têm mais "noção" do que os filmes sugerem, mas eles resolveram de propósito ignorar qualquer bom senso, como se a autoindulgência intelectual dos cineastas passasse a ser a real fonte do entretenimento.

A franquia Velozes e Furiosos me parece ter sido pioneira nessa tendência, pois já vem adotando esse comportamento desde a parte 6 no mínimo (quando vi a cena do avião cargueiro na parte 6 e a do submarino na parte 8, eu sabia que estava diante de algo novo e estranho no blockbuster americano). O sucesso de RRR nos EUA acho que também foi um marco importante nessa evolução.

Ainda é cedo pra dizer se isso é uma tendência real ou não, mas se for, essa "Bollywoodização" de Hollywood não representará progresso algum — fazer virtudes e o entretenimento parecerem coisas tolas, impossíveis ou ridículas de propósito será sempre uma corrupção do Idealismo, com ou sem língua na bochecha.

5 comentários:

  1. Os filmes de Wes Anderson poderiam ser contados como exemplos de straight face? Pelos alguns momentos dão essa impressão, como a cena da luta com os piratas em A Vida Marinha com Steve Zissou, filme que vi há alguns dias, que nesse momento parece querer parodiar filmes de ação fazendo à risca uma sequencia de ação ruim , com o protagonista enfrentando com uma pistola (que dispara dezenas de tiros) um bando bem armado, e saindo ileso. Mas tudo com cara séria.
    https://www.youtube.com/watch?v=XQbhuxiyv5c

    Pedro.

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  2. Oi Pedro! Eu vejo essa cena (e o Wes Anderson de modo geral) como algo "tongue-in-cheek".. Nesse vídeo, os 15 primeiros segundos já deixam claro que o contexto do filme é cômico (o cara traduzindo que leva um soco é bem "Trapalhões"). Quando começa o tiroteio, a cena fica ligeiramente mais séria.. mas ainda é tudo bem satírico. Repare na trilha sonora.. o próprio Bill Murray como herói já é algo cômico por sua personalidade, fisionomia, pelo fato dele estar usando aquele roupão azul e sunga.. o momento do cara que leva um tiro no pescoço e acaba esfaqueando o outro é tb um beat cômico meio Tarantinesco. Já esses filmes que estou classificando como "straight face" se parecem muito mais com filmes de ação normais.. a trilha vai ser dramática, o herói vai ser interpretado por um ator sério etc. Ele só vai ser mais exagerado e imaturo que os filmes respeitados do gênero.. e eu estou reparando que alguns filmes estão fazendo isso de propósito. abs!

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  3. Imagine assim.. Godzilla Minus One seria um exemplar respeitável de um filme de Kaiju, assim como o King Kong de 1933 ou até o do Peter Jackson. No outro extremo, podemos pegar aquelas séries de TV antigas tipo Ultraman, Power Rangers etc, como exemplares mais toscos. Mas essas séries, apesar do mau gosto estético, da ingenuidade, pareciam se levar a sério.. elas não eram toscas de propósito. Se tivessem maior orçamento, os produtores provavelmente tentariam criar algo tão sofisticado quanto os filmes bem-sucedidos de Hollywood, suponho eu. O que eu sinto vendo "Godzilla e Kong: O Novo Império", é que apesar deles terem o orçamento, eles parecem estar se inspirando nos exemplares toscos do gênero.. querendo recriar o mau gosto ingênuo de coisas como Ultraman, e não pegando os exemplares respeitáveis como modelo.

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  4. Obrigado pela explicação. Cheguei a pensar em escrever "tongue-in-cheek", só não fiz isso porque tosco e caricato não são expressões muito associadas aos filmes de Wes Anderson, na maioria das críticas.
    Pedro.

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  5. O Wes Anderson de fato não mira tanto no "tosco".. mas no caricato, com certeza! Abs.

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