Passei boa parte da sessão encantado com o visual, com a escala da produção, com o som poderoso, e realmente querendo aproveitar o filme. No IMAX em particular, o espetáculo audiovisual foi quase o suficiente pra prender minha atenção e fazer o filme parecer bom — como costuma ocorrer com as produções do Christopher Nolan também — e diante dessa "opressão sensorial" (regida muitas vezes por Hans Zimmer), avaliar os méritos reais do filme exige uma atenção maior (imagine um general importante gritando na sua cara, e você querendo julgar o conteúdo de suas palavras primeiro pra decidir se irá respeitá-lo ou não).
Assim como Nolan, Denis Villeneuve é um dos diretores que me arrastam com mais facilidade pro cinema hoje — não por eu gostar sempre de seus filmes, mas por ele ser dos poucos cineastas autorais trabalhando em grandes produções, tentando trazer qualidade artística pro cinema comercial. E embora eu veja muito de
Pseudo-Sofisticação na técnica de Villeneuve (o tom sombrio e os toques subjetivos são constantes) o cinema de hoje é tão carente desta combinação que acabo vendo seus filmes com boa vontade.
Mas como costuma ocorrer, lá pela 1 hora e pouco de projeção, a ausência de conteúdo dramático e de uma boa trama começou a diminuir um pouco meu entusiasmo. Eu nunca fui fã de sagas como O Senhor dos Anéis, onde muito da energia é gasta na construção do universo, em apresentar todos os detalhes e regras de um mundo fantasioso. Isto pra mim deveria ser apenas os entornos de uma história, detalhes que vão sendo apresentados em função da trama, pra fazer o universo parecer crível, mas que não deveriam substituir a trama. A trama pra mim precisa ser uma linha de ação simples, baseada em objetivos claros, conflitos envolventes, apresentados logo no início — algo que não temos em Duna, que parece ver a fantasia quase como um fim em si mesmo. O filme acaba parecendo uma grande introdução para a parte 2, uma série de discussões burocráticas que vão nos informando sobre aquele mundo, intercaladas por algumas sequências de ação grandiosas para o filme não ficar muito parado (lembrei um pouco do Snyder Cut, que mesmo com uma duração enorme, ainda precisou acabar com a promessa de que "agora sim as coisas vão começar").
O que falta em grande parte aqui é um protagonista menos passivo, mais motivado, com obstáculos sérios e objetivos atraentes para perseguir (nada na história parece partir de um desejo autêntico dele, e o pai deixa claro que se ele não estiver a fim de embarcar na jornada, que não há problema algum). Meu texto
As 5 Histórias Idealistas dá uma boa ideia de qual o problema com esse tipo de narrativa, onde as missões não estão conectadas aos desejos da plateia e às paixões do herói (o filme poderia ter seguido as Histórias 2 ou 3 pra ser mais envolvente, mas não o faz). E embora Timothée Chalamet esteja muito bem como Paul Atreides, o personagem é um pouco distante e genérico. O arquétipo do "Escolhido" é muito popular nesse gênero de filme, mas se você não acrescentar alguns traços de caráter mais específicos e carismáticos, o arquétipo acaba não gerando identidade o bastante pra dar vida ao personagem (no final, quando Paul toma uma decisão importante que definirá a parte 2, sua atitude acaba parecendo forçada, vinda do nada, até porque nada nele parecia precisar de uma conexão com o mundo dos Fremen — ter "visões" não é o mesmo que ter uma necessidade psicológica/emocional).
Essa superficialidade/genericidade caracteriza muito do filme, incluindo a trama e os conteúdos políticos/filosóficos. Nessa esfera, o filme acaba lembrando um pouco Avatar tematicamente (ou Avatar lembrando Duna, levando em conta o livro de Frank Herbert), ao discutir a exploração humana de recursos naturais, o tratamento dado a povos indígenas, etc. Se o ambientalismo de Avatar já era meio maçante mesmo diante da exuberância de Pandora e da dependência dos Na'vi da floresta, os dilemas éticos da exploração de Arrakis já são menos compreensíveis, considerando que o planeta é um enorme deserto, hostil à vida (o que não deve impedir o público atual de aprovar a mensagem, afinal qualquer interferência do homem civilizado na natureza é considerada negativa hoje, mesmo quando a "vítima" é areia). Entre os valores questionáveis no filme, há a velha romantização de culturas primitivas (que aqui vem com ares islâmicos), e uma celebração de tudo o que é místico e esotérico. As forças do herói acabam não sendo muito bem dramatizadas no filme por conta dessa inclinação mística. Paul não é como Neo de Matrix, que começa como um homem comum e aos poucos vai evoluindo, adquirindo habilidades visíveis, até se provar o "Escolhido". Ele é mais como Harry Potter, um garoto que já nasceu com um talento especial, mas que nunca se torna palpável no filme — em geral Paul parece se livrar de enrascadas por sorte, por alguma força vaga, ou pela ajuda de alguém, o que deixa as cenas de ação menos poderosas do que poderiam ser (pense em como a sequência do vôo na tempestade de areia é resolvida sem grandes sacadas e sem realmente explorar as virtudes de Paul).
O elenco é todo muito bem escalado. Jason Momoa traz um toque de leveza muito bem-vindo ao filme, que em geral é excessivamente sério. Charlotte Rampling está assustadora em suas breves aparições. E Rebecca Ferguson é a que mais se destaca na minha opinião, roubando a cena em diversos momentos. A cena na nave onde ela usa seus poderes pra tentar escapar é um dos pontos altos do filme — o que me conscientizou do quão pouco excitante é a narrativa de modo geral; esta cena nem é tão surpreendente ou intensa assim, mas perto da inibição emocional do resto do filme, acaba sendo um momento de destaque.
Apesar desses elementos que não me agradaram, o filme no fim conseguiu me transportar pra um lugar fascinante, com personagens atraentes, e isso me deixou com uma lembrança positiva da experiência. Além disso, a adaptação era um sonho de garoto de Villeneuve, e toda vez que alguém tem o privilégio de poder gastar uma fortuna pra realizar um sonho, de colaborar com os melhores profissionais da indústria, e tem habilidade o bastante pra realizar sua visão, é um filme que eu vou ver com interesse.
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ADENDO (26/10)
Eu nunca li o livro
Duna, e esses dias revendo a versão de 1984 de David Lynch, me dei conta das similaridades da história com a de
Lawrence da Arábia. Dando uma rápida uma pesquisada na internet, vi que de fato esta tinha sido uma das inspirações de Frank Herbert ao escrever o livro. E só pra reforçar minha impressão de que um dos pontos fracos do filme de Villeneuve tem a ver com ele não se enquadrar nas
5 Histórias Idealistas, reparem como
Lawrence não só se enquadra, como se enquadra em 3 delas. A história de
Lawrence já é satisfatória do ponto de vista de um homem que é visto como fraco/inadequado para certa missão, e evolui para se provar um líder mais impressionante do que todos esperavam (História 2). Ela também funciona como a história de um homem que sai de um ambiente familiar/comum, e vai pra um lugar fantástico viver uma enorme aventura no deserto (História 3). E ela também funciona como a história de um homem com uma "falha trágica" numa jornada autodestrutiva (História 5). Em
Duna (2021), como o protagonista já parece o "escolhido" desde o início, como ele já parte de um mundo fantástico cheio de magias, e como apenas na parte 2 o personagem deverá revelar um lado obscuro de sua personalidade, o filme não tem tantos contrastes e não cumpre direito nenhum desses arcos narrativos que costumam ser necessários pra tornar uma história satisfatória.
Dune: Part One / 2021 / Denis Villeneuve
Nível de Satisfação: 7
Categoria B/C: Idealismo impuro (alguns problemas estéticos e valores negativos)
Filmes Parecidos: Mad Max: Estrada da Fúria (2015) / Interestelar (2014) / Star Wars: O Despertar da Força (2014)