segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia

Tenho visto (e revisto) entrevistas com diretores de fotografia renomados, e é interessante notar como a abordagem de alguns naturalmente tomba mais pro Idealismo e a de outros mais pro Naturalismo.

Fotógrafos mais próximos do Idealismo frequentemente falam de seus trabalhos como "pintar com luz", e até costumam estudar pintores clássicos pra entender como luz e cores criam certas impressões no observador. Esse tipo de fotógrafo se sente estimulado pela conceito de começar com um cenário totalmente escuro, sem luz, e a partir daí ir acrescentando luzes com base no que querem que o espectador sinta, no que o diretor quer comunicar com a cena, e assim vão decidindo o quanto de sombra deve haver no rosto do personagem, qual a qualidade e a direção da luz, o que deve ser realçado ou minimizado na imagem pra direcionar a atenção do espectador, que texturas interessantes podem ser criadas — além claro das decisões ligadas a lentes, composição, movimentos de câmera, etc.

Já outros fotógrafos, talentosos também, mas que tombam mais pro Naturalismo, citam frequentemente o conceito de "luz motivada", algo muito em alta hoje, que é o princípio de que a luz incidindo sobre o cenário e os atores deve ter sempre uma justificativa plausível; estar vindo de alguma janela (mesmo que seja uma luz artificial colocada fora da janela) ou de pontos de luz existentes no cenário (abajures, lustres, etc.). Partindo desta restrição, eles podem até criar imagens lindíssimas — não estou dizendo que isso resultará em algo feio esteticamente — mas é uma abordagem bastante diferente, e que reflete a visão de cada um sobre o que é arte, quais as regras do jogo, etc.

Os "Idealistas" moldam a realidade com mais liberdade pra gerar o impacto desejado no espectador. Eles enxergam o frame como uma tela em branco, e se sentem responsáveis por cada informação que incluem ali. Os Naturalistas já colocam o realismo num patamar mais alto; pensam primeiro na realidade da cena, do ambiente físico, e daí decidem como fotografar aquilo de maneira interessante; mas não se sentem tão à vontade pra "manipular" livremente a experiência do espectador. É como se a artificialidade da arte os incomodasse, e com esse tipo de fotografia eles buscassem tornar o cinema um pouco menos "desonesto" (esquecendo talvez que o roteirista já inventou eventos impossíveis, que os atores estão fingindo o tempo todo, que o compositor colocará música onde não haveria música na vida real, etc.).

Não estou falando aqui de extremos opostos — da diferença entre Nomadland (2020) e Os Sapatinhos Vermelhos (1948), por exemplo — e sim de algo mais sutil, que pode explicar por que Blade Runner 2049 talvez pareça menos "mágico" visualmente do que o Blade Runner original, mesmo tendo imagens fantásticas e sendo uma produção igualmente rica. Roger Deakins, que é um dos melhores e mais populares diretores de fotografia em atividade, faz filmes lindos visualmente (1917 / Onde os Fracos Não Têm Vez / Skyfall), mas costuma sempre manter um pé no Naturalismo e na ideia de luz motivada.

Quando olho para os filmes dos anos 70–90 que eu gosto (ou até dos anos 30, 40, 50), vejo que muito do encanto já era criado na direção de fotografia, e que o fato dos fotógrafos da época estarem mais em sintonia com princípios Idealistas os deixava livres pra agirem como "pintores de luz", e criarem um tipo de efeito que é impossível no Naturalismo.

Existem centenas de formas de moldar a imagem para atingir efeitos dramáticos, e um filme não precisa seguir exatamente os exemplos que vou listar a seguir. Mas só pra citar 2 técnicas clássicas que passaram a ser usadas com menos frequência nas últimas décadas, vamos pegar por exemplo o contra-luz. O contra-luz é uma luz colocada atrás do ator (ou do objeto filmado), o que cria um contorno brilhante ao redor dele. Alguns teóricos justificavam essa técnica com base na necessidade prática de "separar" o ator do fundo do cenário (algo que era ainda mais importante quando o cinema era preto e branco os objetos na tela se confundiam mais), mas a verdade é que um dos principais efeitos do contra-luz é que o "halo" brilhante que ele cria ao redor do ator (um brilho no cabelo, na lateral do rosto, no ombro) acaba tornando o personagem mais glamouroso, "maior que a vida", e menos como pessoas comuns que enxergamos no dia a dia. Esta sempre foi uma das luzes mais usadas em Hollywood, mas nas últimas décadas ela passou a ser vista como uma convenção desnecessária, um pouco antiquada, por remeter demais à linguagem comercial dos anos 80/90, algo que a nova geração de criadores buscava se distanciar (assim como o contra-luz foi saindo de moda, o uso de tripés e câmeras estáveis também se tornou "clássico" demais, dando início à tendência da câmera na mão). Claro que ainda se usa o contra-luz, mas ele geralmente é mais suave, mais "motivado", e menos consistente ao longo do filme, o que não provoca o mesmo efeito (na minha opinião, quando a luz não é motivada e não é totalmente natural é que o efeito se torna realmente fascinante, dependendo do gênero de filme).


Exemplos de como o contra-luz era usado de forma mais marcada e expressiva no passado (à esquerda), e como hoje a luz tende a ser mais natural, mesmo em cenas com contra-luz.

Outra técnica que foi se tornando menos comum é o uso de fumaça ou haze (névoa) nos filmes. Fumaça é algo que pode ser um elemento cenográfico, mas que pode ser também um recurso da direção de fotografia; um elemento usado ao longo do filme (mesmo em cenas onde não há uma justificativa pra fumaça) pra criar certa atmosfera e tornar o universo do filme mais interessante. Fumaça (ou haze) sempre foi usada de forma subliminar nos filmes e até hoje é algo usado em tudo o que é conteúdo audiovisual, mesmo quando o espectador não se dá conta (só registramos subconscientemente que há certa "atmosfera" na cena, sem perceber que é porque estamos literalmente enxergando a atmosfera — o que só ocorre por causa da fumaça jogada no cenário).



Acima uma cena de Coringa com haze, e depois uma comparação de um cenário com haze e sem.

A diferença é que hoje isso é usado com mais discrição e comedimento, algo que requer ainda mais justificativa do que o contra-luz. Se você pega um filme do Spielberg antigo por exemplo, você vai ver que não só as luzes não precisavam ser sempre realistas e prováveis (pense no início de Contatos Imediatos, e a sombra da árvore sendo projetada na casa), como nem mesmo fumaças intensas precisavam ser justificadas. Às vezes Spielberg tentava justificá-las, colocando cigarros em cena, ventanias exageradas pra levantar poeira (outros tipos de particulas no ar também valem), churrasqueiras ou barris ao fundo com algo pegando fogo, só pra conseguir ter fumaça em cenas externas (que é mais difícil do que em internas). Mas às vezes ele simplesmente queria fumaça lá sem grandes explicações. Veja esta cena de Jurassic Park que se passa dentro de um trailer — onde aparentemente ninguém está cozinhando — e fique observando a janela ao fundo; como a luz entrando cria um feixe visível, algo que só ocorre na presença de fumaça/haze, e como a partir da metade do clipe, eles não se deram o trabalho nem de dissipar a fumaça pra disfarçar.




Em E.T. há um exemplo ainda mais fascinante do uso de fumaça: na cena logo perto do início, onde Elliott e os amigos estão na sala brincando e pedindo pizza, há muita fumaça no ambiente, criando um clima meio onírico (a fumaça meio que justificada por um cigarro da mãe que está na mesa). Já nas cenas externas, a fumaça é explicada pela neblina. 



Mas o mais interessante é na cena do dia seguinte, que se passa na mesma sala onde os garotos brincavam, só que desta vez a fumaça não é usada — pois a ideia nesse momento é criar um clima de "de volta à realidade", dar a impressão de que tudo aquilo que aconteceu na noite anterior não passou de uma fantasia. Isso muito provavelmente foi planejado, pois notem como no final desta sequência, quando Elliott resolve ir lavar a louça irritado, e levanta os olhos para o céu (voltando a "sonhar"), a fumaça retorna, desta vez justificada pelo vapor da água quente da pia. O vapor surge numa quantidade tão exagerada que não é possível que Spielberg (e o fotógrafo) não tenham usado aquilo de propósito (consciente ou inconscientemente) como recurso narrativo: um símbolo associado ao mundo mágico para o qual Elliott (e o espectador) deseja ser transportado.




Claro que é preciso ter em mente que o propósito final é fazer o espectador acreditar na história, ser transportado para a realidade do filme. Se a fotografia se torna tão teatral, tão irreal, a ponto de chamar a atenção do espectador, distanciá-lo da história, isso prejudica o filme. O ideal é que esses elementos sejam percebidos subconscientemente, e o foco do espectador continue nos acontecimentos da história. Em E.T., há luzes irreais mesmo na segunda cena, a do "de volta à realidade" — um contra-luz sutil no cabelo da maioria dos atores; ou a luz entrando pela persiana e criando riscos de baixo pra cima na parede da cozinha, algo bem improvável numa casa de verdade. A fotografia nunca se torna Naturalista de fato, mas o fotógrafo entende que não se pode usar todos os truques a todo momento, pra não atropelar a história.

Esses exemplos são de técnicas mais voltadas para filmes escapistas, fantasias/aventuras, etc. Num drama, ou numa comédia romântica, esse tipo fotografia talvez não se encaixe. Ainda assim, há inúmeras formas de usar a fotografia de forma expressiva, dramática, se o filme quiser fugir do Naturalismo. Kubrick não gostava de luzes artificiais, por exemplo, e muitas vezes colocava abajures e luzes "práticas" fortes o bastante no cenário, a ponto delas bastarem para iluminar o ambiente, deixando-o livre pra apontar a câmera em qualquer direção, sem ter refletores no set limitando seus ângulos. Seus filmes, portanto, têm luzes mais realistas, menos glamourosas, mas ainda assim, através de enquadramentos, lentes, composição, cenografia, ele criava imagens incríveis que passavam longe de uma linguagem documental, Naturalista. Então a essência do Idealismo não é necessariamente ser escapista, fantasioso, e sim ser expressivo, dramático, moldado para provocar determinado efeito no espectador.




Se pegarmos os 4 pilares do Idealismo separadamente, podemos entender melhor como eles se aplicam à fotografia de cinema:

Objetividade — Seria respeitar a necessidade do espectador por ordem, clareza, compreensão; composições que criem algum senso de ordem visual, que "simplifiquem" a complexidade do ambiente físico; que tenham um foco e conduzam a atenção do espectador para apenas um ou dois elementos em cena, minimizando na imagem tudo o que é irrelevante ou distrativo; câmeras "ativas" que sejam usadas com propósito, para comunicar ideias, narrar a história, etc. O extremo oposto dessa abordagem seria, por exemplo, a câmera "catatônica" do cinema experimental, que não acompanha a ação de propósito, foca em coisas aleatórias e deixa eventos importantes ocorrerem fora de quadro, ou que simplesmente aponta a câmera na direção da ação sem se preocupar com enquadramento, fundos, luz, narrativa visual, etc.




Benevolência — Está na intenção geral de mostrar um universo melhorado; de usar a câmera para criar harmonia, beleza, uma realidade mais "colorida" do que a que encontramos no dia a dia. A negação disso seria o tipo de filme que usa imagem pra incomodar, pra mostrar o lado trágico e obscuro da vida (câmera na mão, imagens dessaturadas, luzes duras, ênfase em conteúdos negativos como violência, feiura, etc.). Abaixo o final de Vitória Amarga (1939), considerado pesado para a época (SPOILER), pois a protagonista (Bette Davis) tem um tumor no cérebro e morre na cena final. Na história, tinha sido estabelecido que quando ela perdesse totalmente a visão, ela já estaria próxima da morte, então a câmera desfocada no fim é basicamente uma forma criativa de "matar" a personagem; um tipo de sutileza e foco no positivo que seria impensável hoje em dia, num filme com este conteúdo:




Autoestima — Numa entrevista com Janusz Kamiński, grande parceiro de Spielberg, ele comenta que uma das principais preocupações de Steven nas filmagens, no que diz respeito à fotografia, é que os atores pareçam dignos e enobrecidos na tela. Essa preocupação com a dignidade dos atores é uma das manifestação básicas do fator Autoestima, e há uma série de técnicas para se buscar este resultado (como o já discutido contra-luz; criar luzes personalizadas pra favorecer as qualidades do rosto de cada ator; filmar o ator de um ângulo mais baixo para torná-lo mais grandioso, etc.). Mas o conceito pode se manifestar também num nível mais formal; no simples ato de se criar uma fotografia elaborada, tecnicamente virtuosa (mesmo que o foco não seja favorecer o elenco, afinal nem toda história comporta isso). O oposto disso seriam filmes que desglamourizam os atores de propósito, que são fotografados de maneira simples, sem grande técnica, etc. Abaixo, Jack Cardiff comentando sobre como estudava as atrizes com quem trabalhava antes de filmá-las (começa em 1:02:32 e vai até 1:05:09).




Excitação — É usar a imagem pra estar sempre estimulando o espectador, criando interesse, envolvimento, escapismo, trazendo novidades, surpresas, não entediando. Fumaça e luzes "irreais" cairiam nessa categoria (ou silhuetas, por exemplo, que além de mistério podem também engrandecer os personagens). Mas há muitos recursos dentro desta categoria: movimentos de câmera envolvendo trilhos, dollys, gruas (que fazem a plateia "voar" e se deslocar como em um simulador); cores vivas; uma boa variedade de composições e enquadramentos, de forma que a atenção do espectador esteja sempre avançando para algo novo e interessante; Reveal Shots; planos que culminem em alguma surpresa visual; efeitos especiais (CGI, práticos, matte painting, etc.), o uso de lentes teleobjetivas (que, diferentemente de lentes "normais" que são mais Naturalistas e próximas da visão humana, nos fazem ver um mundo por um olhar diferente, que comprime e seleciona a realidade de uma maneira impossível para o olho nu), efeitos óticos como o dolly-zoom, ou até o zoom simples, que também é impossível para o olho humano; câmera-lenta, etc. O contrário seria uma câmera que apenas registra o que está na frente dela de maneira direta, passiva, com uma "lente normal"; ou planos longos, monótonos, onde o foco seja só os diálogos, sem nada de visualmente interessante. Abaixo Dean Cundey falando sobre como Spielberg planeja suas cenas pra sempre estimular o espectador  (começa em 29:32 e vai até 31:24)




Claro que a fotografia sozinha não faz o filme, e não vai conseguir transformar uma história realista, com pessoas comuns, em algo totalmente inspirador. Um exemplo disso é o filme O Fundo do Coração (1981), do Coppola, que é um ótimo filme e explora incrivelmente o conceito de "pintar com luz", mas que por ter um conteúdo mais realista e melancólico, não se torna um entretenimento escapista só por causa do visual.

E é claro que há lugar pra estética Naturalista nos filmes — nada contra os que se propõem a fazer um tipo diferente de cinema (ou iniciantes que não tenham verba pra criar muitos desses efeitos). Mas meu papel aqui é promover a abordagem Idealista, e no caso de filmes cujo propósito é entreter, transportar o público, eu acho frustrante essa predominância atual do Naturalismo na fotografia, que pra mim impede muito da magia do cinema de ocorrer.


2 comentários:

  1. Olá, Caio,

    Parabéns e obrigado por este texto. Quando vejo críticos profissionais falarem de fotografia, soa como um checklist a ser completado. Parece que para soar profissional, o crítico fala de “movimentos de câmera”, “uso de cores”, “simbologia”, “fotografia”, etc. Não apenas tu explicou o quê, mas também o porquê. Ficou bastante claro

    Algo que gostaria de elogiar no seu post são os vídeos e referências que tu colocou. Era mais ou menos disso que eu falava quando fiz a observação sobre o trecho do Lynch lá no outro comentário. Fiquei muito inseguro para desenvolver e me senti igual aos críticos que falei acima ao usar um monte de texto para falar nada.

    Gruas são aqueles movimentos de câmera como os do De Volta para o Futuro, por exemplo, em que primeiro foca em algo no primeiro plano, como uma placa, e a câmera levanta para revelar uma estrada distante ou a cidade inteira? Adoro esses movimentos.

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  2. Oi Leonardo..! A vantagem do blog (em comparação com o livro) é a possibilidade de incluir todas essas referências né..! Vou ver se pego mais firme nisso.. de fato eu peco às vezes pela falta de paciência.. resumo um ponto achando que meia palavra basta, quando o ideal seria ter detalhado melhor.. No capítulo "Idealismo Corrompido", por exemplo, pensei em incluir exemplos pra cada uma das "estratégias", mas eram tantos itens que achei que seria um tédio (não só de escrever como também de ler os exemplos rsss), daí ficou sem.

    Isso mesmo.. a grua é esse "guindaste" com contrapeso, capaz de levar a câmera a vários metros de altura, fazer movimentos laterais, diagonais, etc. No De Volta para o Futuro isso é muito usado mesmo! Eu sempre imagino a câmera como tendo uma mini-plateia sentada dentro da lente.. e que ao fazer movimentos assim você está levando o público num "ride", hehe. abs!

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