(Capítulo 3 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)
Ao ver minha sobrinha de dois anos fascinada com um desenho na TV, tive uma reflexão sobre o que nos atrai à arte Idealista num nível primitivo, inconsciente. Num primeiro instante não poderia ser uma necessidade muito sofisticada a respeito de valores, objetivos de vida, senão uma criança tão pequena não teria uma atração tão natural por um desenho quanto um adulto tem por um filme. E também não poderia ser um desejo de admirar as virtudes do autor, apreciar qualidades estéticas. Isso vem depois, quando somos maiores e entendemos que há alguém por trás da obra — a criança nem sabe que o desenho tem um autor.
Num nível básico, a arte Idealista nos atrai porque ela nos oferece um escape para um universo mais compreensível, benevolente — um universo melhor adaptado para nossas mentes e nossa felicidade. Não digo “escape” no sentido de covardia, autoenganação. Mas no mesmo sentido de que uma casa é um “escape” do frio, do desconforto, de predadores e ameaças externas — algo que nos dá uma estrutura favorável à vida, que não é automaticamente ou perfeitamente fornecida pela natureza.
A realidade em si é infinitamente complexa (muito mais complexa do que a mente humana é capaz de apreender num único momento), o que resulta numa eterna busca por ordem, compreensão, simplicidade. O universo é também indiferente à vida (não necessariamente hostil, mas também nem sempre favorável, muito menos preocupado com ela ou interessado nela). A vida não tem um sentido intrínseco a não ser aquele que nós mesmos lhe damos. Na vida, nós somos ativos, e o universo externo parece apenas passivo, indiferente. A arte tem a capacidade de inverter isso, e fazer o universo externo parecer se tornar ativo e atender nossas necessidades. A arte nos faz ter um senso de que a vida tem um significado intrínseco, em que sentimos por um momento que somos participantes/jogadores dentro de um enredo maior. Por exemplo: se batemos o carro na vida real, o evento nos parece arbitrário, desnecessário, há um silêncio frio e incômodo acompanhando o impacto. Só no futuro, através de reflexão, é que talvez consigamos dar algum sentido ao evento e entender o que o causou (como diz Robert McKee em seu livro Story). Mas em um filme, se um personagem bate o carro, o evento é automaticamente acompanhado de uma emoção, de um sentido. Emoções e significados já estão presentes ali, no instante em que os eventos acontecem, dando um valor às coisas e um senso de estrutura que na realidade não haveria ou que demoraríamos para ver.
Uma criança pequena geralmente não se interessa por filmes. Por quê? Porque ela ainda não consegue absorver os valores por trás da história nem entender as complexidades do mundo adulto. Ela não entende princípios abstratos, não sabe como funciona um relacionamento amoroso, para que serve uma carreira. Ela ainda está num nível primário e concreto de consciência. Só entende de coisas e objetos simples — casa, comida, sol, carro, mamãe, cachorro etc. E num desenho animado, essas coisas e objetos são representados de maneira simplificada e benevolente. Não como eles realmente são na realidade: objetos com tonalidades e texturas complexas, interagindo com diversas luzes, reflexos, misturados com outros objetos que as crianças não sabem para que servem, animais que se comportam de maneira irracional etc. — mas como formas simples, quase minimalistas, com cores vivas, puras e agradáveis aos olhos: um universo simplificado (compreensível) e benevolente, de acordo com o tipo de capacidade cognitiva da criança.
Adultos já conseguem administrar um nível muito maior de complexidade do que uma criança. Ainda assim, a arte nos oferece essa visão de um universo simplificado e benevolente que nos dá prazer e nos ajuda a compreender o mundo e vê-lo como um lugar favorável à vida. A arte faz isso no nível concreto/visual/sensorial: imagens são fotografadas de maneira a criar certa ordem espacial, a direção de arte e o tratamento da imagem reduzem a paleta de cores a algo mais harmonioso e belo, a música transforma ruídos aleatórios em vibrações sonoras ordenadas, prazerosas ao ouvido, em harmonia com a narrativa. Mas a arte faz isso também no nível mais conceitual: seres humanos em filmes têm motivações claras e compreensíveis, representam arquétipos consistentes, possuem características sólidas que definem suas personalidades, a história tem uma estrutura planejada, começo, meio e fim, uma mensagem a ser extraída — algo muito diferente da complexidade e do aparente caos da nossa experiência cotidiana, em que as pessoas se comportam muitas vezes de maneira contraditória, os sentidos nem sempre são claros, diversas narrativas se entrelaçam e nem sempre são concluídas. Não que a vida não faça sentido. As pessoas agem sim com base em motivações, têm sim certas personalidades, os acontecimentos que vemos têm causas e consequências — a questão é que nem sempre é fácil enxergar isso no dia a dia. A arte tem esse poder de tornar o invisível visível, o abstrato em algo concreto e tangível.
Naturalismo e Experimentalismo (que irei discutir mais pra frente) são formas de arte que se rebelam contra essa necessidade básica da mente humana. São artes que querem mostrar o universo de maneira crua, como um lugar complexo, caótico, indiferente, negativo, ignorando ou às vezes até zombando da tentativa humana de compreender a realidade, de buscar beleza e ordem nas coisas. Contemplar o universo dessa forma caótica, sem filtro, não é uma necessidade humana primária. De certa forma, o Idealismo pode ser visto como a forma de arte mais essencial, mais pura e necessária à consciência humana, enquanto essas outras formas de arte são secundárias, não existiriam de forma independente, e existem apenas como uma reação contrária à arte Idealista, um ataque muitas vezes baseado em cinismo e em desilusões pessoais (o que, pensando bem, também é uma tentativa de dar ordem às coisas, mas não o tipo de ordem que irá gerar confiança para o espectador evoluir na vida e atingir seus objetivos, e sim uma “ordem” que servirá de racionalização para seus problemas e limitações, uma desculpa para ficar parado).
Como Rand já observou, embora o Idealismo seja muitas vezes acusado de ser um “escape”, na verdade é ele que melhor equipa o ser humano para viver, inspirando o tipo de virtudes de que precisamos para enfrentar nossos problemas e atingirmos nossos objetivos. Se a felicidade é possível, então é o Naturalismo (e outras formas de Não Idealismo) que representa um “escape” — uma permissão para abandonarmos nossos valores e fugirmos dos desafios ligados à busca de uma vida melhor.
Peppa Pig e Cidadão Kane na mesma imagem em um post sobre arte. Nunca pensei que veria isso...
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