Já apontei em dezenas de críticas nos últimos anos que o entretenimento hoje está dominado por valores como coletivismo, auto-sacrifício, renúncia, abnegação, e demonstra um desprezo cada vez maior por virtude, habilidade, sucesso, alegria, etc.
Como discuto no meu livro, existem 2 tipos básicos de espectadores: "aqueles que enxergam a arte como uma fonte de inspiração (que se sentem estimulados diante da projeção de valores positivos; diante de beleza, virtude, felicidade — diante da visão do ideal) e aqueles que buscam na arte primeiramente um conforto, um remédio contra as frustrações da vida, e que se sentem desmotivados pela visão do ideal." E existem também os 2 tipos de filmes correspondentes: "filmes que buscam inspirar o espectador vs. filmes que buscam confortá-lo. Enquanto o primeiro tipo é motivado pelo desejo de tornar a vida mais rica, interessante e prazerosa, o segundo é produzido para torná-la menos dolorosa. Enquanto um tipo pressupõe que o espectador está num estado positivo de consciência, querendo desfrutar a vida, o outro pressupõe que o espectador está num estado de fragilidade, inadequação, negação, tristeza, buscando algum tipo de consolo, escape ou racionalização. Enquanto um é como um banquete oferecido aos fortes, o outro é como um remédio ou analgésico oferecido aos fracos."
O mundo foi dominado pelo segundo tipo de espectador e de filme. E o problema é que quando esses espectadores saem do cinema, eles continuam operando sob o mesmo conjunto de valores em suas vidas pessoais. A pandemia (ou melhor: a reação mundial ao coronavírus) é o grande clímax disso tudo, e a prova de que as más ideias que vemos no entretenimento têm consequências graves no mundo real.
Pra mim já era nítido desde o início que muito da reação ao vírus — os lockdowns, a paralisação da economia, as máscaras, o fechamento dos cinemas, restaurantes, festas, os "cancelamentos" nas redes sociais — tinha a ver menos com a gravidade da pandemia do que com questões ideológicas e pressões sociais. Mesmo antes de termos grandes informações sobre o vírus, já havia uma predisposição e até um desejo de parar com tudo, de fechar empresas, trancar as pessoas em casa, impedir todos de continuarem com suas rotinas.
Não estou dizendo que acho o vírus inofensivo — apenas que a atitude das pessoas e do governo teria sido completamente diferente caso os valores predominantes fossem outros: caso houvesse um respeito maior por liberdade, direitos individuais, pelo trabalho, pela economia, pela felicidade, como havia algumas décadas atrás.
O vírus virou um pretexto para impor uma ética mundial de renúncia, de auto-sacrifício, e uma ferramenta pra controlar e reprimir aqueles que não queriam se sacrificar (as mensagens nos filmes não podiam fazer o serviço completo afinal; elas podiam apenas preparar o terreno, mas não parar o mundo sozinhas — seria sempre necessária uma mãozinha do governo).
Foi curioso observar que, mesmo depois que as pessoas já tinham parado de ir pro trabalho, de ir a restaurantes, cinemas, e estavam trancadas em casa, a campanha de repressão criava formas de persistir. Em determinado momento, lembro que se tornou politicamente incorreto pedir comida por delivery, pois você estaria colocando a saúde do entregador em risco. Chamar 2 ou 3 amigos em casa pra beber então, nem pensar. Em outro momento, veio o rodízio mais intenso de carros (você só podia sair dia sim, dia não de carro em São Paulo), e algum político explicou que isso era pra melhorar a qualidade do ar, o que ajudaria as pessoas com dificuldades respiratórias (!).
Teve uma semana que sempre que eu acordava, eu abria o celular pra já checar qual seria a proibição do dia. Quais daquelas poucas coisas que ainda restavam da minha rotina seriam consideradas condenáveis pelos "colegas" das redes sociais. E eles são muito criativos. Havia, acima de tudo, um desejo de impedir as pessoas de fazerem coisas prazerosas. Às vezes nem precisava estar relacionado à pandemia. Durante os protestos do George Floyd, teve um dia que me peguei com medo de postar uma simples foto no Instagram, pois o código era que você só deveria postar algo caso fosse um quadrado preto. Exibir seu rosto (o ato de assertividade mais básico do mundo) seria considerado "egoísta", "insensível", e atrairia olhares condenatórios não só no Instagram, mas também nas ruas, caso tirasse a máscara.
O importante nesses atos não é que seja algo racional, prático. O importante é o "simbolismo". É demonstrar que você está renunciando algo, tendo algum tipo de desprazer pessoal em nome do "bem coletivo". Fazer algo do jeito habitual é insensível, então qualquer mudança pra pior vale, mesmo que não faça sentido. Quando você vai ao Burger King e pede um sorvete de casquinha, por exemplo, eles avisam agora que irão virar a casquinha dentro de um copo de plástico. Por que? Pra te proteger? Não — pra estragar um pouquinho da experiência. A explicação oficial é que o funcionário não pode ter contato físico com o cliente, e como a casquinha não pode ser apoiada no balcão pro cliente pegar (se não ela tomba), sem o copinho plástico o funcionário teria que entregá-la diretamente na mão do cliente. Mas a funcionária já não pegou na casquinha pra colocar o sorvete dentro? Já não tocou no guardanapo que irá envolver a casquinha? E além disso, ela já não está de luva? Máscara? Capacete? Se um pedacinho da luva encostar momentaneamente na mão do cliente na hora de pegar a casquinha, que diferença isso fará? Por que, em vez de virar o sorvete no copinho, não aproveitar 1 desses copinhos, cortar o fundo, colocá-lo virado pra baixo no balcão, e criar um suporte temporário onde a casquinha possa ser encaixada pro cliente pegar? Ninguém nem tenta imaginar esse tipo de solução, pois isso tiraria toda a "graça" dos pequenos atos de abnegação. (Lembrando que o cupom fiscal eles te entregam na mão sem nenhum problema.)
No Natal e no Ano Novo, São Paulo voltou pra fase vermelha da pandemia, o que impediu o funcionamento normal de praticamente todo o comércio. Por que não impedir apenas as grandes festas de fim de ano, já que o problema é a aglomeração? (Não que eu seja a favor do governo proibir isso também). Que grande aglomeração ocorre em restaurantes ou cinemas durante esses dias, que necessite fechá-los? Eles já não estavam com capacidade reduzida, medidas de distanciamento, ordem de fechar mais cedo? Por que fechar totalmente? Não há uma boa razão. É só o ato "simbólico" de arruinar esse período marcado por alegria e diversão: ninguém deve ser feliz enquanto existem alguns sofrendo.
Tudo que simboliza prazer, diversão, liberdade, individualismo, se torna um alvo fácil hoje em dia. Bem antes da pandemia, lembrem como os canudos plásticos se tornaram um vilão na sociedade. O canudo não é uma coisa absolutamente vital, mas facilita a vida, é divertido, está muitas vezes associado a drinks, refrigerantes, milk-shakes, infância, momentos de alegria. É por isso que ele é vilanizado, enquanto outras coisas feitas de plástico (como luvas descartáveis) jamais serão da mesma forma. Luvas descartáveis nós associamos a doenças, médicos. Há algo de "altruísta" numa luva descartável que não há num canudo, por isso ela ganha um passe livre, moralmente falando. O problema não é o quanto algo objetivamente faz mal, e sim o que aquilo "representa". O carro é individualista, "elitista", então deve ser impedido, mesmo que gere menos aglomeração que um ônibus. Uma "aglomeração" de 10 amigos num apartamento causa indignação geral. Mas uma manifestação com centenas de pessoas nas ruas não necessariamente, desde que seja por uma causa de esquerda: assim como o problema do canudo não é de fato a poluição, o problema das festas particulares também não é exatamente a saúde pública. Se a mesma quantidade de plástico, ou a mesma quantidade de pessoas estivesse reunida mas em nome de algo emocionalmente associado a renúncia, a altruísmo, aos mais fracos (etc., etc., etc.) isso passaria batido.
Tudo isso já era previsível anos atrás — bastava observar as mensagens por trás dos principais filmes dos últimos anos, tanto dos grandes sucessos de público quanto dos de crítica. Os 2 grandes lançamentos do fim de 2020 foram Mulher-Maravilha 1984 e Soul, e ambos reforçam a ideia de que perseguir seus desejos é algo ruim, destrutivo para o mundo (mesmo quando se trata de algo inofensivo como querer ser um músico de jazz bem sucedido), e que renunciar suas vontades, seu trabalho, seus sonhos, em nome do "bem coletivo", é algo nobre e superior. Lembrem que esses filmes não foram desenvolvidos agora na pandemia. Eles já tinham sido concebidos meses e meses antes. A cultura já estava preparada e ansiosa por um lockdown anos antes de surgir qualquer vírus. E o perigo é que, como não é o vírus que está provocando essa mobilização sem precedentes, e sim as ideias e os valores predominantes na cultura, o clima de medo e proibição poderá continuar por muito tempo mesmo após a chegada da vacina.
Altruísmo/auto-sacrifício são "virtudes" morais aceitas tanto pela esquerda quanto pela direita, por isso pouquíssimas pessoas são capazes de se opor a essas medidas relacionadas ao vírus com convicção emocional e intelectual. E como são códigos morais irracionais e impraticáveis, todos que os aceitam acabam virando hipócritas — como o governador João Dória, que no fim do ano declarou fase vermelha em São Paulo, e no dia seguinte pegou um voo pra Miami pra curtir as férias com a família. Claro que depois ele voltou arrependido. Códigos morais que condenam o prazer, o auto-interesse, a felicidade, no fim sempre geram uma população de pessoas hipócritas, culpadas, inconsistentes, invejosas, que estão sempre "pecando" e se arrependendo no minuto seguinte — um mundo de Felipes Netos e Carlinhos Maias, sempre errando, se desculpando, e depois apontando o dedo pra mostrar que o outro errou mais.
Outro dia andando por São Paulo notei várias farmácias novas, algumas bem grandes, sendo abertas em locais privilegiados. Ao mesmo tempo lembrei dos cinemas fechados, da crise na indústria do entretenimento. Com isso me veio à mente a imagem de um futuro distópico curioso, onde grandes palácios agora são construídos para acomodar farmácias, onde tapetes vermelhos estão associados a inaugurações de hospitais e postos de saúde, onde toda a mídia está reservada para notícias relacionadas a medicamentos, testes de vacinas — e enquanto isso, as pessoas assistem a spin-offs enlatados de Star Wars no celular como melhor opção de entretenimento.