terça-feira, 29 de novembro de 2022

Diário - Novembro 2022

28/11 - Wandinha:

Vi os dois primeiros episódios da série nova da Netflix baseada na Família Addams (com direção/produção executiva de Tim Burton) e fiquei positivamente surpreso, não só com a qualidade da produção, mas também com a escrita. Em vez daquele conteúdo ralo, diluído, da execução genérica que costuma caracterizar produções para o streaming, temos aqui algo com um padrão mais elevado de qualidade, onde vemos capricho cena após cena, seja nos diálogos afiados, na direção de arte, na performance brilhante do Mãozinha, etc. Wandinha como personagem é um pouco unidimensional, mas Jenna Ortega está divertida e se encaixa no papel com perfeição.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Pinóquio

Bem superior artisticamente ao live-action da Disney que saiu também este ano — o enredo é mais rico em detalhes, mais bem costurado, as relações entre os personagens têm mais credibilidade e profundidade emocional... Mas claro que, se tratando de Guillermo del Toro (um cineasta incapaz de expressar valores positivos), isso tudo vem com um preço: temos aqui uma versão bem mais sombria do conto, onde Pinóquio está o tempo todo morrendo (há um fascínio pela morte que del Toro parece ter trazido do México em sua bagagem), enfrenta o fascismo, é engolido por uma "baleia" que, ao contrário das da Disney (que têm vísceras limpinhas), é bem asquerosa por dentro... Sem falar nos temas de fragilidade, imperfeição humana, da "efemeridade da vida" que dão o tom geral da produção.

Pinocchio / 2022 / Guillermo del Toro, Mark Gustafson

Satisfação: 5

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: Coraline e o Mundo Secreto (2009) / Kubo e as Cordas Mágicas (2016) / Festa no Céu (2014) / Frankenweenie (2012) / O Pequeno Príncipe (2015)

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Triângulo da Tristeza

Checando o Trivia do IMDb, me deparei com a seguinte curiosidade sobre o filme:

"Apesar do filme ser uma sátira de pessoas privilegiadas, o diretor/roteirista Ruben Östlund não queria que ele fosse maniqueísta. Ele não acredita na monstruosidade das pessoas ricas; pelo contrário, ele acha que elas normalmente têm bastante inteligência social, do contrário não teriam chegado tão longe."

Isso é quase como alguém fazer A Lista de Schindler e depois dizer "na verdade nós não quisemos falar mal dos nazistas". Mas talvez Östlund tenha sido honesto... Pois se você prestar atenção, não são apenas os super-ricos que são ridicularizados e demonizados no filme. O casal de influenciadores, por exemplo, ganhou de graça a passagem para o navio, e não está necessariamente nadando em dinheiro. Ainda assim, são ridicularizados, pois são bonitos, jovens, dentro do "padrão". A faxineira que inicialmente era boa, no fim se torna má, afinal no contexto da ilha deserta, ela se torna uma mulher importante, poderosa, por ser a única pessoa capaz de pescar, de fazer fogo. Ela não passa a ter dinheiro, mas passa a ter habilidades importantes para a sociedade, conquista certo respeito e status. Ou seja, talvez Östlund não odeie os ricos exatamente... O ódio dele é mais amplo. O que ele odeia é a capacidade humana em geral. Qualquer pessoa que tenha algum tipo de habilidade, virtude, que seja capaz de sobreviver, que tenha conquistado algo de valor, não seja alguém completamente impotente e desprezível. Odiar os ricos pra ele é muito clichê, ultrapassado. Isso era o que te dava a Palma de Ouro em Cannes até uns 2, 3 anos atrás. Agora, é necessário um nível mais profundo de niilismo e decadência espiritual pra receber tal honra.

Triangle of Sadness / 2022 / Ruben Östlund

Satisfação: 0

Categoria: AI

Filmes Parecidos: Força Maior (2014) / Parasita (2019)

Efeito Vertigo 3D

Uma ideia que tive há mais de 15 anos e ainda não vi realizada em nenhum filme (se eu estiver errado, me corrijam), é a de uma espécie de Efeito Vertigo (o famoso Dolly Zoom que Hitchcock usou em Um Corpo que Cai) só que utilizando recursos ópticos do cinema 3D.

Uma das coisas que nos encantam no cinema é que ele nos permite ir além de nossas limitações fisiológicas e olhar para o mundo de uma maneira impossível, nova. Nossos olhos têm uma série de características que são imutáveis — nascemos com uma lente "fixa", não podemos trocar de uma 35mm pra uma teleobjetiva, dar zoom em algo, ver em preto e branco, por exemplo, nem mesmo fazer mudanças de foco suaves, "borrar" fundos como faz uma lente de cinema, etc. 

O Efeito Vertigo de Hitchcock usa apenas 1 recurso que é de fato impossível para a visão humana: o zoom (o olho humano não pode dar zoom pois nós nascemos com uma "lente fixa" que impede variações na distância focal). O outro elemento do Efeito Vertigo é apenas o ato de se aproximar ou se afastar de um objeto, algo que todos podemos fazer. Mas ao sincronizar os 2 movimentos, Hitchcock criou um efeito visual ainda mais estranho do que o simples zoom.

Uma outra característica que é fixa nos seres humanos, mas não em câmeras de cinema, é a distância entre o olho direito e o olho esquerdo, que é responsável pela nossa interpretação do tamanho e da distância de um objeto em relação a nós.

Da mesma forma que uma lente zoom pode criar um efeito "alienígena" mudando a distância focal e fazendo uma imagem ampliar ou diminuir na tela, alterar a distância entre o olho direito e o olho esquerdo poderia criar um efeito visual igualmente estranho em filmes 3D.

Pra ilustrar melhor a ideia, imagine uma esfera ocupando 80% do seu campo de visão. Mas imagine 2 cenários diferentes: um caso onde tal esfera é uma bola de basquete a 10 cm do seu rosto, e um caso onde a esfera é o planeta Terra, a milhares de quilômetros do seu rosto (imagine você em uma estação espacial). O tamanho relativo que as duas esferas ocupariam seria idêntico nos dois casos. Porém, no primeiro cenário, a impressão que você teria seria a de um objeto pequeno próximo a você, e no segundo cenário, a de um objeto gigantesco muito longe. Isso ocorre por causa da triangulação que nosso cérebro faz, comparando a imagem do olho esquerdo com a do olho direito, e calculando a distância e o tamanho aproximado do objeto.

Filmes 3D são gravados com 2 câmeras, cada uma gerando uma imagem para um olho. Porém a distância entre câmera A e câmera B normalmente é fixa, e busca simular a distância natural entre os olhos humanos. Se você afastasse demais as 2 câmeras, e filmasse um automóvel, por exemplo, você teria a impressão de que se trata de uma miniatura de um carro, em vez de um carro em tamanho normal.

Então imagine o que ocorreria se você fizesse um afastamento gradativo da câmera A e da câmera B, mantendo o foco e o enquadramento num mesmo objeto. Você veria subitamente um objeto grande se "transformando" em uma miniatura, ou uma miniatura se transformando num objeto grande, porém com seu tamanho relativo na tela permanecendo igual.

Se filmássemos, por exemplo, o planeta Terra do espaço com uma câmera 3D que tivesse essa capacidade de afastar as duas lentes, e fizéssemos as câmeras começarem a gravar o take próximas uma da outra (simulando a visão humana), mas irem se afastando até ficarem centenas de quilômetros distantes (o que seria mais simples de se fazer em animação 3D), o resultado seria que o espectador veria, ao longo de um único take, algo gigante como o planeta Terra, mudar de aspecto até parecer um miniplaneta do tamanho de uma bola de basquete.

Pelo que vi em imagens de bastidores do novo Avatar, o James Cameron desenvolveu câmeras 3D com maior capacidade de controle sobre essa distância entre olho direito / olho esquerdo, por isso tive o impulso de registrar minha "invenção" aqui — pois se alguém como o Cameron colocar essa ideia em prática primeiro, ninguém vai acreditar que eu tive ela anos antes, hehe.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Desencantada

Encantada pra mim foi um dos melhores filmes originais da Disney dos anos 2000, então acho que ele merecia uma sequência mais sofisticada, lançada nos cinemas, em vez desta produção com cara de lançamento direto pra VHS. E o que dá essa impressão não é apenas a cenografia, os efeitos especiais mais simples, as canções mais genéricas, mas principalmente a trama pouco grandiosa, que foca em problemas pequenos que Giselle enfrenta ao mudar para uma cidadezinha chamada Monroeville com sua família. É tipo quando criam uma série de TV animada baseada num blockbuster, mas daí em vez de tramas envolvendo acontecimentos épicos, conflitos profundos, você vê historinhas mais cotidianas, tipo "o primeiro dia de escola do filho do herói".

O roteiro tem umas escolhas esquisitas que tornam a história menos memorável também. Começa sugerindo que o "felizes para sempre" da parte 1 não durou muito, e após uns anos, Giselle passou a ter uma vida frustrante, sem magia, como a da maioria das mães modernas. Porém, quando Amy Adams surge na tela pela primeira vez, ela parece quase tão encantada e vendo tudo em cor-de-rosa quanto antes. Não há contraste o suficiente pra justificar o "Desencantada" do título, e a necessidade de ir embora de Nova York. Mais pra frente, quando Giselle se vê frustrada também em Monroeville, ela usa uma magia pra transformar a cidade num lugar mágico como Andalasia — só que a mudança também não é tão radical a ponto de criar um conceito memorável... Pois antes mesmo da transformação, Monroeville já parecia um lugar cenográfico, utópico. Narrativamente, costuma ser muito mais interessante você ir de um extremo para o outro nesse tipo de situação, em vez de apresentar variações ambíguas de um ambiente ou personagem.

SPOILERS: Depois disso, a história basicamente se resume a Giselle tentando desfazer o feitiço, e se torna um desses enredos onde não esperamos nada realmente emocionante ou positivo no final, apenas a eliminação de um erro (e a "cura emocional" — o momento clichê onde alguém abraça alguém, derrama uma lágrima, e feixes mágicos resolvem tudo). A ideia basicamente é que o poder corrompe, e que a busca pela perfeição é perigosa (Giselle começa a ser seduzida pelo "lado negro da força" e a se tornar uma madrasta má — o que faz com que a sequência explore menos a personalidade ingênua de Giselle, que é onde Amy Adams brilha mais). Em vez de divertir, o filme vem com uma daquelas mensagens "responsáveis" sobre aceitar as adversidades da vida, ser comedido, não exagerar muito na busca pela felicidade. É uma história "super excitante" sobre uma família que vai de um padrão de vida nota 7 pra um padrão de vida nota 8.5. A vida em Nova York não parecia particularmente terrível, nem mesmo a vida em Monroeville antes da transformação. Nada do que ocorre parece necessário. E o conflito entre Giselle e a filha/enteada é tão vago que no fim nem entendemos direito qual foi a grande "cura", o que mudou fundamentalmente entre as duas que tornará tudo melhor agora.

Disenchanted / 2022 / Adam Shankman

Satisfação: 5

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Abracadabra 2 (2022) / Espelho, Espelho Meu (2012) / Frozen II (2019) / Cinderela (2021)

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Riquezas sem Lastro

Uma série de tendências que observo na cultura atual têm algo em comum: elas rejeitam o conceito de "lastro" — a noção de que é necessário haver valor, benefícios reais para a vida humana, para que algo possa ser considerado uma riqueza de fato.
Já falei muito do efeito disso no cinema — de como os estúdios aprenderam a se sustentar com filmes que não oferecem real valor para o espectador. Usam personagens/marcas/obras que tinham valor no passado pra validar novas produções (adaptações, sequências, reboots, etc.), mas essas não têm o mesmo talento, nem o mesmo poder de inspirar o público. Têm apenas embalagens atraentes, são desenhadas pra convencer o espectador a pagar pelo ingresso, não para satisfazê-lo, não para impactar sua vida positivamente ou gerar valor espiritual.

Dando um exemplo de outra área, outro fenômeno atual que também ilustra essa rejeição à ideia de lastro é a febre das criptomoedas. Independentemente do que você acha sobre o potencial das criptomoedas de se tornarem o dinheiro oficial do futuro, é difícil negar que muita gente envolvida nesse negócio hoje se interessa por criptomoedas pois elas parecem uma maneira de ficar rico sem ter que criar algo de valor primeiro. Alguns fãs de criptomoedas parecem animados com a ideia de que as economias das pessoas no futuro não terão mais uma âncora em valores objetivos; poderão expandir ou encolher radicalmente, o tempo todo, com base em flutuações aleatórias do mercado.

O mundo do marketing digital e dos influenciadores digitais é outro campo repleto de pessoas atraídas pela ideia de riqueza sem lastro. As redes sociais deram o poder às pessoas comuns de usarem suas personalidades como forma de ganhar dinheiro e de ficarem conhecidas (algo que no passado era reservado para personalidades de TV, artistas, etc.). Isso criou uma cultura onde muitos acreditam que ter seguidores e ter alcance é a chave para o sucesso. E no mundo das redes sociais, para atrair seguidores ("clientes"), sua imagem e seu carisma contam mais do que aquilo que você faz (a qualidade de seus produtos e serviços). Antigamente, acreditava-se que primeiro você tinha que se tornar bom em algo, criar algo de valor, pra que daí você fosse notado e fizesse sucesso. Na era das redes sociais, você primeiro tem que fazer sucesso, e só depois as pessoas olharão pro que você faz (o sucesso inicial surge com base em personalidade, identificação pessoal, carisma). Até mesmo pra que publiquem um livro seu, hoje as editoras dão preferência pra autores que tenham já um público online. Mas como o autor ganhou público em primeiro lugar, se ele não teve nada publicado? Bem... Podemos imaginar o caso de um escritor que tenha começado publicando textos menores na internet, e foi ganhando público aos poucos com base no mérito desses textos. Mas a verdade é que se alguém apenas publicar textos, não for uma personalidade interessante mostrando o rosto em Reels, Stories, criando identificação pessoal através de estilo de vida, identidade social, essa pessoa demorará muito mais pra se tornar relevante.

Nos anos 80, quando surgiu a MTV, muitos astros do rádio se rebelaram, pois agora, não bastava mais você ser um bom músico, você tinha também que ser fotogênico, performático, ter um estilo atraente, se não, não faria tanto sucesso no novo cenário musical. Não dou tanto mérito pras queixas desses músicos, pois no ramo do entretenimento e em artes como a música, acho que imagem e personalidade são coisas importantes. Claro, seria bom se houvesse mais espaço para músicos habilidosos, porém não-performáticos. Mas os músicos que juntam as duas coisas, na minha visão, oferecem um produto diferenciado. Com as redes sociais, um fenômeno parecido com o da MTV está ocorrendo: imagem/personalidade começaram a importar muito mais do que para as gerações anteriores. O problema é que agora isso não está restrito ao mundo do entretenimento. Estamos falando da economia e da sociedade como um todo. Pra fazer sucesso em inúmeras áreas, é necessário que você tenha uma personalidade cativante, do tipo que gera engajamento nas redes sociais (de preferência que esteja em harmonia com os ideais políticos considerados corretos pela cultura mainstream), pois redes sociais são movidas mais por personalidade/atitude/identificação pessoal do que por bons produtos. Por isso, uma série de coisas que fazem sucesso hoje não têm verdadeiro lastro, pois o sucesso não foi baseado primeiramente em qualidade, na eficácia de determinada coisa em melhorar a vida humana, e sim no carisma do vendedor.

Como todos temos filmadoras no bolso, e nós consumimos tudo através de telas, a questão da imagem vem se tornando mais e mais relevante, até pro que não devia. Em De Volta para o Futuro, há uma piada genial que mostra que já nos anos 80 existia essa preocupação: quando o Doc Brown dos anos 50 vê a filmadora de Marty pela primeira vez, ele diz: "Um estúdio de televisão portátil! Não surpreende o presidente de vocês ser um ator (Ronald Reagan), ele precisa aparentar bem na televisão!". Ou seja, o que estou dizendo aqui não é novidade, é apenas uma evolução do mesmo fenômeno, só que potencializado ao infinito por conta da internet, celulares e das redes sociais.

É como se nos últimos séculos, tivéssemos ido de uma era onde apenas qualidade importava (imagine um compositor no século 18), pra uma era onde qualidade começou a ter que "negociar" um pouco mais com o fator imagem/personalidade (com o surgimento da televisão, por exemplo), pra uma era onde imagem/personalidade começaram a importar um pouco mais do que qualidade, e agora estamos chegando no ponto onde imagem/personalidade é tudo o que importa — seu produto pode ser um lixo, mas se você tiver a personalidade certa, uma atitude que gere engajamento com determinada tribo, você terá o mercado aos seus pés. Passamos de uma sociedade que priorizava produtividade para uma sociedade onde sua popularidade é a maior riqueza de todas. Até mesmo em áreas que nada têm a ver com entretenimento, como política, ciência e jornalismo, dependem cada vez mais de personalidade, não de competência, experiência, resultados, fatos, pra terem relevância. Estudos científicos ou argumentos políticos que se tornam dominantes na cultura são aqueles que são divulgados em jornais, podcasts, e que são endossados por intelectuais e "autoridades" online. Porém esses intelectuais só se tornam influentes se eles forem personalidades cativantes - entertainers, acima de tudo - não experts, até porque falar a verdade é o pior negócio possível para atrair grandes massas.

Com esse potencial de lucrar com base em seguidores, imagem pessoal, você vê uma série de fenômenos bizarros, como influenciadores que ficam ricos vendendo cursos online, que te ensinam a ficar rico vendendo seus próprios cursos online. Mas sobre o que é tal curso? Como o tal influenciador fez sucesso em primeiro lugar pra provar sua competência? Criou algo de valor? É realmente expert em algo? Não... Fez sucesso basicamente com sua capacidade de comunicação, sua personalidade, carisma em vídeo, habilidade de encantar seguidores. Agora, ele usa essa base de seguidores pra vender cursos. Mas seus cursos não vendem pois são realmente os melhores, os que trazem os melhores resultados. E sim porque os seguidores gostam do vendedor, e estão dispostos a comprar tudo que ele oferece. Se ele vendesse maquiagem, camisetas, pó de café, seus fãs comprariam da mesma forma. Quando você consome produtos desse tipo, o valor que você está recebendo no fundo é entretenimento ou conforto emocional: a sensação agradável de ver/se conectar com uma pessoa atraente que sabe se comunicar, que fica bem em vídeo e fala coisas que te deixam num humor positivo, reafirmam sua identidade. Mas não é o produto que de fato irá te trazer o melhor conhecimento, os melhores resultados e benefícios, pois o sucesso do vendedor não foi baseado em seus resultados, e sim em sua personalidade.

Seres humanos sempre tentaram pegar atalhos, buscar o caminho mais fácil, se dar bem manipulando o sistema. Há séculos que marketeiros tentam fazer algo de baixo valor parecer mais atraente; bancos centrais abandonaram o padrão-ouro há décadas, e não é de hoje que imprimem dinheiro de maneira irresponsável, com a mentalidade de quem coloca água no feijão pra poder "alimentar" mais pessoas (ou pra roubar nutrientes dos outros sem tornar isso evidente). A questão é que agora, certas tendências filosóficas na cultura (como o Declínio da Objetividade, o identitarismo e o desprezo por habilidade/mérito em favor de diversidade, causas ideológicas), junto com certas facilidades tecnológicas, potencializaram esse fenômeno, e estão criando uma elite de "barões ocos", um mundo onde milhões de pessoas enriquecem, bilhões circulam de mãos em mãos, mas pouca riqueza real é gerada no processo: poucas inovações, poucas ideias de qualidade, poucas melhorias no padrão de vida humano.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Passagem

Causeway cartaz críticaÉ um desses dramas que beiram o Naturalismo, sobre pessoas "quebradas" dando apoio umas às outras, tentando recolher seus cacos enquanto lidam com as dificuldades da vida. A personagem da Jennifer Lawrence sofreu uma lesão cerebral no Afeganistão, o que resultou em sérios problemas motores, e agora ela volta a morar com a mãe na cidadezinha em que cresceu (um lugar cheio de memórias dolorosas) enquanto tenta se reabilitar socialmente. Se pensarmos no Mapa de Valores, toda a ênfase do filme está em valores negativos como Repressão e Malevolência, não em valores positivos. Há uma cena breve que resume bem o clima do filme: Lawrence sai com seu novo amigo pra tomar sorvete, numa rara tentativa de se animar, mas termina derrubando o sorvete no chão por conta de seus problemas motores (uma forma simbólica e eficiente de mostrar valores como Fragilidade/Malevolência/Repressão superando Autoestima/Benevolência/Excitação). Seu amigo é um mecânico que perdeu a perna num acidente de carro trágico que arruinou sua família. O sofrimento é o que une os dois. O irmão de Lawrence, responsável por algumas de suas memórias traumáticas na cidade, está na cadeia por tráfico de drogas, e é deficiente auditivo. O filme não exagera na tragédia, não chega a deprimir, mas também não inspira — no máximo serve como consolo pra pessoas em situações análogas. Mas pelo menos não é um filme malfeito, superficial. O elenco está bem, e há diálogos maduros que tornam o filme interessante como estudo psicológico/estudo de personagem.

Causeway / 2022 / Lila Neugebauer

Satisfação: 6

Categoria: IC / NI

Filmes Parecidos: Imperdoável (2021) / O Som do Silêncio (2019) / Manchester à Beira-Mar (2016) / Reencontrando a Felicidade (2010)

Armageddon Time

Armageddon Time cartaz criticaNão vi muitos filmes do James Gray, mas sempre tenho uma sensação parecida quando surge um filme dele: à primeira vista, parece um filme tradicional, acessível, do tipo que seria indicado a Oscars nos anos 80. Mas ao mesmo tempo, fica uma impressão estranha de que não se trata de um filme mainstream de fato... Pois se o filme fosse tudo aquilo que ele promete à primeira vista, não seria um filme pouco comentado, passando apenas em salas alternativas. Preciso ainda assistir Era uma Vez em Nova York, Z: A Cidade Perdida... Mas Armageddon Time me esclareceu um pouco essa questão: Gray parece ser desses cineastas mais interessados em política do que em arte/entretenimento de fato. Mas que, por algum motivo, não se permite assumir isso e abandonar suas pretensões de ser um cineasta comercial. Então externamente, ele finge que está fazendo um filme convencional, pro grande público, mas é tudo uma desculpa pra ele inserir no meio da história seus comentários sociais, suas críticas ao capitalismo, etc. E o problema pra mim não é nem tanto a presença desses comentários, e sim o fato dele não ser muito empenhado (ou bom) no lado artístico do filme. As atuações, a fotografia, a direção, os diálogos... é tudo bem mediano, preguiçoso, sem o encanto e o padrão de excelência de Hollywood (o garotinho principal não é nada gostável, a imagem é exageradamente escura, há escolhas bem esquisitas de música...). Quem esperar um drama familiar pra chorar, com personagens cativantes, atuações memoráveis, algo na linha Gente como a Gente (1980), sairá frustrado. No fundo, a energia toda do filme está na mensagem sobre racismo estrutural, em sugerir que o sucesso dos brancos se deve a certos privilégios enraizados na sociedade, que meritocracia é uma ilusão, que a era Reagan foi um grande pesadelo para os EUA (e que haveria paralelos entre Reagan e Trump), etc. Só que muito disso é apresentado de forma casual, como se fosse apenas um pano de fundo pra outra coisa mais importante (o filme usa aquela tática batida que mencionei na crítica de Marte Um, de mostrar uma TV na sala passando alguma notícia, achando que isso já é o suficiente pra dar um subtexto político ao filme), só que essa "outra coisa" (o drama familiar, a amizade entre os dois garotos) não é forte o bastante pra sustentar a história.

Armageddon Time (2022 / James Gray)

Satisfação: 4

Categoria: NI / AI

Filmes Parecidos: Licorice Pizza (2021) / A Lula e a Baleia (2005) / Projeto Flórida (2017) / Belfast (2021) / Marte Um (2022)

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Pantera Negra: Wakanda para Sempre

Pantera Negra Wakanda para Sempre poster critica
Após um começo interessante e uma sequência divertida num navio, que te dá a impressão de estar vendo um filme de desastre / invasão alienígena, o filme cai pro mesmo nível de mediocridade e enrolação dos roteiros padrão da Marvel (vai nos transportando dos EUA pra Wakanda, pro Haiti, pro México, onde vemos uma série de reuniões que não servem pra nada). Como se Wakanda já não oferecesse fantasia o bastante pra uma franquia só, o filme agora inventa um reino subaquático com homens-peixe que usam baleias como transporte, encantam marinheiros com hipnose sônica, têm um líder com mini-asinhas nos pés que são fortes o bastante pra fazê-lo voar na velocidade de aeronaves... Acho que nem vendo um desenho da She-Ra você se sente tão infantilizado quanto com as coisas que esse filme quer que você compre (a erva criada em impressora 3D que te transforma em Pantera Negra é outra dessas ideias estranhas). Tudo isso com muita propaganda woke, claro — há toda a exaltação da África, de culturas místicas primitivas (os EUA e o capitalismo são sempre o problema, embora o filme tome cuidado pra não rotular nenhuma nação como "boa" ou "má", mesmo aquelas que iniciam ataques militares — são apenas culturas diferentes, cada uma com suas verdades, seus erros e acertos). O filme, agora sem Chadwick Boseman, tem apenas mulheres negras empoderadas como protagonistas, incluindo uma garota de 19 anos chamada Riri que tem a personalidade de uma TikToker, mas temos que acreditar que é uma das cientistas mais brilhantes do mundo, a única pessoa capaz de construir a máquina que detecta Vibranium, e que de quebra usa um traje voador estilo Homem de Ferro que ela mesma construiu (SPOILER: a personagem da Angela Bassett, que é a alma do filme, sacrifica sua vida pra salvar esta personagem insuportável). Há até algumas sugestões de lesbianismo — as mulheres são tão masculinizadas que no fim, quando as heroínas se despedem, Shuri presenteia Riri com um carro estilo Velozes e Furiosos, num gesto máximo de amizade, e Riri convida Shuri pra ir a Chicago com ela assistir a um jogo dos Bulls. O filme tenta extrair algumas lágrimas com homenagens a Chadwick, que são aceitáveis e esperadas, porém não passam dessas táticas da Marvel (tipo cenas pós-créditos) pra satisfazer os fãs no final não com base em méritos narrativos/dramáticos do próprio filme, mas em fatores externos à produção.

Black Panther: Wakanda Forever / 2022 / Ryan Coogler

Satisfação: 4

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Aquaman (2018) / Thor: Amor e Trovão (2022) / Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022)

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

My Policeman

Lembro de uma entrevista em que o James Cameron falava da importância (em Titanic) de fazer a plateia superar rapidamente a impressão de estar vendo um filme de época chato, onde as pessoas falam diferente, se vestem diferente, pra que ela pudesse realmente se envolver na história subjetivamente. Ele entendia que, para o espectador, é difícil se identificar com uma "pessoa de época", com esses arquétipos artificiais que só existem na ficção, com os rótulos que projetamos sobre pessoas que não conhecemos bem... Pois no fundo, sabemos que todo ser humano tem uma mesma essência, é motivado por coisas familiares, e até que você exponha isso, um personagem não parecerá real para o público. Durante a maior parte do tempo, My Policeman falha justamente neste ponto. Ele parece querer mostrar "pessoas de época" agindo de maneira formal, de acordo com os costumes de um período, e contar uma história de um ponto de vista externo, mantendo certa distância entre o público e os personagens. Ninguém é especialmente carismático; é difícil de entender a atração de Tom tanto por Marion quanto por Patrick, e Patrick parece se atrair por Tom mais com base em fetiche do que em sentimentos mais profundos. É difícil também entender a lógica de Marion trazer Patrick pra viver com eles na casa (depois que eles estão mais velhos) sem o consentimento de Tom, considerando o passado delicado dos três. Não é um filme vazio, desinteressante, mas ele funciona melhor como retrato de uma cultura, dos preconceitos vividos por homossexuais em décadas passadas, do que como uma história de amor arrebatadora pra você se emocionar.

My Policeman / 2022 / Michael Grandage

Satisfação: 6

Categoria: NI / I-

Filmes Parecidos: Carol (2015) / 45 Anos (2015) / Me Chame pelo Seu Nome (2017)

Weird: The Al Yankovic Story

Acho que existe um erro conceitual básico no filme. A única parte em que o humor fez sentido pra mim foi nos créditos finais, onde vemos montagens do verdadeiro Al Yankovic em situações absurdas, ao som de uma trilha dramática. Assim como no trailer falso criado pelo Funny or Die em 2013, é divertida a ideia de contar a história de alguém como Weird Al Yankovic com o tom pretensioso e melodramático que se contaria a história de um artista como Freddie Mercury ou Ray Charles. (Me lembra de quando eu era adolescente, que a gente brincava que se a Carla Perez morresse, iriam fazer uma versão lenta da "Melô do Tchan" pra algum artista respeitado cantar no funeral, como era comum na época.). O humor viria do choque entre o tom pomposo da narrativa, e o teor não-sério do artista. Só que o filme Weird não tem esse tom melodramático consistente que seria necessário pra torná-lo uma paródia. Ele começa com a mesma atitude que uma biografia honesta sobre a carreira de Weird Al teria — o tom é descontraído, irônico, mas ainda sério. Daí, no meio disso, tenta-se inserir piadas que só funcionariam no contexto de uma paródia completamente nonsense. Outro erro é tentar fazer graça exagerando as conquistas de Al... Mostrá-lo chegando no topo das paradas, vencendo Grammys, conhecendo celebridades como Madonna, tendo momentos de inspiração, como se isso em si fosse absurdo. Se Al fosse uma figura desprezível, tivesse sido totalmente insignificante no meio da música, sugerir esse tipo de sucesso poderia ter alguma graça. Mas Al de fato ganhou vários discos de platina, de fato venceu Grammys, teve sacadas criativas que resultaram em grandes hits... Onde está a piada, então? Será que o filme tem uma visão tão baixa da comédia que, pra ele, um comediante não poderia ser tema de uma história inspiradora de sucesso? Pra mim não funcionou nem como paródia, nem como biografia (até onde entendi, pouco do que acontece no filme reflete a história de Al).

Weird: The Al Yankovic Story / 2022 / Eric Appel

Satisfação: 4

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Meu Nome é Dolemite (2019) / Artista do Desastre (2017) / TV Pirada (1989) / O Mundo de Andy (1999) / Isto é Spinal Tap (1984)

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O Enfermeiro da Noite

Uma das formas de fugir do Idealismo sem corrompê-lo é fazer o que este filme faz: contar uma história dramática, cheia de suspense, mas evitando qualquer elemento de espetáculo — conduzindo a trama de maneira tranquila, sem criar tensão ou expectativa demais (em vez de segurar informações pra surpreender, o roteiro já vai revelando suas cartas sem muita cerimônia), e sendo bem contido na direção (pouco é feito pra dar cor ou tornar o filme impactante esteticamente). Ele apenas conta a história de forma simples, objetiva — mas como se trata de uma história envolvente por si só, e os atores estão ótimos (Eddie Redmayne nasceu pra fazer esse tipo de personagem), acaba sendo uma experiência satisfatória.

The Good Nurse / 2022 / Tobias Lindholm

Satisfação: 7

Categoria: I-

Filmes Parecidos: A Caça (2012) / Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal (2019) / Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011) / Spotlight: Segredos Revelados (2015)

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Pearl | Crítica

Pearl filme crítica cartaz
É mais fácil perdoar as burrices de um filme quando ele é despretensioso e nunca prometeu nada. Agora imagine um filme que pretende se destacar justamente por ter uma linguagem cinematográfica conceitual, cheia de referências ao cinema clássico, mas daí comete uma série de erros justamente nesta área, provando uma enorme ignorância sobre cinema e sobre a cultura americana.

O filme começa romantizando uma região rural dos EUA, com uma fotografia estilo Technicolor, widescreen CinemaScope, créditos com fonte caligráfica e uma trilha sonora melodramática, tudo parecendo ironizar o cinema dos anos 50 (de diretores como Douglas Sirk). Só que pouco depois, descobrimos que não estamos nos anos 50, e sim em 1918, numa época em que o cinema não tinha nem cor, nem widescreen, nem trilha sonora. Quando conhecemos a protagonista, as referências passam a flertar com O Mágico de Oz — um filme de 1939 que também não tem nada a ver com a Hollywood da era muda. Até aí você ainda poderia imaginar que essa salada de referências foi proposital, faz parte do "conceito" do cineasta, mas quando Pearl diz que seu sonho é ser uma dançarina como as que ela vê nos filmes, e mostra ela indo ao cinema assistir a um musical em 1918 — quase uma década antes da invenção do cinema falado — o filme começa a parecer simplesmente tolo.

A ideia de Pearl ser uma jovem de classe média, que sonha em ser famosa, e está ansiosa para passar numa audição onde ela precisa ser "perfeita", é um clichê tirado da cultura dos anos 80. Não é nada convincente a maneira como o filme insere essa narrativa de busca pelo estrelato numa fazenda do Texas em 1918 (quase nunca vemos Pearl ensaiando, além disso o show-business na época ainda nem era um indústria elitizada, glamourosa, como se tornou umas décadas depois). Outra coisa bizarra é Pearl falando em certos momentos sobre querer fazer turismo na Europa, como se isso fosse uma viagem casual pra se fazer na época, ainda mais com a Europa devastada após a 1ª Guerra e todo mundo fugindo de lá para os EUA. Pearl conversa sobre isso com seu date — um rapaz que trabalha como projecionista num cinema local, mas apesar disso se veste como um executivo de sucesso e tem um carro próprio. Todos esses detalhes vão tornando o universo do filme totalmente irreal, e reforçando essa ideia de que o diretor não tem muita noção do que está fazendo.

A caracterização de Pearl é igualmente incongruente. Os grandes vilões do cinema são memoráveis pois refletem sempre algum tipo de distúrbio psicológico reconhecível, um traço de caráter que vemos na vida real, só que levado ao extremo. Hannibal Lecter ou HAL-9000 representam as pessoas de racionalidade extrema, mas que não sentem empatia. Annie Wilkes representa o fanatismo e os delírios de grandeza (que muitas vezes encobrem um ego frágil). Na medida em que esses traços são reconhecíveis, se relacionam com alguma patologia real, o vilão ganha credibilidade. Mas Pearl parece mais baseada num estereótipo do cinema clássico do que num perfil psicológico. Ela é basicamente uma Dorothy — uma menina simples do campo, sonhadora, ingênua — que de vez em quando muda de personalidade e comete atos grotescos sem explicação alguma. A graça parece estar puramente na subversão do estereótipo, como esses filmes que pegam figuras como Papai Noel ou Ursinho Pooh e os transformam em serial-killers só pra fazer graça (mais pro final, durante um monólogo de vários minutos, que serve mais como exibicionismo técnico, Pearl exibe uma nova faceta mais consciente, honesta, madura, que parece incompatível tanto com sua versão "Dorothy" quanto com sua versão "Psycho").

A intenção do cineasta parece ser a de fazer uma crítica ao "sonho americano", tornar o modelo de perfeição dos anos 50 o vilão da história (embora o filme se passe nos anos 10), e mostrar Pearl como uma vítima do sistema, mais ou menos como o Coringa. Só que ao contrário de Coringa (2019), o filme não tem nem o personagem e nem a ambientação certa pra tornar esta crítica minimamente plausível. A cena final, com Pearl sustentando um sorriso forçado, basicamente diz: "veja como a cultura americana oprimia as mulheres e as forçava a serem donas de casa submissas e educadas". É uma ideia que parece totalmente deslocada em relação à personagem, à trama, e que caberia melhor num filme como Não Se Preocupe, Querida (que aliás, é igualmente tolo e com referências culturais sem sentido — mostra coregorafias geométicas filmadas de cima, estilo Busby Berkeley, como se tivessem a ver com a estética dos anos 50). 

Como terror/slasher também não dá pra esperar muita coisa, afinal se trata de um filme da A24, que não tem o menor compromisso em satisfazer o público com base em expectativas de gênero.

Pearl / 2022 / Ti West

Satisfação: 3

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: X (2022) / Saint Maud (2019) / Rua do Medo: 1994 (2021)