Uma série de tendências que observo na cultura atual têm algo em comum: elas rejeitam o conceito de "lastro"
— a noção de que é necessário haver valor, benefícios reais para a vida humana, para que algo possa ser considerado uma riqueza de fato.
Já falei muito do efeito disso no cinema — de como os estúdios aprenderam a se sustentar com filmes que não oferecem real valor para o espectador. Usam personagens/marcas/obras que tinham valor no passado pra validar novas produções (adaptações, sequências, reboots, etc.), mas essas não têm o mesmo talento, nem o mesmo poder de inspirar o público. Têm apenas embalagens atraentes, são desenhadas pra convencer o espectador a pagar pelo ingresso, não para satisfazê-lo, não para impactar sua vida positivamente ou gerar valor espiritual.
Dando um exemplo de outra área, outro fenômeno atual que também ilustra essa rejeição à ideia de lastro é a febre das criptomoedas. Independentemente do que você acha sobre o potencial das criptomoedas de se tornarem o dinheiro oficial do futuro, é difícil negar que muita gente envolvida nesse negócio hoje se interessa por criptomoedas pois elas parecem uma maneira de ficar rico sem ter que criar algo de valor primeiro. Alguns fãs de criptomoedas parecem animados com a ideia de que as economias das pessoas no futuro não terão mais uma âncora em valores objetivos; poderão expandir ou encolher radicalmente, o tempo todo, com base em flutuações aleatórias do mercado.
O mundo do marketing digital e dos influenciadores digitais é outro campo repleto de pessoas atraídas pela ideia de riqueza sem lastro. As redes sociais deram o poder às pessoas comuns de usarem suas personalidades como forma de ganhar dinheiro e de ficarem conhecidas (algo que no passado era reservado para personalidades de TV, artistas, etc.). Isso criou uma cultura onde muitos acreditam que ter seguidores e ter alcance é a chave para o sucesso. E no mundo das redes sociais, para atrair seguidores ("clientes"), sua imagem e seu carisma contam mais do que aquilo que você faz (a qualidade de seus produtos e serviços). Antigamente, acreditava-se que primeiro você tinha que se tornar bom em algo, criar algo de valor, pra que daí você fosse notado e fizesse sucesso. Na era das redes sociais, você primeiro tem que fazer sucesso, e só depois as pessoas olharão pro que você faz (o sucesso inicial surge com base em personalidade, identificação pessoal, carisma). Até mesmo pra que publiquem um livro seu, hoje as editoras dão preferência pra autores que tenham já um público online. Mas como o autor ganhou público em primeiro lugar, se ele não teve nada publicado? Bem... Podemos imaginar o caso de um escritor que tenha começado publicando textos menores na internet, e foi ganhando público aos poucos com base no mérito desses textos. Mas a verdade é que se alguém apenas publicar textos, não for uma personalidade interessante mostrando o rosto em Reels, Stories, criando identificação pessoal através de estilo de vida, identidade social, essa pessoa demorará muito mais pra se tornar relevante.
Nos anos 80, quando surgiu a MTV, muitos astros do rádio se rebelaram, pois agora, não bastava mais você ser um bom músico, você tinha também que ser fotogênico, performático, ter um estilo atraente, se não, não faria tanto sucesso no novo cenário musical. Não dou tanto mérito pras queixas desses músicos, pois no ramo do entretenimento e em artes como a música, acho que imagem e personalidade são coisas importantes. Claro, seria bom se houvesse mais espaço para músicos habilidosos, porém não-performáticos. Mas os músicos que juntam as duas coisas, na minha visão, oferecem um produto diferenciado. Com as redes sociais, um fenômeno parecido com o da MTV está ocorrendo: imagem/personalidade começaram a importar muito mais do que para as gerações anteriores. O problema é que agora isso não está restrito ao mundo do entretenimento. Estamos falando da economia e da sociedade como um todo. Pra fazer sucesso em inúmeras áreas, é necessário que você tenha uma personalidade cativante, do tipo que gera engajamento nas redes sociais (de preferência que esteja em harmonia com os ideais políticos considerados corretos pela cultura mainstream), pois redes sociais são movidas mais por personalidade/atitude/identificação pessoal do que por bons produtos. Por isso, uma série de coisas que fazem sucesso hoje não têm verdadeiro lastro, pois o sucesso não foi baseado primeiramente em qualidade, na eficácia de determinada coisa em melhorar a vida humana, e sim no carisma do vendedor.
Como todos temos filmadoras no bolso, e nós consumimos tudo através de telas, a questão da imagem vem se tornando mais e mais relevante, até pro que não devia. Em De Volta para o Futuro, há uma piada genial que mostra que já nos anos 80 existia essa preocupação: quando o Doc Brown dos anos 50 vê a filmadora de Marty pela primeira vez, ele diz: "Um estúdio de televisão portátil! Não surpreende o presidente de vocês ser um ator (Ronald Reagan), ele precisa aparentar bem na televisão!". Ou seja, o que estou dizendo aqui não é novidade, é apenas uma evolução do mesmo fenômeno, só que potencializado ao infinito por conta da internet, celulares e das redes sociais.
É como se nos últimos séculos, tivéssemos ido de uma era onde apenas qualidade importava (imagine um compositor no século 18), pra uma era onde qualidade começou a ter que "negociar" um pouco mais com o fator imagem/personalidade (com o surgimento da televisão, por exemplo), pra uma era onde imagem/personalidade começaram a importar um pouco mais do que qualidade, e agora estamos chegando no ponto onde imagem/personalidade é tudo o que importa — seu produto pode ser um lixo, mas se você tiver a personalidade certa, uma atitude que gere engajamento com determinada tribo, você terá o mercado aos seus pés. Passamos de uma sociedade que priorizava produtividade para uma sociedade onde sua popularidade é a maior riqueza de todas. Até mesmo em áreas que nada têm a ver com entretenimento, como política, ciência e jornalismo, dependem cada vez mais de personalidade, não de competência, experiência, resultados, fatos, pra terem relevância. Estudos científicos ou argumentos políticos que se tornam dominantes na cultura são aqueles que são divulgados em jornais, podcasts, e que são endossados por intelectuais e "autoridades" online. Porém esses intelectuais só se tornam influentes se eles forem personalidades cativantes - entertainers, acima de tudo - não experts, até porque falar a verdade é o pior negócio possível para atrair grandes massas.
Com esse potencial de lucrar com base em seguidores, imagem pessoal, você vê uma série de fenômenos bizarros, como influenciadores que ficam ricos vendendo cursos online, que te ensinam a ficar rico vendendo seus próprios cursos online. Mas sobre o que é tal curso? Como o tal influenciador fez sucesso em primeiro lugar pra provar sua competência? Criou algo de valor? É realmente expert em algo? Não... Fez sucesso basicamente com sua capacidade de comunicação, sua personalidade, carisma em vídeo, habilidade de encantar seguidores. Agora, ele usa essa base de seguidores pra vender cursos. Mas seus cursos não vendem pois são realmente os melhores, os que trazem os melhores resultados. E sim porque os seguidores gostam do vendedor, e estão dispostos a comprar tudo que ele oferece. Se ele vendesse maquiagem, camisetas, pó de café, seus fãs comprariam da mesma forma. Quando você consome produtos desse tipo, o valor que você está recebendo no fundo é entretenimento ou conforto emocional: a sensação agradável de ver/se conectar com uma pessoa atraente que sabe se comunicar, que fica bem em vídeo e fala coisas que te deixam num humor positivo, reafirmam sua identidade. Mas não é o produto que de fato irá te trazer o melhor conhecimento, os melhores resultados e benefícios, pois o sucesso do vendedor não foi baseado em seus resultados, e sim em sua personalidade.
Seres humanos sempre tentaram pegar atalhos, buscar o caminho mais fácil, se dar bem manipulando o sistema. Há séculos que marketeiros tentam fazer algo de baixo valor parecer mais atraente; bancos centrais abandonaram o padrão-ouro há décadas, e não é de hoje que imprimem dinheiro de maneira irresponsável, com a mentalidade de quem coloca água no feijão pra poder "alimentar" mais pessoas (ou pra roubar nutrientes dos outros sem tornar isso evidente). A questão é que agora, certas tendências filosóficas na cultura (como o
Declínio da Objetividade, o identitarismo e o desprezo por habilidade/mérito em favor de diversidade, causas ideológicas), junto com certas facilidades tecnológicas, potencializaram esse fenômeno, e estão criando uma elite de "barões ocos", um mundo onde milhões de pessoas enriquecem, bilhões circulam de mãos em mãos, mas pouca riqueza real é gerada no processo: poucas inovações, poucas ideias de qualidade, poucas melhorias no padrão de vida humano.