Um dos desafios desse momento "boomers last stand" do cinema é que às vezes a ambição (ou narcisismo) dos artistas tem superado muito suas reais capacidades como realizadores. Parte disso pode ter a ver com a idade - são raros os artistas que depois de 5 décadas de carreira continuam produzindo no mesmo nível que produziam na primeira ou segunda década. Mas há também a questão da decadência do sistema. No passado, a indústria cinematográfica era muito mais bem estruturada, muito mais rica em talentos ("meritocracia" era um conceito respeitado). Naquele ambiente, os pontos fracos dos cineastas eram frequentemente compensados pela eficácia do sistema. Mas agora, temos visto diretores como Kevin Costner, Francis Ford Coppola, George Miller ou Ridley Scott trabalhando sem o mesmo tipo de suporte, sem a mesma rede de talentos, e nesse contexto, fica claro que nem todos eles tinham um domínio tão absoluto de suas artes a ponto de terem o mesmo êxito fora do sistema, cercados de profissionais menos habilidosos (o que é muito comum e compreensível até, considerando a complexidade do cinema).
Em Horizon, o desencontro entre a ambição e a capacidade real de Costner é tão contrastante que se torna o verdadeiro foco de interesse - eu só tive paciência de ver a essa "1ª Temporada" de Horizon porque havia tanta coisa errada na tela que eu fiquei as 3 horas "entretido" tentando desembaraçar e entender os problemas do filme.
Pra começar, Horizon de fato parece uma série de TV metida a besta, como os críticos vêm apontando. O roteiro é episódico, cheio de núcleos desconectados, passagens irrelevantes, conflitos que não levam a lugar nenhum (qual o propósito, por exemplo, da cena em que escorpiões que são encontrados no chão da cabana, ou a do garotinho que é desafiado a duelar com um índio no bar?), e o filme segue todos os moldes narrativos preguiçosos das série de TV modernas (o que já era esperado, considerando a magnitude do projeto - Costner só deve ter encarado essa missão de escrever 4 longas épicos para o cinema pois aprendeu em Yellowstone com os profissionais como é que se enche linguiça).
Mas mesmo se perdoássemos isso, Horizon ainda seria uma série de TV ruim - apesar das imagens bonitas, os amadorismos do roteiro e da direção começam a se revelar já nos primeiros minutos de filme. Reparem, por exemplo, a maneira esquisita como o título "Horizon" surge na tela, sem nenhum timing, logo após um breve prólogo que não mostra nada substancial a ponto de justificar a música triunfante que entra em seguida. Essa falta senso narrativo/estético permeia o filme todo. Lá pela 1h45, há uma cena estranhíssima em uma caravana (onde uma carroça está sendo consertada e um cavalo fica agitado) que eu tive que rever umas 3 vezes e ainda fiquei sem entender completamente o que aconteceu. Outra cena visivelmente mal escrita/dirigida é a aquela em que a Mrs. Riordan bate com o guarda-chuva nos rapazes que estão "roubando" a cama de sua casa, mas depois muda de ideia pois descobre que a cama seria para a bela Miss Frances e sua filha Elizabeth. Mas a Mrs. Riordan sabia quem eram as duas? Por que ela muda tão bruscamente de atitude? Pela boa aparência das mulheres? Há vários momentos confusos assim, onde um conflito que você nem sabe pra que começou, envolvendo personagens que você mal sabe quem são, é resolvido de maneira arbitrária. Costner consegue deixar confusa qualquer cena que seja mais complexa que duas cabeças conversando, e muito disso é problema da fotografia também - por isso nunca se deve confundir "imagens bonitas" com uma boa direção de fotografia.
Eticamente/politicamente, a visão da América que Costner projeta aqui também é problemática - não é mais a América representada pelos faroestes de John Ford ou Howard Hawks, mas uma releitura dela, influenciada por crenças e valores do conservadorismo moderno "pós-liberal". O que é romantizado aqui não é a América "terra dos livres", o país onde instituições garantiam as liberdades dos cidadãos para perseguirem seus objetivos - mas uma terra ainda livre de instituições sólidas, onde os homens passam a maior parte do tempo não perseguindo seus objetivos, mas lutando contra bandidos - o tipo de sociedade primitiva, dominada por força bruta e por valores tradicionais que é cultuada por muitos críticos da sociedade moderna, e que me remete a séries como Game of Thrones. (A maneira como o filme demoniza o casal jovem "elitizado" da caravana é particularmente reveladora e reflete o teor populista/anti-ricos da política moderna).
Mas o problema mais fundamental de
Horizon me parece ser epistemológico - o fato de Costner ter tentado com esse projeto filmar uma abstração, um ideal platônico dessa América que ele admira - o que não é possível, pois a arte requer que você concretize as abstrações que você quer projetar. Por não entender esta relação entre "abstrações" e "concretos", ele criou um roteiro extremamente genérico, sem conteúdo. Todos os personagens em
Horizon parecem estereótipos vazios: "o cavaleiro durão", "a esposa respeitável", "a prostituta indócil". Nenhum diálogo é específico/real o bastante a ponto dessas figuras se tornarem seres humanos convincentes na tela. Elas falam e agem
como o estereótipo falaria e agiria, e o mesmo vale para a América em si. Em vez de mostrar coisas particulares, interessantes, que somadas criassem esta impressão nostálgia do Oeste, Costner tentou pular direto para a abstração, filmando uma série de situações e personagens que já parecem imediatamente "românticos" e "nostálgicos". Pegue, por exemplo, a cena do acampamento onde a garotinha Elizabeth se despede dos amigos que estão partindo para a batalha. O heroísmo dos rapazes e a comoção da menina vêm como uma completa surpresa para o espectador, pois nós não conhecemos ninguém direito e não vimos em nenhum momento uma amizade profunda se desenvolver entre os personagens. Para o espectador desatento, que está vendo o filme mexendo no celular ou lavando louça, a cena parecerá ter certa credibilidade por conta da produção respeitável, mas pra quem estiver atento, tentando conectar os pontos, ela não significará absolutamente nada (é o mesmo tipo de
Emoção Irracional que discuti no caso de
Interestelar).
Essa abordagem (decorrente da epistemologia mística/platônica/não-objetiva do artista) em vez de intensificar a abstração e deixar o Oeste ainda mais colorido e grandioso na mente do espectador, acaba fazendo o oposto - a memória que o filme deixa é apenas a de um borrão sem forma - como fatos que você ouve em uma aula de história, mas que são tão impessoais e fora de contexto que no dia da prova você já esqueceu tudo.
Horizon: An American Saga - Chapter 1 / 2024 / Kevin Costner
(Evito baixar torrents de lançamentos, mas Horizon ainda não tem previsão de estréia Brasil, e por conta do fracasso, é bem possível que ele venha direto para o streaming - caso seja lançado no cinema, comprarei o ingresso, mas não pretendo ver o filme de novo, até porque a linguagem de TV não cria nenhum senso de urgência de vê-lo na tela grande.)
Satisfação: 2
Categoria: Idealismo Corrompido
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