terça-feira, 30 de julho de 2024

Excitação Reprimida: Sex Appeal e Humor

Há inúmeras formas em que cada um dos 4 Pilares do Idealismo é sufocado pela cultura hoje em dia. No meu vídeo sobre Star Wars vs. The Acolyte eu discuto como a "magia" é um elemento que foi desaparecendo do cinema escapista nos últimos anos. Magia é um valor ligado ao pilar da Excitação (vide o Mapa de Valores), mas ainda dentro desta categoria, há outros valores importantes que também têm sido abandonados pelo cinema nos últimos tempos, e aqui queria apontar mais 2 deles: humor e sexo (ou "sex appeal").

Sexo e humor sempre foram dois dos grandes ingredientes que arrastavam o público para os cinemas. Até dramas sérios costumavam ter um forte apelo sexual por causa dos astros escalados e pela maneira como eles eram retratados na tela (pense em um filme de tribunal como Questão de Honra, por exemplo). Um filme recente que surpreendeu nas bilheterias por conta do "sex appeal" foi Rivais (2024). Mas o que Rivais fez não foi nenhuma reinvenção da lâmpada — foi apenas lembrar o que o cinema sempre fez desde os anos 20 pra tornar suas histórias mais atraentes para o espectador comum (nada contra filmes mais sofisticados ou de "arte" que não queiram ter esse tipo de apelo, mas o cinema mainstream sempre terá que incluir estímulos mais superficiais e imediatos como esses se quiser atingir o grande público). Rivais acabou me fazendo lembrar do quanto esse elemento não faz parte da experiência cinematográfica normal hoje em dia (o que tem a ver com o que discuto em Casting Naturalista). Quanto ao humor, este também não é uma grande força do cinema moderno. Comédias e comédias românticas estão em baixa há muitos anos, e o humor que é permitido nos filmes costuma ser incrivelmente tímido e limitado — pra não dizer sem graça — se comparado ao que era comum no passado.

A repressão desses 2 elementos, humor e sexo, está diretamente ligada ao espírito "politicamente correto" da cultura atual — ao medo de ofender, de fazer alguém se sentir inferior e de ser julgado/atacado publicamente depois. O cinema, por ser uma forma de entretenimento já tradicional e institucionalizada, acaba sendo mais vigiado e submetido a esse tipo de correção política. Mas onde essa repressão não tem tanto domínio ainda? Na internet. É pra lá que esse tipo de estímulo migrou — e hoje as pessoas dão risadas muito mais genuínas e se sentem muito mais estimuladas sexualmente vendo posts no Instagram do que indo ao cinema. Pra entender o impacto que a ausência de elementos como esses tem no cinema, apenas imagine o que seria do TikTok ou do Instagram se o humor dos memes fosse subitamente obrigado a passar por um "filtro politicamente correto" antes de chegar até o público, e se os influencers não pudessem mais explorar seus corpos, ou fossem substituídos por pessoas menos atraentes para o espectador.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Deadpool & Wolverine

Sabe aquela pessoa que tem um defeito físico aparente, e que quando está em um contexto social, faz piada do defeito antes de todo mundo pra reduzir sua ansiedade? Deadpool & Wolverine é uma manifestação cinematográfica dessa mesma estratégia. O filme fica rindo do começo ao fim de tudo aquilo que é visto como medíocre no cinema da Marvel, tentando fingir que, ao reconhecer o problema, o filme está automaticamente transcendendo o problema. Mas isso é pura enganação. O filme não faz absolutamente nada pra elevar o cinema da Marvel — ele no máximo evita de ser trash como Quantumania ou Thor: Amor e Trovão, mas continua dependendo e investindo nos velhos truques baratos que degradaram a imagem da Marvel esses anos todos: fan-services, multiversos, cameos, clichês etc. O humor autorreferente acaba ganhando uma qualidade triste e detestável — podemos ver o desespero por trás das piadas, e também a falta de honestidade com o público. Por exemplo: o filme debocha da maneira como a Marvel passou a apelar para "multiversos" o tempo todo — mas a premissa básica de Deadpool & Wolverine já não é um apelo para o multiverso?

Talvez seja o filme mais descaradamente dependente de artifícios como fan-services e cameos que já vi — ou seja, de qualquer coisa exceto do roteiro. Os produtores sabem que a história aqui é o de menos, e que seu público não vai ao cinema para "ver filmes" de fato, e sim para engajar com a "comunidade", se atualizar com os novos "conteúdos" produzidos por suas empresas e "influencers" favoritos. As quebras de quarta parede e constantes piadas internas fazem D&W parecer uma mescla estranha de cinema com conteúdo de rede social, refletindo o que discuti no texto Filmes Autorreferenciais e a Descrença na Ficção.

Eu não dei uma risada o filme inteiro. Sempre achei o humor da franquia Deadpool destrutivo, "anti-idealista", além de simplesmente fraco, mal escrito — a ideia da terra deserta pra onde vão os personagens descartados até podia ter gerado boas sacadas, mas aqui vira uma variação preguiçosa e sem graça daquilo que foi muito melhor explorado em filmes como Tico e Teco: Defensores da Lei (2022) ou até Divertida Mente. Os banhos de sangue Tarantinescos ao som de "música pop engraçadinha" continuam sendo usados incessantemente como se fossem sinônimos de originalidade e "ironia inteligente". E quando o filme dá uma pausa nas piadas (afinal, Deadpool não é literalmente uma comédia) e arrisca expressar algum valor "positivo", ele revela de onde vem a malevolência do humor, partindo pro velho culto ao auto-sacrifício, aos sofredores, a todos os não-herois entre nós etc.

Deadpool & Wolverine / 2024 / Shawn Levy

Satisfação: 1

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Guardiões da Galáxia Vol. 3 (2023) / O Esquadrão Suicida (2021)

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Horizon: An American Saga - Chapter 1

Um dos desafios desse momento "boomers last stand" do cinema é que às vezes a ambição (ou narcisismo) dos artistas tem superado muito suas reais capacidades como realizadores. Parte disso pode ter a ver com a idade - são raros os artistas que depois de 5 décadas de carreira continuam produzindo no mesmo nível que produziam na primeira ou segunda década. Mas há também a questão da decadência do sistema. No passado, a indústria cinematográfica era muito mais bem estruturada, muito mais rica em talentos ("meritocracia" era um conceito respeitado). Naquele ambiente, os pontos fracos dos cineastas eram frequentemente compensados pela eficácia do sistema. Mas agora, temos visto diretores como Kevin Costner, Francis Ford Coppola, George Miller ou Ridley Scott trabalhando sem o mesmo tipo de suporte, sem a mesma rede de talentos, e nesse contexto, fica claro que nem todos eles tinham um domínio tão absoluto de suas artes a ponto de terem o mesmo êxito fora do sistema, cercados de profissionais menos habilidosos (o que é muito comum e compreensível até, considerando a complexidade do cinema).

Em Horizon, o desencontro entre a ambição e a capacidade real de Costner é tão contrastante que se torna o verdadeiro foco de interesse - eu só tive paciência de ver a essa "1ª Temporada" de Horizon porque havia tanta coisa errada na tela que eu fiquei as 3 horas "entretido" tentando desembaraçar e entender os problemas do filme. 

Pra começar, Horizon de fato parece uma série de TV metida a besta, como os críticos vêm apontando. O roteiro é episódico, cheio de núcleos desconectados, passagens irrelevantes, conflitos que não levam a lugar nenhum (qual o propósito, por exemplo, da cena em que escorpiões que são encontrados no chão da cabana, ou a do garotinho que é desafiado a duelar com um índio no bar?), e o filme segue todos os moldes narrativos preguiçosos das série de TV modernas (o que já era esperado, considerando a magnitude do projeto - Costner só deve ter encarado essa missão de escrever 4 longas épicos para o cinema pois aprendeu em Yellowstone com os profissionais como é que se enche linguiça).

Mas mesmo se perdoássemos isso, Horizon ainda seria uma série de TV ruim - apesar das imagens bonitas, os amadorismos do roteiro e da direção começam a se revelar já nos primeiros minutos de filme. Reparem, por exemplo, a maneira esquisita como o título "Horizon" surge na tela, sem nenhum timing, logo após um breve prólogo que não mostra nada substancial a ponto de justificar a música triunfante que entra em seguida. Essa falta senso narrativo/estético permeia o filme todo. Lá pela 1h45, há uma cena estranhíssima em uma caravana (onde uma carroça está sendo consertada e um cavalo fica agitado) que eu tive que rever umas 3 vezes e ainda fiquei sem entender completamente o que aconteceu. Outra cena visivelmente mal escrita/dirigida é a aquela em que a Mrs. Riordan bate com o guarda-chuva nos rapazes que estão "roubando" a cama de sua casa, mas depois muda de ideia pois descobre que a cama seria para a bela Miss Frances e sua filha Elizabeth. Mas a Mrs. Riordan sabia quem eram as duas? Por que ela muda tão bruscamente de atitude? Pela boa aparência das mulheres? Há vários momentos confusos assim, onde um conflito que você nem sabe pra que começou, envolvendo personagens que você mal sabe quem são, é resolvido de maneira arbitrária. Costner consegue deixar confusa qualquer cena que seja mais complexa que duas cabeças conversando, e muito disso é problema da fotografia também - por isso nunca se deve confundir "imagens bonitas" com uma boa direção de fotografia.

Eticamente/politicamente, a visão da América que Costner projeta aqui também é problemática - não é mais a América representada pelos faroestes de John Ford ou Howard Hawks, mas uma releitura dela, influenciada por crenças e valores do conservadorismo moderno "pós-liberal". O que é romantizado aqui não é a América "terra dos livres", o país onde instituições garantiam as liberdades dos cidadãos para perseguirem seus objetivos - mas uma terra ainda livre de instituições sólidas, onde os homens passam a maior parte do tempo não perseguindo seus objetivos, mas lutando contra bandidos - o tipo de sociedade primitiva, dominada por força bruta e por valores tradicionais que é cultuada por muitos críticos da sociedade moderna, e que me remete a séries como Game of Thrones. (A maneira como o filme demoniza o casal jovem "elitizado" da caravana é particularmente reveladora e reflete o teor populista/anti-ricos da política moderna).

Mas o problema mais fundamental de Horizon me parece ser epistemológico - o fato de Costner ter tentado com esse projeto filmar uma abstração, um ideal platônico dessa América que ele admira - o que não é possível, pois a arte requer que você concretize as abstrações que você quer projetar. Por não entender esta relação entre "abstrações" e "concretos", ele criou um roteiro extremamente genérico, sem conteúdo. Todos os personagens em Horizon parecem estereótipos vazios: "o cavaleiro durão", "a esposa respeitável", "a prostituta indócil". Nenhum diálogo é específico/real o bastante a ponto dessas figuras se tornarem seres humanos convincentes na tela. Elas falam e agem como o estereótipo falaria e agiria, e o mesmo vale para a América em si. Em vez de mostrar coisas particulares, interessantes, que somadas criassem esta impressão nostálgia do Oeste, Costner tentou pular direto para a abstração, filmando uma série de situações e personagens que já parecem imediatamente "românticos" e "nostálgicos". Pegue, por exemplo, a cena do acampamento onde a garotinha Elizabeth se despede dos amigos que estão partindo para a batalha. O heroísmo dos rapazes e a comoção da menina vêm como uma completa surpresa para o espectador, pois nós não conhecemos ninguém direito e não vimos em nenhum momento uma amizade profunda se desenvolver entre os personagens. Para o espectador desatento, que está vendo o filme mexendo no celular ou lavando louça, a cena parecerá ter certa credibilidade por conta da produção respeitável, mas pra quem estiver atento, tentando conectar os pontos, ela não significará absolutamente nada (é o mesmo tipo de Emoção Irracional que discuti no caso de Interestelar).

Essa abordagem (decorrente da epistemologia mística/platônica/não-objetiva do artista) em vez de intensificar a abstração e deixar o Oeste ainda mais colorido e grandioso na mente do espectador, acaba fazendo o oposto - a memória que o filme deixa é apenas a de um borrão sem forma - como fatos que você ouve em uma aula de história, mas que são tão impessoais e fora de contexto que no dia da prova você já esqueceu tudo.

Horizon: An American Saga - Chapter 1 / 2024 / Kevin Costner

(Evito baixar torrents de lançamentos, mas Horizon ainda não tem previsão de estréia Brasil, e por conta do fracasso, é bem possível que ele venha direto para o streaming - caso seja lançado no cinema, comprarei o ingresso, mas não pretendo ver o filme de novo, até porque a linguagem de TV não cria nenhum senso de urgência de vê-lo na tela grande.)

Satisfação: 2

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Relatos do Mundo (2020) / Pacto de Justiça (2003) / Yellowstone (2018) / A Conquista do Oeste (1962)

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Cultura - Julho 2024

9/7 - Trailer Gladiador 2

Tive o mesmo mau pressentimento de quando vi o trailer de Napoleão. Um pouco pelo uso irritante de música pop moderna (especialmente rap) num contexto desses, que faz o orçamento do filme parecer cair em uns US$100 milhões, mas também porque o pretexto narrativo pra sequência soa um pouco forçado — o garotinho Lucius Verus, do qual eu mal lembrava, crescer e agora passar por tudo que o Russell Crowe passou no primeiro filme. A imagem do Coliseu com água até achei uma variação interessante de cenário, mas depois, quando aparece o rinoceronte, comecei a achar que o filme iria resumir Gladiador basicamente a cenas empolgantes de luta, e tentar superar o primeiro apelando pra artifícios infantis do tipo: "Velocidade Máxima, mas agora num navio", "Sexta-Feira 13, mas agora no espaço", em vez de investir em roteiro, etc. Vou torcer pra que surpreenda, mas o trailer não elevou minhas expectativas.



7/7 - Boomers Last Stand

Bad Boys: Até o Fim e Um Tira da Pesada 4: Axel Foley são duas sequências bem-sucedidas em resgatar o espírito das produções originais e entregar um entretenimento que funciona com base nos mesmos critérios, desistindo em grande parte da ideia de "modernizar" as franquias — até porque isso se provou desastroso incontáveis vezes nos últimos anos.

O sucesso de Top Gun: Maverick em 2022 foi um ponto de virada na indústria, e eu imaginei na época que, a partir daquele momento, algumas produções iriam começar a apostar com mais confiança nessa abordagem "Não Corrompida" — Bad Boys 4 e Um Tira da Pesada 4 talvez façam parte dessa safra de produções pós-2022, e apesar de não serem tão caprichadas e ambiciosas quanto Maverick, dá pra notar uma energia diferente, um entusiasmo e uma ausência de repressão que parecem vir do mesmo lugar.

Esta faixa extasiante e perfeitamente excessiva da trilha sonora de Um Tira da Pesada 4 reflete bem isso:


E talvez o entusiasmo esteja vindo literalmente do mesmo lugar — o que esses 3 filmes têm em comum é que foram todos produzidos por Jerry Bruckheimer que, aos 80 e poucos anos, está vivendo uma espécie de comeback. É por isso que ainda não fico totalmente esperançoso com os rumos da cultura: muitos desses lampejos de Idealismo ou de ambição artística que tenho visto recentemente no cinema (como as produções extravagantes do Francis Ford Coppola ou do Kevin Costner que estreiam este ano) são frutos ainda dos mesmos responsáveis pelo entretenimento dos anos 70–90; é uma espécie de "Boomers Last Stand" ou "Última Cartada dos Boomers" (como li no Twitter recentemente), não algo vindo de novos artistas e produtores.

terça-feira, 16 de julho de 2024

Julho 2024 - outros filmes vistos

Feito na Inglaterra: Os Filmes de Powell e Pressburger

Documentário apresentado por Martin Scorsese sobre a carreira singular de Michael Powell e Emeric Pressburger. Se eu tivesse que escolher meia dúzia de documentários para exibir em um curso de cinema, este provavelmente entraria na lista, pois poucos cineastas fizeram um uso tão artístico e expressivo dos recursos do cinema quanto Powell e Pressburger (os elogios que Rand concedeu a Siegfried de Fritz Lang se aplicariam ainda mais a filmes como Coronel Blimp, Neste Mundo e no Outro, Os Sapatinhos Vermelhos e Contos de Hoffmann), e Scorsese faz melhor que ninguém este trabalho de transmitir para novas gerações os encantos e proezas técnicas dos grandes filmes do passado. Imperdível para cinéfilos. (disponível atualmente na Apple TV)

(Made in England: The Films of Powell and Pressburger / 2024 / David Hinton)

Satisfação: 10

sábado, 13 de julho de 2024

Twisters

Uma experiência satisfatória e frustrante ao mesmo tempo. Satisfatória porque meu maior receio com Twisters era o Lee Isaac Chung (de Minari) na direção, o que me parecia uma dessas escolhas desastrosas tipo colocar a Chloé Zhao pra dirigir Eternos. Mas no fim, achei o filme surpreendentemente bem dirigido e bem produzido - ele consegue em muitos aspectos replicar o clima do filme de 1996 (os efeitos especiais fazem uma ótima mescla de CGI com efeitos práticos, a fotografia e a trilha sonora também acertam no tom) e o roteiro, apesar copiar a fórmula básica do original, traz detalhes novos que são interessantes o bastante pro filme não parecer uma sequência completamente preguiçosa e sem personalidade (a cena de ação no cinema achei divertida, achei interessante também a ideia de "dissolver" os tornados, e a subtrama envolvendo especulação imobiliária, embora mal explorada, não deixa de ser um conflito novo e intrigante).

É justamente pelo filme ter tudo pra ter sido uma sequência digna do primeiro que certos detalhes frustram tanto. O mais grave deles pra mim é o casting da Daisy Edgar-Jones, que apesar de parecer boa atriz, simplesmente não convence neste papel. Ela não parece ter mais que 20 e poucos anos na tela, mas temos que acreditar que ela é uma veterana do ramo, alguém com mais experiência caçando tornados que todos ao seu redor, que carrega traumas e cicatrizes do passado (tipo um Capitão Quint de Tubarão), que já até se "aposentou", e agora, depois de anos afastada do ramo, é convencida a voltar pra uma missão especial. Mesmo que ela tivesse a idade da Helen Hunt no filme de 1996 (32/33 anos), Daisy ainda não transmitiria o tipo de força e autoridade que uma atriz precisa transmitir pra convencer em um papel tão masculino (um amigo durante a sessão comentou que a Jessica Chastain teria sido uma escolha melhor pro papel, e eu concordei).

O filme não é dominado por uma mentalidade woke (não tem discursos ambientalistas, surpreendentemente) mas certamente há elementos disso nessa caracterização da heroína e na maneira como o personagem do Glen Powell (que teria dado um bom protagonista também) é colocado em segundo plano pra não roubar o brilho dela, especialmente na sequência de ação final (o romance entre os dois também é quase totalmente abafado). Essa artificialidade da protagonista impede o filme de ter um drama envolvente por trás da ação, o que torna a trama meio vazia no segundo ato (é bem o que digo no texto Complementaridade sobre personagens que são privados de vulnerabilidades e acabam se tornando distantes).

Outro problema menor aqui é a ausência de um vilão claro - o filme foge daquela situação "time do bem" vs. "time do mal" que havia no primeiro, e apresenta conflitos mais complexos e cheios de nuances entre os personagens, o que é um toque Naturalista inapropriado nesse caso.

Apesar de tudo, o filme ainda está mais próximo de um acerto do que de um erro. É um blockbuster decente prejudicado por alguns elementos, não um caso indigesto de Idealismo Corrompido.

Twisters / 2024 / Lee Isaac Chung

Satisfação: 7

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Jurassic World: Reino Ameaçado (2018) / No Olho do Tornado (2014) / Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023) / Doutor Sono (2019)

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Um Lugar Silencioso: Dia Um

Produção muito bem feita de um roteiro pífio. Por se tratar de uma prequel mostrando a invasão a partir do dia 1, você naturalmente espera que o filme seja diferente dos outros dois da franquia, e vá mostrar como a civilização se transformou gradualmente no ambiente pós-apocalíptico que já conhecemos — como os humanos primeiro reagiram à descoberta de extraterrestres, quem primeiro percebeu que as criaturas caçam exclusivamente com base no som, etc. Mas após um prólogo no qual toda a invasão é resumida, em 15 minutos de filme praticamente já estamos de volta à mesma situação dos filmes anteriores: a cidade está devastada, as ruas estão desertas, os sobreviventes já estão num clima de rotina, usando tecnologias retrógradas pra se comunicar, e já é de conhecimento geral que todos precisam ficar em silêncio para despistar os aliens. Isso estabelecido, a protagonista decide partir com seu gato em uma jornada aleatória pela cidade (o velho clichê de filmes/séries tipo Amor e Monstros, The Last of Us), só que aqui o filme nem se preocupa em dar uma justificativa pra jornada pra que o espectador se envolva na história — Samira diz apenas que quer ir até o Harlem pra comer uma pizza (!) mesmo sabendo que estará arriscando sua vida e que qualquer restaurante provavelmente estará fechado. Pra piorar, mesmo que ela sobreviva aos aliens e ache a pizzaria aberta, ela está com câncer e provavelmente não viverá por muito tempo, então o espectador já sabe desde início que qualquer final pra essa história será melancólico ou ambíguo na melhor das hipóteses.

A premissa do filme é baseada na História Idealista #3: "Personagem gostável, vivendo uma rotina familiar pouco excitante, subitamente é jogado em uma aventura/situação inesperada, e acaba vivendo uma experiência extrema / grandiosa / fantástica / surpreendente / emocionante / impossível, que transformará sua vida para sempre". Só que o fato da protagonista estar deprimida, não ter esperança, não estar nem um pouco fascinada pelos eventos fantásticos ocorrendo ao seu redor, e estar focada apenas em seus traumas e feridas internas, é algo que corrompe totalmente a intenção do gênero. É um caso típico de Idealismo Corrompido: o filme escapista que é sequestrado pelo Senso de Vida Malevolente, pela moralidade altruísta, e que em vez de mostrar algo empolgante, vira uma história "terna" sobre a fragilidade humana, sobre relacionamentos, sobre os sacrifícios que os personagens fazem uns pelos outros etc.

A questão dos silêncios/barulhos continua não tendo a menor lógica, assim como nos filmes anteriores. Por exemplo: por que o som de uma camisa rasgando atrai os monstros enquanto barulhos muito mais potentes no mesmo ambiente não atraem (como o do gerador)? Por que o gato não mia o filme todo e ninguém toma qualquer precaução quanto a essa possibilidade? A ação do filme soa burra até quando não envolve a questão do silêncio. O roteiro é baseado em algo pior que clichês: algo que poderíamos chamar de "clichês flutuantes". É como se o diretor tivesse um arsenal de ideias e beats interessantes que ele viu sendo eficazes em outros filmes, e tentasse reproduzi-los só que agora fora de contexto. Por exemplo: a cena onde a Samira se esconde embaixo do carro e um homem desesperado começa a puxar a perna dela, e depois as rodas do carro começam a ceder ameaçando esmagá-la — todos já vimos cenas onde pessoas em pânico numa multidão ameaçam a segurança do protagonista, ou cenas onde um espaço estreito começa a se fechar e o personagem precisa sair antes de ser esmagado. Então nós entendemos o conceito da cena quando ela acontece, pois lembramos de situações parecidas em outros longas, só que nesse caso as complicações não têm o mesmo efeito — não só por serem ideias enlatadas, mas por não parecerem plausíveis no contexto da personagem embaixo de um carro.

O filme inteiro parece funcionar por este mesmo tipo de pensamento conceitual desconectado da realidade: a própria ideia da jornada rumo à pizzaria, a sequência do resgate do gato quando ele vai parar dentro da toca dos monstros, o ato de sacrifício obrigatório perto do clímax etc. E a moralidade do filme explica em grande parte essa falta de lógica na ação: como as próprias mensagens que o filme quer promover são irracionais, a realidade precisa ser distorcida pra que elas se concretizem.

A Quiet Place: Day One / 2024 / Michael Sarnoski

Satisfação: 3

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Um Lugar Silencioso / The Last of Us (episódio dos gays) / Logan (2017) / Bird Box (2018) / Rua Cloverfield, 10 (2016)