domingo, 23 de junho de 2024

Divertida Mente 2

Esse filme merecia uma análise mais detalhada, mas eu estou no meio do desmame de um medicamento psiquiátrico, então não confio 100% nas reações que tive aos filmes que vi nas últimas 2 semanas (fica a ideia para o Divertida Mente 3 — Riley adulta e suas emoções lutando agora contra recaptadores de serotonina).

Mas considerando isso, achei ótima a sequência, que parece um retorno à forma para a Pixar. Primeiro porque é uma sequência natural, não forçada ou redundante, levando em conta o contexto do primeiro filme (cujo final é praticamente um cliffhanger para o que acontece aqui). A sequência também acerta em cheio na sacada da reforma da sala de controle e nas novas emoções e elementos que surgem na mente de Riley (felizmente a discussão gira mais em torno de valores e de como manter um senso de integridade diante de pressões sociais — não dos hormônios e mudanças fisiológicas da puberdade, como em Red: Crescer é uma Fera).

Embora a porção central da trama não seja tão inovadora, já que repete a mesma ideia das emoções em uma jornada de volta à sala de controle, o roteiro tem aquela densidade criativa que a Pixar parecia estar perdendo — todo diálogo e cena aqui se esforça pra trazer alguma ideia divertida, interessante, bem elaborada. Talvez o nível de criatividade não esteja no mesmo patamar do original, mas ainda assim, está bem mais perto do que eu esperava, considerando que não temos mais o Pete Docter no roteiro e na direção. Além disso, as mensagens deste me agradaram um pouco mais: como a Ansiedade e a Inveja aqui são verdadeiras antagonistas, emoções que deviam de fato sair da mesa de controle, não há no filme aquele toque agridoce do primeiro, que acabava sugerindo que há algo de belo na Tristeza, que a Alegria precisa aprender a ceder etc. (A Isabela Boscov não gostou tanto desse destaque da Alegria na parte 2, que pra ela soou como "autoajuda").




Inside Out 2 / 2024 / Kelsey Mann

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo

Filmes Parecidos: Divertida Mente (2015) / Procurando Dory (2016)

sábado, 22 de junho de 2024

Complementaridade: Por que o herói tem que ser incompleto

Refletindo sobre a Poética de Aristóteles e o fato dele apenas falar sobre tragédias e comédias em seus textos — ou seja, histórias sobre personagens que são em grande parte inferiores ao espectador — me perguntei se essa questão da "superioridade da plateia" não seria relevante até no contexto do Idealismo; ou seja, em histórias sobre heróis admiráveis, sem "falhas trágicas". E cheguei à conclusão que sim.

No texto O que Torna um Personagem Gostável?, eu discuto a importância de darmos vulnerabilidades aos heróis em um filme, mas a justificativa que dou ali é parcial: que "o espectador dificilmente se identificará e se sentirá inspirado por alguém completamente indestrutível, invulnerável e desconectado da realidade", e que vulnerabilidades, portanto, precisam ser incluídas para tornarem o personagem "mais crível, real, identificável".

O que eu não disse, por não ter certeza ainda dessa hipótese na época, é que o herói precisa ter vulnerabilidades também pra que o espectador possa se sentir superior a ele em algum nível.

E qual seria a justificativa pra isso? Outro dia fiz o seguinte exercício: pedi que um conhecido me listasse 5 das celebridades que ele mais admirava; as que mais haviam lhe inspirado ao longo da vida (atletas, artistas, empresários, cientistas — só não valia conhecidos, familiares etc.). Quando ele selecionou as 5, fiz uma segunda pergunta: "você enxerga alguma dessas pessoas como sendo mais virtuosa que você em todos os aspectos importantes da vida?". Minha previsão é que ele descobriria que tinha uma "vantagem" sobre cada um de seus ídolos em alguma área (social, intelectual, cultural, emocional etc.). E esse foi justamente o caso.

Não dá pra se criar uma generalização a partir disso, mas suspeito que se eu repetisse esse exercício com mais 200 pessoas, todas elas chegariam à mesma conclusão. Sei que pelo menos isso é verdade no meu caso: quando penso nos artistas e personagens de cinema que mais me encantaram ao longo da vida, não consigo pensar em um único que, mesmo tendo virtudes que eu jamais terei, não tenha alguma desvantagem que o faça parecer vulnerável diante de mim em pelo menos uma esfera.

E a conclusão que tiro disso não é que as pessoas são ridiculamente vaidosas, e sempre conseguem distorcer a realidade pra se sentirem superiores a qualquer um (racionalizadores fazem isso, mas aqui estou falando de pessoas normais, com valores positivos). O que isso mostra na verdade é que as pessoas mais atraentes para nós costumam ser aquelas que, além de terem qualidades que admiramos intensamente, também têm "faltas" que sentimos que podemos complementar com nossas próprias virtudes.

A atração mais primitiva e velha da humanidade — a de um homem ou mulher pelo sexo oposto — já é baseada nesse tipo de falta e complementaridade. Mas esse princípio vai muito além do nível físico/concreto, e se aplica a qualquer tipo de relação humana, se ela for realmente estimulante.

(Apenas racionalizações místicas/altruístas permitem relações "estimulantes" que não exigem complementaridade. Uma pessoa de personalidade fanática, que tende à idolatria, talvez não sinta que possa complementar seu deus-ídolo com alguma virtude sua — afinal, ela precisa sustentar a ideia que ele é perfeito, completo. Mas ainda assim, ela acredita que há reciprocidade; que ela tem o potencial de ser a "favorita" do tal deus-ídolo, ainda que não possua nenhuma virtude que possa ser do interesse dele.)

Uma pessoa bem resolvida não desenvolverá ressentimento contra alguém que ela julgue ser seu superior em todos os quesitos importantes; isso seria inveja, "virtofobia" etc. Mas ainda assim, ela provavelmente sentirá, com razão, que não tem muito "uso" pra alguém assim. Portanto, essa relação dificilmente lhe despertará os sentimentos mais estimulantes e prazerosos possíveis num contexto social/afetivo. Me parece natural, não necessariamente um sinal de baixa autoestima/racionalizações, uma pessoa não se sentir atraída por relações onde ela está no papel do "admirador submisso" e não tem nada a somar.

E é daí que vem, em parte, a necessidade das vulnerabilidades dos heróis no entretenimento (por isso também que muitos artistas e celebridades do mundo real se veem na necessidade de expor, exagerar, ou até inventar vulnerabilidades que não têm pra se tornarem mais carismáticos para o público — e por isso que pessoas moralmente corruptas, sem autoestima, precisam sempre encontrar "podres" em famosos, em heróis, quando as vulnerabilidades que eles demonstram não são baixas o bastante pra fazerem alguém extremamente carente em virtudes se sentir superior).

Essas vulnerabilidades podem ser desde algo profundo até algo relativamente superficial. O espectador não precisa (nem pode) se sentir superior ao herói em todos os aspectos — é importante que o herói seja superior ao espectador naquelas que são suas virtudes principais; as virtudes pelas quais a história pretende inspirar o público. Mas em pelo menos uma área, uma "falta" precisa existir no herói para que ele não se torne totalmente superior, e para que o espectador possa projetar nele uma relação atraente de reciprocidade; um indivíduo que, caso existisse no mundo real, iria admirá-lo de volta (O herói de uma história é ao mesmo tempo um "avatar" no qual nos projetamos e que representa nós mesmos na história, e também um indivíduo distinto, que julgamos como julgamos qualquer outra pessoa, por isso critérios sociais se aplicam também a esse relacionamento virtual entre espectador/personagem).

Exemplos de "faltas" e vulnerabilidades eficazes no entretenimento:

- Ingenuidade, falta de experiência, sabedoria, habilidade
- Vulnerabilidade física
- Um temperamento impulsivo, obstinado, imponderado
- Falta de realismo e sensatez
- Falta de maturidade / inteligência emocional / sofisticação intelectual
- Falta de responsabilidade / seriedade
- Feridas psicológicas (perdas, traumas, rejeições, desilusão)
- Medos irracionais
- Falta de beleza, riqueza, sucesso ou inteligência
- Inabilidade social
- Falta de autoconfiança ou de amor próprio
- Ignorância sobre fatos evidentes / pontos cegos
- etc. (lembrando que esses "defeitos" não podem destruir a estatura de um herói — não devem chegar ao nível da humilhação)

As vulnerabilidades mais poderosas e universais costumam ser aquelas "incompletudes" naturais do ser humano que discuto no texto Idealismo e a Teoria dos Arquétipos. Vulnerabilidades circunstanciais como pobreza, doença, traumas psicológicos, podem funcionar, mas tendem a não ser tão interessantes — na vida real, uma pessoa rica, por exemplo, não se apaixona por uma pessoa pobre por sentir que sua riqueza é um "complemento" para a pobreza material do outro. Esse tipo de atração pode até acontecer, mas é superficial e dura pouco. Já as vulnerabilidades que vêm das "sombras" dos Arquétipos são mais profundas e autênticas, pois estão ligadas à verdadeira essência de uma personalidade — notem que a base dos relacionamentos mais gratificantes e duradouros costuma ser a dinâmica entre uma pessoa mais extrovertida e outra mais introvertida, entre uma mais rígida e outra mais maleável, uma mais impulsiva e outra mais controlada, uma mais fria e outra mais sentimental, etc.

Embora muitos achem que a vulnerabilidade do Superman é a kryptonita, e que a do Indiana Jones é o medo de cobras, pra mim, o que os torna realmente "humanos" e atraentes como heróis não são esses pontos fracos superficiais, e sim as vulnerabilidades que emergem de suas próprias personalidades e Arquétipos — a timidez de Clark Kent, o temperamento meio destemperado e inconsequente do Indiana Jones (que, aliás, também tem certa timidez diante de mulheres) etc.

No texto Idealismo e a Teoria dos Arquétipos eu comento que "a versão totalmente madura e equilibrada dos Arquétipos não costuma gerar muito entretenimento" — e o motivo disso é justamente que essa versão totalmente evoluída não parece precisar de complemento. Uma pessoa completa não faz o espectador se sentir útil/relevante diante dela, o que gera menos atração.

E isso não é algo exclusivo do Idealismo. Essa "regra" de virtudes precisarem ser temperadas com vulnerabilidades para que o personagem se torne gostável parece ser crucial até para narrativas Não Idealistas. Se muitas pessoas se sentem atraídas por uma história ou personagem, provavelmente esta dinâmica está em jogo. A grande diferença vai ser no que cada filosofia aceita como virtudes e vulnerabilidades válidas.

Na minha visão, por exemplo, alguém ser negro, mulher ou LGBT, não o torna "vulnerável" automaticamente. Portanto, um personagem assim ainda precisará apresentar faltas e vulnerabilidades como qualquer outro (além de virtudes, obviamente) se quiser gerar o tipo de atração especial que estou discutindo. (Lembrando que, mesmo que essas fossem vulnerabilidades, elas ainda seriam daquele tipo mais superficial/circunstancial que não gera tanta conexão, pois não diz nada sobre a personalidade do herói). Mas suponha que o artista acredite que negros, mulheres e pessoas LGBT sejam intrinsecamente frágeis e inferiores. Nesse caso, nenhuma vulnerabilidade "extra" precisará ser adicionada. O artista poderá simplesmente focar em mostrar o quão poderoso e excepcional o personagem é, pois a raça/gênero do personagem já estará cumprindo o papel de "vulnerabilidade" na mente de seu público; o personagem nunca se tornará superior demais e sem pontos fracos para o espectador que secretamente o enxergar como inferior ou incompleto simplesmente por sua etnia, sexo etc. (são por essas entrelinhas que as pessoas muitas vezes revelam seus preconceitos). Já para alguém que não vê essas características como vulnerabilidades, o personagem parecerá ter apenas forças, nenhuma vulnerabilidade, e esta artificialidade o tornará desinteressante.

A maioria das pessoas se sente intimidada e pouco à vontade diante de alguém completamente superior e invulnerável. E isso não revela necessariamente um complexo de inferioridade. Como todo ser humano por natureza tem vulnerabilidades, alguém superior que não demonstra nenhuma vulnerabilidade acaba parecendo mais alguém que as está escondendo do que alguém que não as tem de fato. E se a pessoa faz isso, é provavelmente porque ela não confia plenamente em você e está na defensiva. Ao demonstrar alguma vulnerabilidade, o senso de ameaça provocado por uma pessoa superior rapidamente se esvai; ao entendermos suas faltas e pontos fracos, nos sentimos menos ameaçados diante dela (afinal, há sempre o risco de alguém mais forte decidir usar suas forças contra nós), mas além disso, se a própria pessoa expôs suas vulnerabilidades, e elas parecerem autênticas, isso indica que ela confia em nós, e que não há razão para esperarmos qualquer ataque.

(Ambientes socialmente tóxicos, como o criado pelas redes sociais, fazem com que todos se sintam inseguros e escondam suas vulnerabilidades, afinal, ninguém quer "sangrar em tanque de tubarão" — e quanto mais gente fica na defensiva, invulnerável, mais tóxico se torna o ambiente, reforçando o ciclo — um grande desafio nessa era de perfis digitais e haters).

O grande perigo no que diz respeito a adicionar vulnerabilidades aos heróis é o artista esquecer que as virtudes é que são o valor primário para o espectador, e acabar colocando todo o foco nas fraquezas (tombando para o Anti-Idealismo / Idealismo Corrompido). Tudo o que eu disse em outros textos sobre o equilíbrio adequado entre virtudes e vulnerabilidades continua valendo dentro desta perspectiva — na ausência de virtudes atraentes, as vulnerabilidades continuam não tendo valor algum para o espectador Idealista; e certas coisas como mau-caratismo e falta de ética continuam não contando como vulnerabilidades.

Vulnerabilidades têm também a função puramente narrativa que já discuti anteriormente de dar credibilidade para a ação, e garantir que a história possa ter suspense, tensão, incertezas — afinal, se o herói parece invencível desde o início, a trama logo se torna previsível e tediosa. Mas aqui, quis esclarecer essa função mais obscura das vulnerabilidades que eu ainda não tinha discutido, mas que é extremamente importante também para o entretenimento: a de permitir que o espectador preserve sua própria estatura diante do herói — afinal, os relacionamentos mais prazerosos da vida real são aqueles que, além de admiração, envolvem também a promessa de reciprocidade e complementaridade.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Cultura - Junho 2024

19/6 - Cotas de tela

Não sei se as cotas para filmes nacionais no streaming/cinemas já estão plenamente em vigor, mas hoje a Netflix adicionou vários filmes brasileiros ao catálogo, e a seleção é bem suspeita:


Central do Brasil (1998) até faz sentido estar na Netflix, que costuma ser bem seletiva no que diz respeito a clássicos de qualquer gênero ou nacionalidade, se limitando apenas aos títulos mais conhecidos. Agora filmes como Terra Estrangeira (1995), Vidas Secas (1963) e Rio, 40 Graus (1955) já são "cult" demais pro perfil da Netflix. O fato dessa seleção incluir várias produções dos irmãos Moreira Salles, incluindo Entreatos (2004), um documentário sobre a eleição do Lula, faz tudo parecer ainda menos espontâneo.


Houve um aumento notável também de filmes nacionais estreando nos cinemas nos últimos meses. E lembrando agora dessa história de cotas, me caiu a ficha de por que quase todos os grandes multiplexes de São Paulo esta semana estão exibindo Avassaladoras 2.0 e o novo filme do Sérgio Mallandro, Mallandro: O Errado que Deu Certo — dois fracassos garantidos, ocupando salas numa época em que até os grandes lançamentos de Hollywood têm tido dificuldade de gerar lucro para os cinemas.


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17/6 - Clássicos lotando salas

Uma tendência curiosa atualmente (em São Paulo pelo menos) é a de sessões especiais de clássicos que estão frequentemente lotando salas de cinema no circuito alternativo. No Belas Artes, três sessões de filmes do Tarkovsky (A Infância de Ivan, Andrei Rublev, Solaris) que ocorrerão nos próximos dias estão com os ingressos esgotados. Na terça da semana que vem (25) uma sessão de 2001: Uma Odisseia no Espaço também já está praticamente lotada (em uma sala grande de 274 lugares), assim como a de Pink Floyd - The Wall (1982), que acontecerá no dia seguinte. No Cine Marquise, Blade Runner - O Caçador de Androides (1982) teve várias sessões bem cheias neste último fim de semana. No sábado (22) o Instituto Moreira Salles vai exibir Depois de Horas (1985) em uma sessão que já está lotada também há vários dias — e isso não é nenhuma mostra ou retrospectiva pontual, mas uma rotina que se consolidou na programação da cidade, especialmente após a pandemia.

Isso, junto com as eventuais estreias que ainda se tornam fenômenos de bilheteria (como Divertida Mente 2), mostra que as pessoas continuam querendo ir ao cinema; que se a indústria está em crise, não é por culpa do desconforto das salas, do TikTok, da Netflix, mas porque os filmes novos simplesmente não têm sido interessantes o bastante para o público.

(Não duvido que o mercado exibidor tenha que passar por uma certa contração por causa dessas novas formas de entretenimento que surgiram — antes da invenção da TV, muita gente devia ir ao cinema por pura falta de opção, por razões secundárias, não por realmente curtir o programa; tanto que o público de cinema nunca voltou a ser tão grande quanto era antes da chegada da TV. Mas isso não quer dizer que ele tenha desaparecido, diminuído de maneira progressiva, e que um dia será dizimado por fatores econômicos, como o público de videolocadoras. E acho que esse tipo de contração, que vem da "liberação" dos espectadores que só iam ao cinema por falta de opção, pode até ser benéfica a longo prazo.)

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17/6 - Astros com cara de rato

Nem acho que todos os atores citados nessas matérias sejam pouco atraentes, se pareçam com ratos, ou reflitam o que chamo de Padrãofobia / Casting Naturalista necessariamente. Mas o que a matéria do The New York Times está se esforçando (comicamente) pra identificar é justamente o que discuto nesses textos (o que me fez pensar que estamos vivendo os anos 70 de novo — vide o trecho da minissérie Arnold em que o Schwarzenegger relata que no começo da carreira ele não achava que podia ser ator, pois um astro de Hollywood na época tinha que se parecer com o Dustin Hoffman ou o Al Pacino).

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Desalinhamento de Arquétipo: O problema de J.Lo

Esse definitivamente não foi o ano de Jennifer Lopez, que vem enfrentando uma série de fracassos — depois de três projetos terríveis para o streaming (A MãeThis Is Me... Now: Uma História de Amor, e Atlas) ela agora cancelou a turnê que faria pelos EUA celebrando sua carreira, em meio ainda a especulações de crise em seu casamento com Ben Affleck.

Jennifer Lopez é uma dessas artistas que, apesar de já serem famosas há décadas, parecem estar sempre tentando; buscando um reconhecimento definitivo que por algum motivo nunca chega. Uns dizem que é porque falta talento, outros dizem que só faltam Grammys, Oscars... Mas pra mim, o problema de J.Lo é que ela sofre do que poderíamos chamar de "dismorfia de arquétipo" — uma espécie de transtorno que faz a pessoa se sentir e se comportar como um Arquétipo enquanto a imagem que ela projeta para o mundo não é compatível com este arquétipo.

Pela postura de Lopez na música e pelos papéis que ela tem escolhido no cinema, fica claro que ela adora se ver na pele da mulher forte, competente, destemida, altamente inteligente — uma combinação do arquétipo do Guerreiro com o Governante e uma pitada do Sábio. No recém-lançado Atlas, ela quer tanto ser a Sigourney Weaver na cena icônica da empilhadeira de Aliens que ela fica dentro da empilhadeira praticamente o filme todo. Mas pra mim, esse arquétipo nunca funcionou muito bem pra ela.

No texto O que torna um personagem gostável? eu discuto por que um personagem só convence quando existe harmonia entre sua aparência e seus traços de caráter — quando o ator parece ser "a melhor encarnação possível" das qualidades daquele personagem em um corpo físico. E eu particularmente não acho que a J.Lo consiga encarnar bem o Guerreiro ou o Governante. Apesar da mandíbula bem desenhada, suas feições são suaves demais pra projetar agressividade. (Um complicador aqui é o fato de Lopez saber que tem esse tipo de beleza e não abrir mão do visual "Amante" enquanto persegue esses arquétipos mais durões — mas esta é uma questão secundária, pois mesmo sem as maquiagens glamourosas, acho que J.Lo ainda não seria a melhor das Guerreiras.)

Pra mim, a performance mais convincente de Jennifer Lopez no cinema foi em Selena (1997), onde ela projetava um mix de Idealista, Garota Comum e Amante. Tudo indica que estes arquétipos mais suaves, despretensiosos, menos ligados a força e poder, sejam mais adequados pra ela (em comédias românticas ela se sai bem também, embora eu não ache que o Amante seja necessariamente seu arquétipo primário). Mas por algum motivo, Lopez continua investindo no papel de heroína durona e independente que já lhe rendeu inúmeros fracassos (talvez seja um pouco pela pressão atual de toda mulher ter que ser uma "girlboss").

Claro, a ruindade dos filmes que ela costuma escolher também contribui pra instabilidade de sua carreira. Stallone, por exemplo, é um bom Guerreiro e costuma estar alinhado com seu arquétipo — mas tem tantos filmes ruins no currículo que isso limita seu reconhecimento como ator.

Um artista no arquétipo errado pode sustentar uma carreira longa e respeitável se for habilidoso e souber selecionar seus filmes. Diria que o Leonardo DiCaprio é um que está sempre pegando papéis que não combinam nada com ele, mas que consegue se safar por ter técnica e por só aparecer em projetos de "pedigree". Lopez, infelizmente, não tem o dedo bom do DiCaprio.

Outro complicador no caso de J.Lo é o fato dela ser Idealista demais para os tempos atuais e querer viver o tipo de heroína admirável e não Corrompida que ainda era popular no início de sua carreira, mas que hoje já não criaria a mesma conexão com o público, mesmo que ela fosse totalmente convincente no papel.

Então há inúmeras coisas trabalhando contra J.Lo (nem discuti ainda o fato dela ter uma carreira no cinema e na música, algo que pouquíssimas pessoas na história conseguiram conciliar). Mas antes de mais nada, acho que o maior inimigo de Jennifer Lopez ainda é o Desalinhamento de Arquétipo. Há inúmeras artistas da mesma geração da J.Lo que têm menos habilidade, menos ambição, que são menos esforçadas que ela, mas que têm muito mais êxito, pois são impulsionadas por um bom alinhamento neste nível (este é o mesmo problema da Wanessa Camargo no Brasil, diga-se de passagem). Artistas assim estão sempre tentando se reinventar, mas diferentemente de uma Madonna, que tem uma identidade sólida e apenas explora diferentes facetas de uma personalidade bem fundada, essas se reinventam pois ainda estão na busca de uma identidade artística consistente — algo que só é possível com o Alinhamento de Arquétipo.