Refletindo sobre a
Poética de Aristóteles e o fato dele apenas falar sobre tragédias e comédias em seus textos — ou seja, histórias sobre personagens que são em grande parte inferiores ao espectador — me perguntei se essa questão da "superioridade da plateia" não seria relevante até no contexto do
Idealismo; ou seja, em histórias sobre heróis admiráveis, sem "falhas trágicas". E cheguei à conclusão que sim.
No texto
O que Torna um Personagem Gostável?, eu discuto a importância de darmos vulnerabilidades aos heróis em um filme, mas a justificativa que dou ali é parcial: que "o espectador dificilmente se identificará e se sentirá inspirado por alguém completamente indestrutível, invulnerável e desconectado da realidade", e que vulnerabilidades, portanto, precisam ser incluídas para tornarem o personagem "mais crível, real, identificável".
O que eu não disse, por não ter certeza ainda dessa hipótese na época, é que o herói precisa ter vulnerabilidades também pra que o espectador possa se sentir superior a ele em algum nível.
E qual seria a justificativa pra isso? Outro dia fiz o seguinte exercício: pedi que um conhecido me listasse 5 das celebridades que ele mais admirava; as que mais haviam lhe inspirado ao longo da vida (atletas, artistas, empresários, cientistas — só não valia conhecidos, familiares etc.). Quando ele selecionou as 5, fiz uma segunda pergunta: "você enxerga alguma dessas pessoas como sendo mais virtuosa que você em todos os aspectos importantes da vida?". Minha previsão é que ele descobriria que tinha uma "vantagem" sobre cada um de seus ídolos em alguma área (social, intelectual, cultural, emocional etc.). E esse foi justamente o caso.
Não dá pra se criar uma generalização a partir disso, mas suspeito que se eu repetisse esse exercício com mais 200 pessoas, todas elas chegariam à mesma conclusão. Sei que pelo menos isso é verdade no meu caso: quando penso nos artistas e personagens de cinema que mais me encantaram ao longo da vida, não consigo pensar em um único que, mesmo tendo virtudes que eu jamais terei, não tenha alguma desvantagem que o faça parecer vulnerável diante de mim em pelo menos uma esfera.
E a conclusão que tiro disso não é que as pessoas são ridiculamente vaidosas, e sempre conseguem distorcer a realidade pra se sentirem superiores a qualquer um (
racionalizadores fazem isso, mas aqui estou falando de pessoas normais, com valores positivos). O que isso mostra na verdade é que as pessoas mais atraentes para nós costumam ser aquelas que, além de terem qualidades que admiramos intensamente, também têm "faltas" que sentimos que podemos complementar com nossas próprias virtudes.
A atração mais primitiva e velha da humanidade — a de um homem ou mulher pelo sexo oposto — já é baseada nesse tipo de falta e complementaridade. Mas esse princípio vai muito além do nível físico/concreto, e se aplica a qualquer tipo de relação humana, se ela for realmente estimulante.
(Apenas
racionalizações místicas/altruístas permitem relações "estimulantes" que não exigem complementaridade. Uma pessoa de personalidade fanática, que tende à idolatria, talvez não sinta que possa complementar seu deus-ídolo com alguma virtude sua — afinal, ela precisa sustentar a ideia que ele é perfeito, completo. Mas ainda assim, ela acredita que há reciprocidade; que ela tem o potencial de ser a "favorita" do tal deus-ídolo, ainda que não possua nenhuma virtude que possa ser do interesse dele.)
Uma pessoa bem resolvida não desenvolverá ressentimento contra alguém que ela julgue ser seu superior em todos os quesitos importantes; isso seria inveja, "
virtofobia" etc. Mas ainda assim, ela provavelmente sentirá, com razão, que não tem muito "uso" pra alguém assim. Portanto, essa relação dificilmente lhe despertará os sentimentos mais estimulantes e prazerosos possíveis num contexto social/afetivo. Me parece natural, não necessariamente um sinal de baixa autoestima/racionalizações, uma pessoa não se sentir atraída por relações onde ela está no papel do "admirador submisso" e não tem nada a somar.
E é daí que vem, em parte, a necessidade das vulnerabilidades dos heróis no entretenimento (por isso também que muitos artistas e celebridades do mundo real se veem na necessidade de expor, exagerar, ou até inventar vulnerabilidades que não têm pra se tornarem mais carismáticos para o público — e por isso que pessoas moralmente corruptas, sem autoestima, precisam sempre encontrar "podres" em famosos, em heróis, quando as vulnerabilidades que eles demonstram não são baixas o bastante pra fazerem alguém extremamente carente em virtudes se sentir superior).
Essas vulnerabilidades podem ser desde algo profundo até algo relativamente superficial. O espectador não precisa (nem pode) se sentir superior ao herói em todos os aspectos — é importante que o herói seja superior ao espectador naquelas que são suas virtudes principais; as virtudes pelas quais a história pretende inspirar o público. Mas em pelo menos uma área, uma "falta" precisa existir no herói para que ele não se torne totalmente superior, e para que o espectador possa projetar nele uma relação atraente de reciprocidade; um indivíduo que, caso existisse no mundo real, iria admirá-lo de volta (O herói de uma história é ao mesmo tempo um "avatar" no qual nos projetamos e que representa nós mesmos na história, e também um indivíduo distinto, que julgamos como julgamos qualquer outra pessoa, por isso critérios sociais se aplicam também a esse relacionamento virtual entre espectador/personagem).
Exemplos de "faltas" e vulnerabilidades eficazes no entretenimento:
- Ingenuidade, falta de experiência, sabedoria, habilidade
- Vulnerabilidade física
- Um temperamento impulsivo, obstinado, imponderado
- Falta de realismo e sensatez
- Falta de maturidade / inteligência emocional / sofisticação intelectual
- Falta de responsabilidade / seriedade
- Feridas psicológicas (perdas, traumas, rejeições, desilusão)
- Medos irracionais
- Falta de beleza, riqueza, sucesso ou inteligência
- Inabilidade social
- Falta de autoconfiança ou de amor próprio
- Ignorância sobre fatos evidentes / pontos cegos
- etc. (lembrando que esses "defeitos" não podem destruir a estatura de um herói — não devem chegar ao nível da humilhação)
As vulnerabilidades mais poderosas e universais costumam ser aquelas "incompletudes" naturais do ser humano que discuto no texto
Idealismo e a Teoria dos Arquétipos. Vulnerabilidades circunstanciais como pobreza, doença, traumas psicológicos, podem funcionar, mas tendem a não ser tão interessantes — na vida real, uma pessoa rica, por exemplo, não se apaixona por uma pessoa pobre por sentir que sua riqueza é um "complemento" para a pobreza material do outro. Esse tipo de atração pode até acontecer, mas é superficial e dura pouco. Já as vulnerabilidades que vêm das "sombras" dos Arquétipos são mais profundas e autênticas, pois estão ligadas à verdadeira essência de uma personalidade — notem que a base dos relacionamentos mais gratificantes e duradouros costuma ser a dinâmica entre uma pessoa mais extrovertida e outra mais introvertida, entre uma mais rígida e outra mais maleável, uma mais impulsiva e outra mais controlada, uma mais fria e outra mais sentimental, etc.
Embora muitos achem que a vulnerabilidade do Superman é a kryptonita, e que a do Indiana Jones é o medo de cobras, pra mim, o que os torna realmente "humanos" e atraentes como heróis não são esses pontos fracos superficiais, e sim as vulnerabilidades que emergem de suas próprias personalidades e Arquétipos — a timidez de Clark Kent, o temperamento meio destemperado e inconsequente do Indiana Jones (que, aliás, também tem certa timidez diante de mulheres) etc.
No texto
Idealismo e a Teoria dos Arquétipos eu comento que "a versão totalmente madura e equilibrada dos Arquétipos não costuma gerar muito entretenimento" — e o motivo disso é justamente que essa versão totalmente evoluída não parece precisar de complemento. Uma pessoa completa não faz o espectador se sentir útil/relevante diante dela, o que gera menos atração.
E isso não é algo exclusivo do Idealismo. Essa "regra" de virtudes precisarem ser temperadas com vulnerabilidades para que o personagem se torne gostável parece ser crucial até para narrativas Não Idealistas. Se muitas pessoas se sentem atraídas por uma história ou personagem, provavelmente esta dinâmica está em jogo. A grande diferença vai ser no que cada filosofia aceita como virtudes e vulnerabilidades válidas.
Na minha visão, por exemplo, alguém ser negro, mulher ou LGBT, não o torna "vulnerável" automaticamente. Portanto, um personagem assim ainda precisará apresentar faltas e vulnerabilidades como qualquer outro (além de virtudes, obviamente) se quiser gerar o tipo de atração especial que estou discutindo. (Lembrando que, mesmo que essas
fossem vulnerabilidades, elas ainda seriam daquele tipo mais superficial/circunstancial que não gera tanta conexão, pois não diz nada sobre a personalidade do herói). Mas suponha que o artista acredite que negros, mulheres e pessoas LGBT sejam intrinsecamente frágeis e inferiores. Nesse caso, nenhuma vulnerabilidade "extra" precisará ser adicionada. O artista poderá simplesmente focar em mostrar o quão poderoso e excepcional o personagem é, pois a raça/gênero do personagem já estará cumprindo o papel de "vulnerabilidade" na mente de seu público; o personagem nunca se tornará superior demais e sem pontos fracos para o espectador que secretamente o enxergar como inferior ou incompleto simplesmente por sua etnia, sexo etc. (são por essas entrelinhas que as pessoas muitas vezes revelam seus preconceitos). Já para alguém que não vê essas características como vulnerabilidades, o personagem parecerá ter apenas forças, nenhuma vulnerabilidade, e esta artificialidade o tornará desinteressante.
A maioria das pessoas se sente intimidada e pouco à vontade diante de alguém completamente superior e invulnerável. E isso não revela necessariamente um complexo de inferioridade. Como todo ser humano por natureza tem vulnerabilidades, alguém superior que não demonstra nenhuma vulnerabilidade acaba parecendo mais alguém que as está escondendo do que alguém que não as tem de fato. E se a pessoa faz isso, é provavelmente porque ela não confia plenamente em você e está na defensiva. Ao demonstrar alguma vulnerabilidade, o senso de ameaça provocado por uma pessoa superior rapidamente se esvai; ao entendermos suas faltas e pontos fracos, nos sentimos menos ameaçados diante dela (afinal, há sempre o risco de alguém mais forte decidir usar suas forças contra nós), mas além disso, se a própria pessoa expôs suas vulnerabilidades, e elas parecerem autênticas, isso indica que ela confia em nós, e que não há razão para esperarmos qualquer ataque.
(Ambientes socialmente tóxicos, como o criado pelas redes sociais, fazem com que todos se sintam inseguros e escondam suas vulnerabilidades, afinal, ninguém quer "sangrar em tanque de tubarão" — e quanto mais gente fica na defensiva, invulnerável, mais tóxico se torna o ambiente, reforçando o ciclo — um grande desafio nessa era de perfis digitais e haters).
O grande perigo no que diz respeito a adicionar vulnerabilidades aos heróis é o artista esquecer que as virtudes é que são o valor primário para o espectador, e acabar colocando todo o foco nas fraquezas (tombando para o
Anti-Idealismo /
Idealismo Corrompido). Tudo o que eu disse em outros textos sobre o equilíbrio adequado entre virtudes e vulnerabilidades continua valendo dentro desta perspectiva — na ausência de virtudes atraentes, as vulnerabilidades continuam não tendo valor algum para o espectador Idealista; e certas coisas como mau-caratismo e falta de ética continuam não contando como vulnerabilidades.
Vulnerabilidades têm também a função puramente narrativa que já discuti anteriormente de dar credibilidade para a ação, e garantir que a história possa ter suspense, tensão, incertezas — afinal, se o herói parece invencível desde o início, a trama logo se torna previsível e tediosa. Mas aqui, quis esclarecer essa função mais obscura das vulnerabilidades que eu ainda não tinha discutido, mas que é extremamente importante também para o entretenimento: a de permitir que o espectador preserve sua própria estatura diante do herói — afinal, os relacionamentos mais prazerosos da vida real são aqueles que, além de admiração, envolvem também a promessa de reciprocidade e complementaridade.