domingo, 31 de janeiro de 2021

Janeiro 2021 - outros filmes vistos

Druk (2020): 6.5

Maior sucesso de Thomas Vinterberg desde A Caça (2012), o filme é o representante oficial da Dinamarca ao Oscar de filme internacional deste ano, e conta a história de um grupo de professores que resolvem testar uma teoria que diz que o ser humano tem uma deficiência de álcool no sangue, e que o mais natural seria beber uma certa quantia ao longo do dia para obter resultados melhores no trabalho, nos relacionamentos, etc. Na comparação inevitável com Lars von Trier, Vinterberg sempre me parece menos radical, imaginativo, brilhante — ele não chega a fazer para o álcool o que Ninfomaníaca fez para os sexo, por exemplo. Ainda assim, vale pela premissa divertida e pelo tom politicamente incorreto que não se vê no cinema americano.



Relatos do Mundo (News of the World / 2020): 4.5

Tom Hanks interpreta um veterano da Guerra Civil que aceita a missão de viajar centenas de milhas através do Texas pra levar uma garotinha de 10 anos, criada por uma tribo indígena, de volta para sua família original. O filme é superficial na construção dos personagens, das relações, e os incidentes ao longo da viagem não transformam a história em algo além de uma carona — ainda assim, o filme tenta parecer "poético", provocar grandes emoções no final, sem ter substância pra isso. Dizer que os protagonistas sofreram traumas e têm "demônios pra enfrentar pela estrada" não torna nenhuma história profunda. É como se a simples contemplação do cenário, filtrado por valores conservadores (um senso de respeito pela "terra", pelos ancestrais, pela América do passado — além do altruísmo, da visão trágica de existência) já fossem o suficiente pra satisfazer a plateia.



Estranho Passageiro - Sputnik (Sputnik / 2020): 6.0

Produção russa sobre um astronauta que volta do espaço com um parasita alienígena dentro de seu corpo, e uma médica que precisa descobrir como salvá-lo da criatura. Como venho dizendo, o “Idealismo Corrompido” hoje em dia se manifesta muitas vezes nesses filmes que pegam um gênero escapista, popular no passado, e daí o transformam em algo mais sombrio, melancólico, psicológico. Esse aqui pelo menos não elimina totalmente a ação e o terror, e ainda serve pra expor os horrores do regime Soviético. Tem sido comparado a Alien (1979), mas está mais para um O Céu da Meia-Noite (2020), A Chegada (2016), ou Vida (2017).



Pieces of a Woman (2020): 7.0

Se você quer um drama pesado sobre luto que te faça passar pela experiência de uma mãe perdendo o bebê, este é o filme. Parcialmente Naturalista e certamente malevolente, o filme parece se orgulhar da capacidade de causar desconforto, estimular sentimentos conflitantes, fazer o espectador encarar os detalhes mais brutais de cada situação. Não é uma intenção que admiro, mas há talento/sensibilidade o bastante na produção e alguns pontos positivos em termos de mensagem que me fizeram ter certo respeito.



Promising Young Woman (2020): 3.0

Carey Mulligan interpreta uma mulher traumatizada por eventos do passado envolvendo abuso sexual que se torna uma justiceira feminista se vingando de homens, abusadores em potencial, pessoas que tenham sido coniventes com algum caso de estupro, duvidado de relatos de vítimas, etc. A cultura hoje é motivada por ódio, e cada ódio particular é uma oportunidade para um novo filme/série que consiga capturar esse sentimento e proporcionar uma experiência definitiva de vingança, expurgo da raiva acumulada. Filmes como Destacamento Blood e Bacurau fizeram isso pelo ódio dos conservadores, das "elites", e agora Promising Young Woman faz o mesmo pelo ódio da "masculinidade tóxica". É uma atualização de Menina Má.com, mais sofisticada certamente, com um roteiro afiado, uma performance memorável de Mulligan, mas não muito superior em intenção.


Minari (2020): 6.0

Deve concorrer ao Oscar este filme sobre uma família de imigrantes coreanos tentando a vida nos EUA nos anos 80. É um filme Naturalista, mas com mais substância, sensibilidade e roteiro do que um filme oco como Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, por exemplo — e com uma atmosfera mais agradável também (os personagens são gostáveis, a atriz que faz a avó é ótima e gera uma série de momentos cômicos). Mas não deixa de ser mais um (!) conto anticapitalista, anti-EUA, chegando pra coletar prêmios da crítica. O diretor/roteirista Lee Isaac Chung é filho de coreanos e o filme foi parcialmente baseado em suas memórias de infância — sua família se mudou pobre para os EUA, e hoje ele é um cineasta premiado, indo para o seu 5º longa. Isso não o impediu de fazer um filme condenando os EUA, menosprezando a cultura americana (todos os americanos que aparecem no filme são patéticos), expondo a crueldade do "sistema", a ilusão do american dream, etc. É um First Cow com uma roupagem diferente, ou um Parasita com menos sangue.



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Superando o guilty boredom

Apesar da segurança que tenho hoje nas minhas ideias sobre filmes, já houve uma época em que eu era muito mais aberto e permissivo em relação ao cinema Não Idealista e a filmes que hoje não dou tanto valor. Até os meus 15, 16 anos, meu único interesse eram de fato os filmes americanos, os clássicos de Hollywood que sempre cito aqui. Quando morei nos EUA em 2001 e 2002 (tinha uns 18 anos) e já tinha visto a maioria dos grandes clássicos, comecei a abrir o leque e a explorar filmes mais independentes, alternativos — foi quando descobri cineastas como David Lynch, John Waters etc. Mas até aí, ainda estava num universo de entretenimento, vendo filmes por prazer.

De volta ao Brasil, lá pelos meus 20 anos (em 2003), fui trabalhar na 2001 Vídeo, uma rede de locadoras em São Paulo que tinha um acervo riquíssimo de filmes arte, cinema europeu, nacional, etc. E foi aí que comecei a me aprofundar no mundo do Naturalismo, do Experimentalismo. Até então, eu não tinha interesse algum nesse tipo de cinema, e hoje, quem me acompanha sabe bem o que penso desses estilos de arte. 2 fatores me levaram a querer mergulhar nesse novo universo. Primeiro, minha função na empresa era ser expert em filmes, conhecer de tudo pra poder indicar para os clientes, informar a equipe, etc. Então havia um interesse prático em consumir coisas que não eram do meu interesse espontâneo. Mas a principal motivação veio do fato de eu estar cercado de pessoas que tinham uma bagagem cinematográfica maior que a minha, e que pareciam extremamente cultas, sofisticadas intelectualmente. Subitamente, todos aqueles milhares de filmes que eu já tinha visto, os clássicos de Hitchcock, David Lean, Kubrick, Billy Wilder, pareciam não ser o bastante. Os "verdadeiros" cinéfilos, naquele novo núcleo, eram pessoas que conheciam filmes do Robert Bresson, Nelson Pereira do Santos, Jean-Luc Godard, Antonioni, Tarkovsky... Bergman e Fellini eram quase "pop" demais para alguns ali. Então obviamente me senti atrasado, e tive um impulso natural de correr atrás e corrigir essa "falha" no meu repertório. Embora eu não tivesse uma atração natural pelos filmes, havia "algo" naquele mundo que parecia misterioso, sofisticado, que eu não entendia direito, e precisava descobrir. Aquelas pessoas tão cultas e inteligentes ao meu redor não podiam estar todas erradas, afinal.

Eu assistia algo diferente todos os dias. A experiência de ver os filmes não era exatamente prazerosa. O prazer vinha mais do senso de "missão cumprida", de estar ampliando meu repertório, de saber que eu teria algo pra discutir no dia seguinte com meus colegas de trabalho. Não era um prazer imediato, que vinha diretamente da tela, dos personagens e dos eventos das histórias. Mas também não me parecia algo totalmente forçado, como a "obrigação" às vezes de ter que estudar algo que você não gosta, fazer determinados exercícios físicos. Havia um impulso, uma disposição, que vinha em partes dessa ambição profissional/intelectual, e em partes do desejo de pertencer ao "clube" dos cinéfilos com quem eu convivia.

Um "detalhe" que foi um combustível extra nesse processo foi uma espécie de paixão platônica que surgiu por uma pessoa daquele ambiente, que de certa forma simbolizava todo esse outro universo intelectual, que pra mim era intrigante, parecia esconder algo superior.

Às vezes comparo essa minha experiência com a de estudantes que entram na faculdade e começam a ser influenciados por professores de esquerda que os apresentam a uma visão mais complexa e malevolente de mundo (intelectuais em qualquer área tendem a tombar pra esta direção). E é justamente nessa fase do final da adolescência e do começo da vida adulta que estamos mais vulneráveis a esse tipo de influência. É normal nesse período querermos amadurecer intelectualmente, ir além das coisas que já conhecíamos quando criança, entender mais de filosofia, de política, de temas complexos. E quando chegamos aí, nossos únicos guias intelectuais parecem ter uma visão pessimista de mundo. São todos críticos em relação ao mundo moderno, ao cinema comercial, têm uma visão de mundo cínica e conflituosa, etc. O que te leva a fazer uma falsa escolha: ou amadurecer intelectualmente e com isso aceitar uma realidade mais deprimente, tediosa, sombria, ou então preservar seu universo iluminado, prazeroso, otimista, mas ser eternamente uma pessoa superficial e infantilizada.

Meu primeiro choque com esse mundo foi quando conheci o Rubens Ewald Filho, ainda antes de entrar na locadora. Eu tinha uns 17 anos. Antes de conhecê-lo pessoalmente, pra mim ele representava o mundo do Oscar, da Hollywood antiga. Eu sonhava em trabalhar com cinema, então conhecê-lo pessoalmente foi como chegar mais perto daquele universo mágico dos clássicos que eu via em VHS. Mas logo no primeiro encontro, me deparei com uma pessoa bem diferente da que imaginava. Rubens parecia ser o "homem do Oscar" apenas em frente às câmeras. Na prática, ele tinha muito mais em comum com cinema italiano dos anos 40/50, com os grandes diretores europeus, etc. Nesse primeiro encontro, surgiram já vários atritos com base em diferenças ideológicas que eu mal entendia na época. Ele fez certas críticas à minha criação, dizendo que o fato de eu ter crescido em Alphaville me colocava numa certa bolha, me deixava cego para a realidade. Sugeriu que fizesse um filme um dia, quando me tornasse cineasta, explorando o cenário em que cresci — uma espécie de Peyton Place brasileiro, expondo os escândalos e os podres por trás das classes mais altas. Num outro momento, ele fez uma observação maldosa e aleatória a respeito de uma expressão facial minha — um jeito inconsciente de tensionar os olhos, que pra ele devia parecer um micro-sinal de vaidade que não podia passar impune. Foram detalhes assim que me deixaram irritado e confuso nesse primeiro contato. Já entendia um pouco de questões políticas, e chegando em casa o confrontei por e-mail, observando que depois de todo um discurso sobre desigualdade, injustiças sociais, na saída do restaurante ele fechou o vidro na cara de um garotinho que veio pedir dinheiro, de uma maneira mais rude do que eu jamais teria sido capaz. Ele respondeu: "Bem observado. Com o tempo, você vai aprender que são dessas contradições que são feitos os seres humanos."

Apesar do início conturbado, tive uma relação amigável com ele durante vários anos, e sempre o respeitei como profissional, como pessoa. Mas obviamente pertencíamos a universos diferentes. Às vezes ele se irritava comigo em alguma discussão (geralmente por e-mail), e depois pedia desculpas lembrando que eu tinha apenas 17 anos... Gostava de dizer que eu "ainda ia levar muita porrada da vida". É o tipo de truque que te desarma intelectualmente. Alguém com 17 anos não tem como ter certeza que uma pessoa com 50 não enxerga outra realidade, superior à sua. Não há opção a não ser manter a mente aberta e aguardar para ver.

Mesmo nesse período, entrando na vida adulta, eu nunca reneguei meus filmes favoritos do passado. Os grandes sucessos de Hollywood continuavam no topo da minha lista. Porém eu tinha me tornado agnóstico, moralmente neutro em questões estéticas. Passei a dar crédito às premissas do Naturalismo, do cinema de arte. Quando olho minhas avaliações antigas no IMDb (tenho conta lá desde os anos 90), me surpreendo com as notas altíssimas que eu dava nessa época pra filmes que não me agradavam de fato. Filmes totalmente experimentais e sem talento não chegavam a me enganar. Mas filmes bem realizados, que tinham alguma profundidade psicológica, às vezes ganhavam meu respeito, mesmo eu ainda não entendendo 100% quais as reais virtudes dessas obras.

Olhando pra trás, vejo que dava notas altas especialmente quando percebia algum traço de Idealismo no filme, mesmo que muito de leve. Por exemplo: quando eu assistia algo esperando um realismo cru, absoluto, mas de repente, em uma breve cena, o filme me surpreendia com um elemento de escapismo. Ou quando um filme tedioso subitamente apresentava um Set Piece memorável, tinha um final impactante. Quando um filme deprimente de repente tinha uma cena otimista ou um final não trágico. Ou quando eu percebia um valor de produção surpreendente, quando o cineasta demonstrava uma habilidade técnica inesperada pra um filme mais "artístico". Ou seja, eu não estava aceitando totalmente as premissas do Não Idealismo e julgando os filmes com base nisso. Eu ainda estava me agarrando aos princípios do Idealismo — a diferença é que, quando eu via um filme como Titanic (1997), eu esperava ver essas qualidades em abundância, num grau extremo, em todos os aspectos da produção, do início ao fim do filme. Já num filme de "arte", bastaria uma indicação sutil de alguma dessas qualidades pra eu dar uma nota altíssima. Não era o prazer da "fatia de bolo" de Hitchcock. Era mais como o alívio de comer uma balinha na recepção após um exame médico torturante.

Um efeito colateral curioso desse período é que a questão do "guilty pleasure" se tornou mais presente na minha realidade, algo que não existia na minha infância/adolescência. Principalmente em contextos sociais. Quando eu estava sozinho ou com os poucos amigos que tinham um gosto parecido com o meu, não tinha problema algum em ver os filmes que gostava, consumir entretenimento Idealista. Era mais comum o outro lado da moeda: o "guilty boredom" — eu me sentir culpado por estar entediado com um filme "artístico" que eu deveria estar amando. 

O Idealismo não me gerava culpa, mas no mundo externo, ele parecia só poder se manifestar sob um manto de cinismo, de deboche, como se houvesse algo vergonhoso em curtir esse tipo de coisa (ou admitir isso socialmente). Eu não tinha convicção o suficiente pra condenar o cinismo nos outros e na cultura. Parecia algo inevitável, e em certas situações eu acabava aceitando, entrando na onda. Por não ter uma base intelectual sólida, eu ficava em cima do muro, dava certo mérito pras visões opostas de arte, o que me mantinha calado, impotente, mesmo no fundo eu sabendo que havia algo de errado.

Por exemplo: quando eu chamava amigos da locadora em casa pra fazer sessões de filmes, meu desejo era sempre colocar algo divertido, criar uma experiência positiva. Não ia colocar Godard. Mas eu também não me sentia à vontade pra sugerir um filme que eu admirasse completamente, pra ser visto de maneira séria, contemplativa. Acabava escolhendo algo divertido, com elementos Idealistas, mas que tivesse também algo tosco, de gosto duvidoso, que desse aos convidados a permissão pra debocharem da obra e se sentirem superiores. Era uma forma de me proteger também. Pois se exibisse algo que representasse meus ideais mais elevados, eu sabia que aquilo seria recebido de maneira fria, e que o deboche viria de qualquer forma. Portanto era menos incômodo passar algo que já tivesse algo explicitamente condenável. Criaria a ilusão de que o deboche era apenas direcionado ao que havia de "tosco", fútil ou errado no filme, não era um ataque aos meus valores pessoais.

Como eu gostava de músicas mais antigas dos anos 70–80, eu ia com frequência a festas que tinham um perfil mais retrô. Todas elas tinham essa atitude cínica em algum nível. Havia uma balada em São Paulo que chamava Trash 80's, e o nome já diz tudo. Essa em particular era um pouco demais pra minha cabeça, e lembro que mesmo na época eu já não gostava muito; lá o tom de deboche era explícito, escancarado, obrigatório. Mas outras já ficavam num meio termo — me davam a oportunidade de curtir a nostalgia, ignorando em partes o tom cínico (que ainda estava lá, só não era tão explícito a ponto de arruinar toda a experiência). Não parecia haver uma alternativa: um lugar onde eu pudesse ir, encontrar pessoas da minha idade, e que tocasse aquelas músicas num tom de admiração honesta.

Um episódio curioso que ilustra bem a tolerância maior que eu tinha nessa época foi uma vez quando ganhei um ímã de geladeira do Michael Jackson, que sempre foi um ídolo meu desde criança. Porém o ímã era claramente uma paródia... Vinha com várias peças avulsas; você podia deixar o Michael nu, fantasiado de Peter Pan, colocar um espelho onde ele se enxergava como a Diana Ross no reflexo, havia também uma seringa com tinta branca pra zombar da mudança da cor, etc. Eu não gostava desses acessórios, e já sabia o porquê. Então costumava deixá-lo só com o figurino do "Thriller". Mas mesmo assim, só pela expressão e pela pose, já dava pra perceber a atitude cínica. Hoje em dia eu não toleraria uma figura daquelas na minha geladeira. Mas na época, tinha a sensação de que as coisas eram assim, que seria exagero reclamar, que era apenas um senso de humor ou um "espírito esportivo" que me faltava. Assim, o ímã ficou na geladeira por alguns anos, mostrando como minha hesitação contribuía diretamente pra degradação dos meus próprios ideais.

Lá pra 2006/2007, esse meu flerte com o Não Idealismo já estava chegando ao fim. Eu não trabalhava mais na locadora desde 2005, mas continuava amigo de pessoas de lá, então não foi de imediato que perdi o interesse nos filmes de arte, em frequentar mostras, etc. O que realmente acelerou meu retorno aos meus interesses originais foi a tal da paixão platônica, que teve um final particularmente amargo. Foi provavelmente a experiência mais difícil emocionalmente pela qual já passei. Já tinha vivido outras situações parecidas no passado, mas nunca com uma pessoa que estivesse associada a este outro universo intelectual, que me remetesse ao senso de vida malevolente, ao subjetivismo, etc. Minha rejeição do Não Idealismo não veio apenas da avaliação estética de certos filmes. Foi por mergulhar no universo desses valores, e enxergar o que de fato ocorre na intimidade das pessoas quando elas absorvem certas premissas, aceitam certas filosofias — e principalmente o que acontece comigo quando me insiro no universo delas, o quão deprimente e vazia a vida pode se tornar — que fui pegando aversão a essas ideias.

Nesse estágio, minha bagagem cinematográfica já estava à altura da dos "verdadeiros cinéfilos". Já tinha lido as teorias, feito cursos, visto centenas de filmes daquelas prateleiras que antes pareciam fora do meu alcance, que me causavam a hesitação, a falta de confiança nas minhas referências. Fui me tornando seguro pois já conhecia por dentro o outro lado, e não tinha encontrado aquele "algo mais", a superioridade intelectual que imaginava. O que encontrei foi principalmente uma negação, a rejeição de certos valores positivos, como alguém que se revolta contra a realidade e começa a se perguntar: por que tudo tem que ser racional? Que tal começar a explorar coisas irracionais pra variar? Em vez de fazer algo lógico e coerente, que tal fazer algo ilógico, contraditório? Em vez de perseguir o belo, o alegre, o bem sucedido, que tal perseguir o feio, o triste, o derrotado? Em vez de cultuar a vida, que tal cultuar a morte? No fim era essa a grande "sofisticação" que havia por trás aquele universo artístico. Esse era o ingrediente "misterioso" que eu parecia não entender no começo, o código secreto que os experts ao meu redor conheciam e eu me esforçava pra decifrar. Foi em nome disso que eu me permiti ser neutro por tanto tempo, e permiti que as coisas que eu mais gostava fossem diminuídas, sem chance de defesa.

Daquela época da locadora, só uns poucos permanecem meus amigos até hoje. Perdi inclusive o contato com o Rubens Ewald ao longo dos anos. Mas não por escolha minha, necessariamente. Parece que enquanto eu ainda não tinha opiniões fortes, e mantinha uma postura neutra/agnóstica, pessoas com visões diferentes se sentiam mais à vontade ao meu redor. Mas quando comecei a discutir ideias de maneira mais detalhada, explícita, elas mesmas começaram a desaparecer.

A falsa dicotomia entre arte/entretenimento, que teve certa influência sobre mim naquele período, foi se dissolvendo nos anos seguintes. Quando comecei o blog em 2008 eu já estava emocionalmente preparado, porém ainda não tinha uma base intelectual sólida pra sustentar minhas ideias, algo que veio só depois de alguns anos. Mas aí eu já tinha certeza que pra evoluir intelectualmente eu não precisaria rejeitar meu idealismo artístico e o universo dos filmes que sempre me inspiraram.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Índice Idealista 2020

Alguns aqui devem se lembrar de quando eu associava as letras A/B/C/D/F aos filmes pra dizer o quão compatíveis eles eram com o Idealismo. Só por curiosidade, resolvi listar aqui todos os filmes que vi de 2020, primeiro por ordem de nota, e depois indicando pela cor em que categoria eles caem na minha opinião:

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VERDE (A): Filmes consistentes com os princípios do Idealismo.

AZUL (B): Filmes positivos em geral, mas não totalmente consistentes com o Idealismo (ou por serem ruins esteticamente, ou por ainda terem alguns toques negativos em termos de valores/mensagem).

LARANJA (C): Filmes com alguns elementos positivos, mas misturados com problemas graves, sinais de Anti-Idealismo, Senso de Vida malevolente, etc.

ROSA (D): Não Idealismo em geral — Naturalismo, experimentalismo, "filmes de arte", etc.

VERMELHO (F): Filmes onde elementos Anti-Idealistas fazem parte central da produção/intenção/mensagem.

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Filmes:

O Homem Invisível (2020) - 8.5

The Mauritanian (2020) - 7.5

Uma Noite em Miami... (2020) - 7.5

Possessor (2020) - 7.5

A Vastidão da Noite (2019) - 7.5

Amor e Monstros (2020) - 7.0

Destruição Final: O Último Refúgio (2020) - 7.0

On the Rocks (2020) - 7.0

The Rental (2020) - 7.0

Alguém Avisa? (2020) - 7.0

Host (2020) - 7.0

Mank (2020) - 7.0

Meu Pai (2020) - 7.0

Pieces of a Woman (2020) - 7.0

Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020) - 7.0

The United States vs. Billie Holiday (2021) - 6.5

Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars (2020) - 6.5

Freaky - No Corpo de um Assassino (2020) - 6.5

Malcolm & Marie (2021) - 6.5

Druk (2020) - 6.5

The Boys in the Band (2020) - 6.5

O Som do Silêncio (2019) - 6.5

A Escavação (2021) - 6.0

Fuja (2020) - 6.0

Sonic: O Filme (2020) - 6.0

Bad Boys Para Sempre (2020) - 6.0

Modo Avião (2020) - 6.0

Mulan (2020) - 6.0

Convenção das Bruxas (2020) - 6.0

Judas e o Messias Negro (2021) - 6.0

Estranho Passageiro - Sputnik (2020) - 6.0

Era uma Vez um Sonho (2020) - 6.0

Palm Springs (2020) - 6.0

Minari (2020) - 6.0

O Rei de Staten Island (2020) - 6.0

Mignonnes (2020) - 6.0

A Ilha da Fantasia (2020) - 5.5

Fúria Incontrolável (2020) - 5.5

A Missy Errada (2020) - 5.5

O Caminho de Volta (2020) - 5.5

Enola Holmes (2020) - 5.5

O Jardim Secreto (2020) - 5.5

Books of Blood (2020) - 5.5

Soul (2020) - 5.5

The Old Guard (2020) - 5.5

Borat: Fita de Cinema Seguinte (2020) - 5.5

Duas Tias Loucas de Férias (2021) - 5.0

Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020) - 5.0

O Chamado da Floresta (2020) - 5.0

Saint Maud (2019) - 5.0

Tudo Bem No Natal Que Vem (2020) - 5.0

Dolittle (2020) - 5.0

O Diabo de Cada Dia (2020) - 5.0

Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (2020) - 5.0

Resgate (2020) - 5.0

Relatos do Mundo (2020) - 4.5

O Tigre Branco (2021) - 4.5

Rebecca - A Mulher Inesquecível (2020) - 4.0

You Should Have Left (2020) - 4.0

Wolfwalkers (2020) - 4.0

Tenet (2020) - 4.0

Ameaça Profunda (2020) - 4.0

Bill & Ted: Encare a Música (2020) - 4.0

Emma. (2020) - 4.0

A Festa de Formatura (2020) - 4.0

Nomadland (2020) - 4.0

First Cow (2019) - 4.0

Os 7 de Chicago (2020) - 4.0

O Céu da Meia-Noite (2020) - 4.0

A Voz Suprema do Blues (2020) - 4.0

Greyhound: Na Mira do Inimigo (2020) - 3.5

Music (2021) - 3.5

Os Órfãos (2020) - 3.5

Mulher-Maravilha 1984 (2020) - 3.5

Maria e João: O Conto das Bruxas (2020) - 3.0

Mangrove (2020) - 3.0

O Que Ficou Para Trás (2020) - 3.0

Black is King (2020) - 3.0

Promising Young Woman - 3.0

A Caminho da Lua (2020) - 2.5

O Chalé (2019) - 2.0

Hamilton (2020) - 2.0

Downhill (2020) - 2.0

365 Dias (2020) - 1.0

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020) - 1.0

Lovers Rock (2020) - 0.0

Destacamento Blood (2020) - 0.0

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Séries de TV/Documentários:

Arremesso Final (Série/2020) - 10

The Bee Gees: How Can You Mend a Broken Heart (2020) - 8.0

Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado (2020) - 7.5

Mistérios sem Solução (Série/1ª Temporada/2020) - 7.5

Framing Britney Spears (2021) - 7.5

A Máfia dos Tigres (Série/2020) - 7.5

Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil (2021) - 7.0

Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha (2020) - 7.0

Taylor Swift: Miss Americana (2020) - 6.5

Jerry Seinfeld: 23 Hours to Kill (TV Special/2020) - 6.5

O Dilema das Redes (2020) - 6.0

Maior Viagem: Uma Aventura Psicodélica (2020) - 5.5

Professor Polvo (2020) - 4.0

O Capital no Século XXI (2019) - 0.0

domingo, 17 de janeiro de 2021

Small Axe

Série de 5 filmes dirigidos por Steve McQueen para a TV britânica que contam diversas histórias focadas em imigrantes negros das Índias Ocidentais em Londres entre os anos 60 e os anos 80. Vi só os 2 primeiros, que já esgotaram minha paciência.

No meu livro eu falo: "É apenas sob a premissa de que a arte é feita para o espectador que a maioria dos valores técnicos e artísticos de um filme fazem qualquer sentido. Se uma pessoa acredita que a função da arte é primeiramente social ou jornalística, ela não reclamará da falta de admiração pelos personagens, da ausência de trama, da produção precária, da negatividade, da falta de habilidade técnica, desde que a obra continue representando com eficácia os problemas sociais de determinada população." — é só essa premissa Naturalista que explica esses filmes estarem sendo aclamados pela crítica como alguns dos melhores do ano. O primeiro filme, Mangrove, ainda finge alguma preocupação com narrativa, drama, porém se você encará-lo como um drama de tribunal de fato, e compará-lo a outros do gênero, verá que o filme é de uma pobreza lastimável. O segundo filme, Lovers Rock, é uma das coisas mais bizarras que já vi. Um filme de 70 min, dos quais uns 30 consistem de uma câmera vagando aleatoriamente por uma festa, apenas registrando os convidados dançando, paquerando, remetendo mais a um vídeo caseiro gravado ao acaso do que a cinema. É uma experiência maçante, que se torna ainda mais imperdoável quando você lembra que McQueen já mostrou em As Viúvas (2018) que é capaz de fazer filmes de verdade.

Ep.1: Mangrove (2020): 3.0

Ep. 2: Lovers Rock (2020): 0.0

sábado, 16 de janeiro de 2021

Uma Noite em Miami...

Baseado numa peça de 2013, o filme recria uma noite onde 4 ícones — Malcolm X, Muhammad Ali, Jim Brown e Sam Cooke — se reuniram num quarto de hotel nos anos 60 para discutir questões raciais e políticas. Dos incontáveis filmes sobre causas de esquerda dessa temporada, esse é o único que achei de fato um bom filme. Se eu paro pra pensar no que realmente está acontecendo na história, na real intenção de Malcolm X, vejo que o filme vai totalmente contra minhas convicções políticas. Ele ilustra perfeitamente como ocorre a "Invasão Anti-Idealista" que discuto no meu livro — como intelectuais de esquerda são estratégicos na propagação de suas ideias, se aproximando de pessoas influentes na cultura e as convertendo para suas causas. Vendo o filme, lembrei inclusive do meu estranhamento em Arremesso Final (2020), ao notar a presença curiosa do Spike Lee ali, sempre na cola do Michael Jordan (havia algo de suspeito em Lee, que fez o filme mais podre ideologicamente do ano, Destacamento Blood, aparecer também na produção mais inspiradora de 2020). Eles não pareciam amigos de fato. Michael Jordan é um símbolo do "American Dream" — o que um marxista convicto como Spike Lee podia ter em comum com ele (além do tom de pele)? Fica a forte impressão de que ele queria fazer com Jordan o mesmo que Malcolm X fez com Muhammad Ali: influenciá-lo intelectualmente e usá-lo como instrumento para sua causa (o que no caso de Jordan não deu certo).

Ainda assim, achei Uma Noite em Miami um ótimo filme. Não há o tom de ódio e ressentimento típico do cinema político atual. Nem o Naturalismo. Os personagens são agradáveis, interessantes, o discurso não é tendencioso e unilateral (as ideias de Malcolm X são testadas e questionadas de maneira inteligente ao longo da noite). Malcolm parece um cara decente e equilibrado no filme. Na vida real, claro que ele provavelmente era muito pior, com suas noções de "nacionalismo negro", etc. Mas aqui, ele parece estar lutando principalmente contra o racismo, algo legítimo, ainda mais nos anos 60. Então o filme pode ser aproveitado como uma história de sucesso — sobre um homem em desvantagem tendo que persuadir os outros em nome de uma boa causa, através de diálogos inteligentes, conflitos bem explorados, até atingir seu objetivo no fim. O julgamento do filme sobre as ideias de Malcolm pode estar errado, mas o filme em si é feito de maneira habilidosa e bem intencionada (por exemplo: se um dia descobrirem que os "holocaust deniers" estão certos, isso não fará de A Lista de Schindler um filme péssimo).

Guardar uma boa apresentação musical para o final de um filme é sempre uma boa estratégia narrativa, e Sam Cooke cantando "A Change Is Gonna Come" aqui foi uma maneira brilhante de integrar isso ao tema e aos elementos dessa história em particular: a mensagem de Malcolm X finalmente sendo potencializada e transmitida para o mundo através da voz talentosa de Sam Cooke, após a persuasão intelectual bem sucedida.

One Night In Miami... / EUA / 2020 / Regina King

Filmes Parecidos: A Voz Suprema do Blues (2020) / The Boys in the Band (2020) / Os 7 de Chicago (2020) / Trumbo - Lista Negra (2015) / Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014)

NOTA: 7.5

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Nomadland

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.) 

ANOTAÇÕES:

- Logo na primeira cena já há um ar de vitimização e busca por piedade que é típica do Naturalismo. Pegamos a história do meio, a protagonista parece estar em algum tipo de dificuldade financeira, deixa sua casa chorando, e o filme espera que a gente se comova imediatamente, sem oferecer nenhum tipo de informação sobre quem ela é, o que houve, qual o contexto, etc.

- E antes de apresentar qualquer aspecto positivo da protagonista, o filme mostra ela parando o carro na estrada e indo urinar no mato. Logo após essa imagem "poética", surge o título Nomadland sobre um fundo preto. Cenas de introdução antes do título são como a capa de um livro, ou o pôster de um filme — algo que deveria resumir o tom geral da obra, tentar focar num elemento significativo que capte a essência da história. O fato da autora usar esse espaço privilegiado do filme pra mostrar a protagonista mijando no mato certamente diz algo sobre sua visão do ser humano.

- Fern consegue um trabalho na Amazon, mas óbvio que isso é só pra ilustrar que a Amazon não paga bem o bastante, não garante um mínimo de qualidade de vida para os funcionários. Aliás, todos os problemas dela parecem ter começado quando a empresa de sua cidade original fechou as portas, obrigando todo mundo a ir embora da cidade atrás de emprego. É mais um dos inúmeros filmes com temática anticapitalista na corrida pelo Oscar — só que em vez de demonizar o capitalismo de maneira explícita e raivosa como a maioria dos filmes, este prefere passar a mensagem de maneira mais sutil, passivo-agressiva. A protagonista não se queixa, não culpa ninguém, diz até que a Amazon paga bem. É pelas entrelinhas que o filme vai passando a ideia de que é uma injustiça terrível uma mulher com uma alma tão "profunda" quanto esta precisar trabalhar para sobreviver, que a culpa é sim das grandes corporações, do sistema capitalista, quem sabe até do governo por não fazer algo a respeito (por trás de todos esses filmes podemos ouvir a súplica silenciosa: "o governo precisa fazer algo sobre isso!").

- Diferente de Minari, aqui já temos um Naturalismo mais puro, onde não há trama, os personagens não têm propósito, são retrados de forma superficial, não há intenção alguma de entreter. Vemos apenas "fatias da vida", cenas do cotidiano de determinado grupo social (os críticos que dizem que filmes como esse ou Never Rarely Sometimes Always deveriam ganhar prêmios de roteiro só podem estar insanos). Podia muito bem ter sido um documentário — inclusive a diretora escalou vários não-atores para o filme, nômades de verdade, pra deixar tudo ainda mais real, menos "manipulado".

- Fern até que consegue vários bicos, mostra que poderia ter um emprego mais estável se quisesse, chega a ter a oportunidade de largar a vida de nômade e ir morar na casa do amigo, mas parece que ela mesma não quer isso; que é uma escolha dela ter essa vida sem raízes, sem rumo, viver fora da civilização, como os personagens de Na Natureza Selvagem ou Capitão Fantástico. A mensagem se torna ambígua... Por um lado, o filme faz uma crítica às grandes corporações por não cuidarem dos trabalhadores, mas daí sugere que é a própria Fern que não quer uma vida estruturada. Mas se ela quer ser nômade, por que retratá-la como vítima, como uma pessoa prejudicada, infeliz? O que ela de fato quer, então? Claro que definir o desejo central do protagonista é um recurso do cinema mais narrativo/comercial... Nesse caso, quanto mais a mensagem é ambígua, contraditória e aberta a interpretações, mais o filme agradará à crítica.

- Em Soul, vimos os "males" de termos um propósito, de perseguirmos nossos sonhos... A história de Nomadland parece ser a realização daquele aprendizado do final de Soul. Fern jogou fora o "sonho americano" (não quer casa, carreira, família), e agora vive por aí sem rumo, sem propósito, apenas apreciando a paisagem, curtindo os pequenos momentos. Claro que ela está deprimida na maior parte do tempo, precisa defecar em baldes, passar frio, limpar privadas vomitadas pra ganhar uns trocados. O filme é honesto o bastante pra não glamourizar totalmente esse estilo de vida (nada pode ser ideal no Naturalismo, nem o sonho americano, nem a rejeição do sonho americano). Mas o filme parece achar que há algo de poético e superior na existência dela, mesmo reconhecendo os pontos negativos. É como se a alternativa (fazer parte do "sistema") fosse tão deplorável que fugir disso justificasse qualquer sacrifício.

Nomadland / EUA, Alemanha / 2020 / Chloé Zhao

NOTA: 4.0