terça-feira, 30 de novembro de 2021

Encanto

Animação musical da Disney dos criadores de Zootopia, com canções originais escritas por Lin-Manuel Miranda (que está em tudo este ano) sobre uma garota na Colômbia que é o único membro de sua família que não nasceu com poderes mágicos. Menos radical que Coco, o filme ainda assim pertence à vertente Não Idealista da Disney cujo foco está mais em educar o público do que em entreter (promover valores como diversidade, esforço coletivo, respeito aos "não especiais" — e ao mesmo tempo desestimular a competição, o individualismo e a busca pela perfeição). É um daqueles roteiros mais água-com-açúcar onde não há grandes sacadas, conflitos (nem há um vilão praticamente) e as soluções para todos os problemas dependem apenas de um abraço afetuoso (a cobiçada "cura emocional"). Algumas canções achei divertidas até (como "Colombia, Mi Encanto"), embora uma ou outra tenha me parecido enfiada à força na história (especialmente a sequência da mulher fortona). Não achei terrível, mas nem preciso dizer que não me encantou.

Encanto / 2021 / Byron Howard, Jared Bush

Nível de Satisfação: 4

Categoria C/F: Entretenimento Não Idealista (foco em educar; remediar dores) / Alguns toques de Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Raya e o Último Dragão (2021) / Viva: A Vida é uma Festa (2017) / Moana - Um Mar de Aventuras (2016) 

Noite Passada em Soho

De Edgar Wright (Baby Driver / Shaun of the Dead), o filme conta a história de uma garota que se muda para Londres para estudar moda, mas chegando lá, começa a ser perturbada por visões dos anos 60 envolvendo outra garota (Anya Taylor-Joy), um assassinato brutal, e se vê no meio de um pesadelo, perdida entre realidade e fantasia. É um desses filmes onde o estilo do diretor é mais importante do que a história... Não acho que esse seja o background de Wright de fato, mas ele tem o perfil de diretores que começam na publicidade ou fazendo videoclipes, e quando migram para o cinema não percebem que entraram num universo totalmente diferente, onde a importância da narrativa é muito maior. Um dos problemas estruturais aqui é que demora mais de 1 hora pro filme realmente começar, pois até a protagonista ter a visão do assassinato e resolver fazer algo a respeito (o que teria ocorrido em 20 minutos num roteiro tradicional), não há um verdadeiro gancho — não entendemos pra onde o filme está caminhando, que gênero de história estamos vendo, deixando tudo meio tedioso, conceitual demais, como se o cineasta estivesse interessado apenas em bolar transições criativas entre passado e presente, entre uma personagem e outra (tipo fã de Hitchcock que fica tão fascinado com as mecânicas da direção que esquece que Hitchcock antes de mais nada era um mestre do suspense). Outra questão aqui é que muito do que acontece de mais dramático está apenas na mente da protagonista... Thomasin McKenzie está sempre fugindo de assassinos ou figuras sinistras que a plateia já sabe se tratarem de alucinações, portanto não há um verdadeiro senso de perigo, de que a trama está avançando para algum lugar. Então acaba sendo um daqueles filmes onde a protagonista só busca resolver alguma ferida emocional... E essas manifestações visuais, físicas, são apenas uma forma do filme ilustrar metaforicamente a batalha interna da "heroína" — o que pra mim não resulta em um bom thriller (coloquei aspas em "heroína" pois a personagem é extremamente frágil, mal tem segurança pra abrir a boca pra falar, que dirá pra enfrentar assassinos).

Last Night in Soho / 2021 / Edgar Wright

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Entretenimento prejudicado por Subjetivismo e por pôr estilo acima de conteúdo (Pseudo-Sofisticação / 1999 e o Declínio da Objetividade)

Filmes Parecidos: A Mulher na Janela (2021) / Cisne Negro (2010) / Mãe! (2017) / Repulsa ao Sexo (1965)

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia

Tenho visto (e revisto) entrevistas com diretores de fotografia renomados, e é interessante notar como a abordagem de alguns naturalmente tomba mais pro Idealismo e a de outros mais pro Naturalismo.

Fotógrafos mais próximos do Idealismo frequentemente falam de seus trabalhos como "pintar com luz", e até costumam estudar pintores clássicos pra entender como luz e cores criam certas impressões no observador. Esse tipo de fotógrafo se sente estimulado pela conceito de começar com um cenário totalmente escuro, sem luz, e a partir daí ir acrescentando luzes com base no que querem que o espectador sinta, no que o diretor quer comunicar com a cena, e assim vão decidindo o quanto de sombra deve haver no rosto do personagem, qual a qualidade e a direção da luz, o que deve ser realçado ou minimizado na imagem pra direcionar a atenção do espectador, que texturas interessantes podem ser criadas — além claro das decisões ligadas a lentes, composição, movimentos de câmera, etc.

Já outros fotógrafos, talentosos também, mas que tombam mais pro Naturalismo, citam frequentemente o conceito de "luz motivada", algo muito em alta hoje, que é o princípio de que a luz incidindo sobre o cenário e os atores deve ter sempre uma justificativa plausível; estar vindo de alguma janela (mesmo que seja uma luz artificial colocada fora da janela) ou de pontos de luz existentes no cenário (abajures, lustres, etc.). Partindo desta restrição, eles podem até criar imagens lindíssimas — não estou dizendo que isso resultará em algo feio esteticamente — mas é uma abordagem bastante diferente, e que reflete a visão de cada um sobre o que é arte, quais as regras do jogo, etc.

Os "Idealistas" moldam a realidade com mais liberdade pra gerar o impacto desejado no espectador. Eles enxergam o frame como uma tela em branco, e se sentem responsáveis por cada informação que incluem ali. Os Naturalistas já colocam o realismo num patamar mais alto; pensam primeiro na realidade da cena, do ambiente físico, e daí decidem como fotografar aquilo de maneira interessante; mas não se sentem tão à vontade pra "manipular" livremente a experiência do espectador. É como se a artificialidade da arte os incomodasse, e com esse tipo de fotografia eles buscassem tornar o cinema um pouco menos "desonesto" (esquecendo talvez que o roteirista já inventou eventos impossíveis, que os atores estão fingindo o tempo todo, que o compositor colocará música onde não haveria música na vida real, etc.).

Não estou falando aqui de extremos opostos — da diferença entre Nomadland (2020) e Os Sapatinhos Vermelhos (1948), por exemplo — e sim de algo mais sutil, que pode explicar por que Blade Runner 2049 talvez pareça menos "mágico" visualmente do que o Blade Runner original, mesmo tendo imagens fantásticas e sendo uma produção igualmente rica. Roger Deakins, que é um dos melhores e mais populares diretores de fotografia em atividade, faz filmes lindos visualmente (1917 / Onde os Fracos Não Têm Vez / Skyfall), mas costuma sempre manter um pé no Naturalismo e na ideia de luz motivada.

Quando olho para os filmes dos anos 70–90 que eu gosto (ou até dos anos 30, 40, 50), vejo que muito do encanto já era criado na direção de fotografia, e que o fato dos fotógrafos da época estarem mais em sintonia com princípios Idealistas os deixava livres pra agirem como "pintores de luz", e criarem um tipo de efeito que é impossível no Naturalismo.

Existem centenas de formas de moldar a imagem para atingir efeitos dramáticos, e um filme não precisa seguir exatamente os exemplos que vou listar a seguir. Mas só pra citar 2 técnicas clássicas que passaram a ser usadas com menos frequência nas últimas décadas, vamos pegar por exemplo o contra-luz. O contra-luz é uma luz colocada atrás do ator (ou do objeto filmado), o que cria um contorno brilhante ao redor dele. Alguns teóricos justificavam essa técnica com base na necessidade prática de "separar" o ator do fundo do cenário (algo que era ainda mais importante quando o cinema era preto e branco os objetos na tela se confundiam mais), mas a verdade é que um dos principais efeitos do contra-luz é que o "halo" brilhante que ele cria ao redor do ator (um brilho no cabelo, na lateral do rosto, no ombro) acaba tornando o personagem mais glamouroso, "maior que a vida", e menos como pessoas comuns que enxergamos no dia a dia. Esta sempre foi uma das luzes mais usadas em Hollywood, mas nas últimas décadas ela passou a ser vista como uma convenção desnecessária, um pouco antiquada, por remeter demais à linguagem comercial dos anos 80/90, algo que a nova geração de criadores buscava se distanciar (assim como o contra-luz foi saindo de moda, o uso de tripés e câmeras estáveis também se tornou "clássico" demais, dando início à tendência da câmera na mão). Claro que ainda se usa o contra-luz, mas ele geralmente é mais suave, mais "motivado", e menos consistente ao longo do filme, o que não provoca o mesmo efeito (na minha opinião, quando a luz não é motivada e não é totalmente natural é que o efeito se torna realmente fascinante, dependendo do gênero de filme).


Exemplos de como o contra-luz era usado de forma mais marcada e expressiva no passado (à esquerda), e como hoje a luz tende a ser mais natural, mesmo em cenas com contra-luz.

Outra técnica que foi se tornando menos comum é o uso de fumaça ou haze (névoa) nos filmes. Fumaça é algo que pode ser um elemento cenográfico, mas que pode ser também um recurso da direção de fotografia; um elemento usado ao longo do filme (mesmo em cenas onde não há uma justificativa pra fumaça) pra criar certa atmosfera e tornar o universo do filme mais interessante. Fumaça (ou haze) sempre foi usada de forma subliminar nos filmes e até hoje é algo usado em tudo o que é conteúdo audiovisual, mesmo quando o espectador não se dá conta (só registramos subconscientemente que há certa "atmosfera" na cena, sem perceber que é porque estamos literalmente enxergando a atmosfera — o que só ocorre por causa da fumaça jogada no cenário).



Acima uma cena de Coringa com haze, e depois uma comparação de um cenário com haze e sem.

A diferença é que hoje isso é usado com mais discrição e comedimento, algo que requer ainda mais justificativa do que o contra-luz. Se você pega um filme do Spielberg antigo por exemplo, você vai ver que não só as luzes não precisavam ser sempre realistas e prováveis (pense no início de Contatos Imediatos, e a sombra da árvore sendo projetada na casa), como nem mesmo fumaças intensas precisavam ser justificadas. Às vezes Spielberg tentava justificá-las, colocando cigarros em cena, ventanias exageradas pra levantar poeira (outros tipos de particulas no ar também valem), churrasqueiras ou barris ao fundo com algo pegando fogo, só pra conseguir ter fumaça em cenas externas (que é mais difícil do que em internas). Mas às vezes ele simplesmente queria fumaça lá sem grandes explicações. Veja esta cena de Jurassic Park que se passa dentro de um trailer — onde aparentemente ninguém está cozinhando — e fique observando a janela ao fundo; como a luz entrando cria um feixe visível, algo que só ocorre na presença de fumaça/haze, e como a partir da metade do clipe, eles não se deram o trabalho nem de dissipar a fumaça pra disfarçar.




Em E.T. há um exemplo ainda mais fascinante do uso de fumaça: na cena logo perto do início, onde Elliott e os amigos estão na sala brincando e pedindo pizza, há muita fumaça no ambiente, criando um clima meio onírico (a fumaça meio que justificada por um cigarro da mãe que está na mesa). Já nas cenas externas, a fumaça é explicada pela neblina. 



Mas o mais interessante é na cena do dia seguinte, que se passa na mesma sala onde os garotos brincavam, só que desta vez a fumaça não é usada — pois a ideia nesse momento é criar um clima de "de volta à realidade", dar a impressão de que tudo aquilo que aconteceu na noite anterior não passou de uma fantasia. Isso muito provavelmente foi planejado, pois notem como no final desta sequência, quando Elliott resolve ir lavar a louça irritado, e levanta os olhos para o céu (voltando a "sonhar"), a fumaça retorna, desta vez justificada pelo vapor da água quente da pia. O vapor surge numa quantidade tão exagerada que não é possível que Spielberg (e o fotógrafo) não tenham usado aquilo de propósito (consciente ou inconscientemente) como recurso narrativo: um símbolo associado ao mundo mágico para o qual Elliott (e o espectador) deseja ser transportado.




Claro que é preciso ter em mente que o propósito final é fazer o espectador acreditar na história, ser transportado para a realidade do filme. Se a fotografia se torna tão teatral, tão irreal, a ponto de chamar a atenção do espectador, distanciá-lo da história, isso prejudica o filme. O ideal é que esses elementos sejam percebidos subconscientemente, e o foco do espectador continue nos acontecimentos da história. Em E.T., há luzes irreais mesmo na segunda cena, a do "de volta à realidade" — um contra-luz sutil no cabelo da maioria dos atores; ou a luz entrando pela persiana e criando riscos de baixo pra cima na parede da cozinha, algo bem improvável numa casa de verdade. A fotografia nunca se torna Naturalista de fato, mas o fotógrafo entende que não se pode usar todos os truques a todo momento, pra não atropelar a história.

Esses exemplos são de técnicas mais voltadas para filmes escapistas, fantasias/aventuras, etc. Num drama, ou numa comédia romântica, esse tipo fotografia talvez não se encaixe. Ainda assim, há inúmeras formas de usar a fotografia de forma expressiva, dramática, se o filme quiser fugir do Naturalismo. Kubrick não gostava de luzes artificiais, por exemplo, e muitas vezes colocava abajures e luzes "práticas" fortes o bastante no cenário, a ponto delas bastarem para iluminar o ambiente, deixando-o livre pra apontar a câmera em qualquer direção, sem ter refletores no set limitando seus ângulos. Seus filmes, portanto, têm luzes mais realistas, menos glamourosas, mas ainda assim, através de enquadramentos, lentes, composição, cenografia, ele criava imagens incríveis que passavam longe de uma linguagem documental, Naturalista. Então a essência do Idealismo não é necessariamente ser escapista, fantasioso, e sim ser expressivo, dramático, moldado para provocar determinado efeito no espectador.




Se pegarmos os 4 pilares do Idealismo separadamente, podemos entender melhor como eles se aplicam à fotografia de cinema:

Objetividade — Seria respeitar a necessidade do espectador por ordem, clareza, compreensão; composições que criem algum senso de ordem visual, que "simplifiquem" a complexidade do ambiente físico; que tenham um foco e conduzam a atenção do espectador para apenas um ou dois elementos em cena, minimizando na imagem tudo o que é irrelevante ou distrativo; câmeras "ativas" que sejam usadas com propósito, para comunicar ideias, narrar a história, etc. O extremo oposto dessa abordagem seria, por exemplo, a câmera "catatônica" do cinema experimental, que não acompanha a ação de propósito, foca em coisas aleatórias e deixa eventos importantes ocorrerem fora de quadro, ou que simplesmente aponta a câmera na direção da ação sem se preocupar com enquadramento, fundos, luz, narrativa visual, etc.




Benevolência — Está na intenção geral de mostrar um universo melhorado; de usar a câmera para criar harmonia, beleza, uma realidade mais "colorida" do que a que encontramos no dia a dia. A negação disso seria o tipo de filme que usa imagem pra incomodar, pra mostrar o lado trágico e obscuro da vida (câmera na mão, imagens dessaturadas, luzes duras, ênfase em conteúdos negativos como violência, feiura, etc.). Abaixo o final de Vitória Amarga (1939), considerado pesado para a época (SPOILER), pois a protagonista (Bette Davis) tem um tumor no cérebro e morre na cena final. Na história, tinha sido estabelecido que quando ela perdesse totalmente a visão, ela já estaria próxima da morte, então a câmera desfocada no fim é basicamente uma forma criativa de "matar" a personagem; um tipo de sutileza e foco no positivo que seria impensável hoje em dia, num filme com este conteúdo:




Autoestima — Numa entrevista com Janusz Kamiński, grande parceiro de Spielberg, ele comenta que uma das principais preocupações de Steven nas filmagens, no que diz respeito à fotografia, é que os atores pareçam dignos e enobrecidos na tela. Essa preocupação com a dignidade dos atores é uma das manifestação básicas do fator Autoestima, e há uma série de técnicas para se buscar este resultado (como o já discutido contra-luz; criar luzes personalizadas pra favorecer as qualidades do rosto de cada ator; filmar o ator de um ângulo mais baixo para torná-lo mais grandioso, etc.). Mas o conceito pode se manifestar também num nível mais formal; no simples ato de se criar uma fotografia elaborada, tecnicamente virtuosa (mesmo que o foco não seja favorecer o elenco, afinal nem toda história comporta isso). O oposto disso seriam filmes que desglamourizam os atores de propósito, que são fotografados de maneira simples, sem grande técnica, etc. Abaixo, Jack Cardiff comentando sobre como estudava as atrizes com quem trabalhava antes de filmá-las (começa em 1:02:32 e vai até 1:05:09).




Excitação — É usar a imagem pra estar sempre estimulando o espectador, criando interesse, envolvimento, escapismo, trazendo novidades, surpresas, não entediando. Fumaça e luzes "irreais" cairiam nessa categoria (ou silhuetas, por exemplo, que além de mistério podem também engrandecer os personagens). Mas há muitos recursos dentro desta categoria: movimentos de câmera envolvendo trilhos, dollys, gruas (que fazem a plateia "voar" e se deslocar como em um simulador); cores vivas; uma boa variedade de composições e enquadramentos, de forma que a atenção do espectador esteja sempre avançando para algo novo e interessante; Reveal Shots; planos que culminem em alguma surpresa visual; efeitos especiais (CGI, práticos, matte painting, etc.), o uso de lentes teleobjetivas (que, diferentemente de lentes "normais" que são mais Naturalistas e próximas da visão humana, nos fazem ver um mundo por um olhar diferente, que comprime e seleciona a realidade de uma maneira impossível para o olho nu), efeitos óticos como o dolly-zoom, ou até o zoom simples, que também é impossível para o olho humano; câmera-lenta, etc. O contrário seria uma câmera que apenas registra o que está na frente dela de maneira direta, passiva, com uma "lente normal"; ou planos longos, monótonos, onde o foco seja só os diálogos, sem nada de visualmente interessante. Abaixo Dean Cundey falando sobre como Spielberg planeja suas cenas pra sempre estimular o espectador  (começa em 29:32 e vai até 31:24)




Claro que a fotografia sozinha não faz o filme, e não vai conseguir transformar uma história realista, com pessoas comuns, em algo totalmente inspirador. Um exemplo disso é o filme O Fundo do Coração (1981), do Coppola, que é um ótimo filme e explora incrivelmente o conceito de "pintar com luz", mas que por ter um conteúdo mais realista e melancólico, não se torna um entretenimento escapista só por causa do visual.

E é claro que há lugar pra estética Naturalista nos filmes — nada contra os que se propõem a fazer um tipo diferente de cinema (ou iniciantes que não tenham verba pra criar muitos desses efeitos). Mas meu papel aqui é promover a abordagem Idealista, e no caso de filmes cujo propósito é entreter, transportar o público, eu acho frustrante essa predominância atual do Naturalismo na fotografia, que pra mim impede muito da magia do cinema de ocorrer.


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Casa Gucci

Segundo lançamento recente de Ridley Scott, o filme conta a história da queda da dinastia da família Gucci entre os anos 70 e 90, focando principalmente no assassinato de Maurizio Gucci (Adam Driver) orquestrado por sua ex-mulher Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Já falei algumas vezes que Ridley Scott só faz grandes filmes quando cai um roteiro bom nas mãos dele e um projeto já no rumo certo, o que não foi o caso aqui infelizmente. No nível de roteiro, o filme já apresenta uma série de problemas — não entendemos direito o que levou Maurizio a se casar com Patrizia, que de cara já parece uma oportunista sem grandes afinidades com ele. Maurizio, que é apresentado como um rapaz honesto que inicialmente quer distância do universo decadente da família, de repente começa a se tornar mau caráter e ganancioso sem grandes explicações... Todos esses arcos de personagens são meio confusos, e ao final da história você não entende que lição tirar da tragédia; a morte de Maurizio fica parecendo apenas um crime passional aleatório que não está exatamente ligado à decadência do business da família, e portanto não serve como um clímax satisfatório. É como se o roteiro quisesse usar o assassinato pra fazer os Gucci parecerem uma espécie de família Corleone, envolvida em uma série de crimes tenebrosos... Quando na verdade, tirando esse incidente com Patrizia, os outros crimes parecem envolver apenas sonegação de impostos, nada tão impensável que coloque a família no patamar de mafiosos. O filme não consegue encontrar uma linha narrativa satisfatória, que amarre todos esses eventos com algo interessante a observar. O lado "O Poderoso Chefão" / "o crime não compensa" da trama acaba não funcionando direito, e nem o lado "Atração Fatal", sobre uma ex-mulher desequilibrada, já que as relações e o caráter dos personagens são mal construídos.

Outro problema do filme (e este provavelmente é o que mais chama atenção) são as atuações, especialmente as caracterizações de Lady Gaga e Jared Leto. Gaga pelo menos se esforça, apesar de não se encaixar no papel. Já Leto parece estar de zoeira no filme... No começo eu tinha esquecido que era ele interpretando Paolo, e estava achando tão bizarra e incômoda a atuação daquele senhor, que não estava entendendo como um ator tão sem-noção podia estar num filme como aquele... Depois que me dei conta que era o Jared Leto, tudo fez mais sentido. Mas é o tipo de coisa que só "funciona" se você sabe que é uma celebridade disfarçada, fazendo gracinha pro público, ou aquele tipo de cameo que você perdoa a ruindade por ser alguém supostamente "acima" da função de ator, como quando surge uma figura que destoa totalmente do filme, e daí você saca: "Ah, é o Mike Tyson!" ou "Ah, é o diretor do filme fazendo uma ponta!".

Não é uma história desinteressante, mas vários probleminhas assim vão se somando e dando impressão de uma produção fora de prumo... Há exageros gritantes na maquiagem do Jeremy Irons, que em vez de doente, parece mais alguém fantasiado de Família Addams pro Halloween. Outra coisa estranha: o filme vai dos anos 70 aos anos 90, mas você não percebe um envelhecimento notável nos atores, e os estilos de cada década não são muito marcados, te deixando desorientado quanto ao período em que estamos (a trilha sonora é esquisita também — tocam quatro músicas da Donna Summer sem explicações pra tamanha ênfase; e na cena do casamento entre Maurizio e Patrizia, que teoricamente seria no início dos anos 70, toca "Faith" do George Michael, que é do final dos anos 80, sendo que o resto do filme não tem essa linguagem desconstruída, de misturar elementos de épocas). É o típico filme que acaba sendo indicado a Framboesas de Ouro, por ser uma produção ambiciosa, com certas qualidades, mas misturada com alguns defeitos primários que até leigos conseguem notar.

House of Gucci / 2021 / Ridley Scott

Nível de Satisfação: 5

Categoria B: "Idealismo crítico" com problemas de roteiro e execução

Filmes Parecidos: Saint Laurent (2014) / O Lobo de Wall Street (2013) / Foxcatcher (2014) / The Assassination of Gianni Versace - American Crime Story (2018)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

tick, tick...BOOM!

Estreia na direção de Lin-Manuel Miranda (criador de Hamilton / In the Heights), que é uma adaptação para o cinema do musical autobiográfico de outra figura importante do teatro musical, Jonathan Larson, que morreu precocemente nos anos 90 antes de ver sua peça Rent se tornar um grande hit na Broadway. O filme acompanha Larson (muito bem interpretado por Andrew Garfield) como um artista talentoso, porém sem reconhecimento, passando por uma série de dificuldades em sua vida pessoal e profissional, enquanto busca seu "big break" em Nova York. Assim como Rent, é um musical mais realista, com uma visão de mundo semi-trágica, mas comparando com a adaptação de Querido Evan Hansen que saiu recentemente, por exemplo, é um filme bem mais talentoso e respeitável. Não sou particularmente fã do estilo de Larson e de sua música, mas considerando que este era o artista, e esta foi sua história, fica difícil imaginar como o filme poderia ter sido mais adequado e competente em contá-la.

tick, tick...BOOM! / 2021 / Lin-Manuel Miranda

Nível de Satisfação: 7

Categoria C: Entretenimento com senso de vida negativo, mas bem feito

Filmes Parecidos: The Boys in the Band (2020) / Bo Burnham: Inside (2021) / Rent: Os Boêmios (2005) / O Show Deve Continuar (1979) / Torch Song Trilogy (1988) / Fama (1980)

domingo, 21 de novembro de 2021

A Crônica Francesa

Novo filme de Wes Anderson sobre a equipe de um jornal fictício na França (inspirado no The New Yorker) e as histórias que rodeiam a última edição do jornal após a morte de seu editor. É uma espécie de antologia onde as histórias contadas não têm muita relação umas com as outras, exceto pelo fato de se passarem no mesmo universo; são mais crônicas sobre acontecimentos aleatórios e curiosos do que histórias interligadas por um tema, com algo importante a dizer. Como muitos filmes do Wes Anderson, tudo acaba parecendo um grande pretexto pra ele exercitar seu estilo visual, criar aqueles equadramentos super elaborados que parecem mais destinados a uma galeria de arte do que a uma sala de cinema. Eu poderia praticamente copiar e colar meus comentários sobre O Grande Hotel Budapeste que eles se aplicariam quase perfeitamente a este filme.

The French Dispatch / 2021 / Wes Anderson

Nível de Satisfação: 4

Categoria D: Não Idealismo ("filme de autor" / exercício de estilo)

Filmes Parecidos: O Grande Hotel Budapeste (2014) / O Fantástico Sr. Raposo (2009) / A Vida Marinha com Steve Zissou (2004) / Annette (2021)

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ghostbusters: Mais Além

Ignorando o reboot de 2016, Mais Além dá sequência aos dois Ghostbusters dos anos 80 dirigidos por Ivan Reitman, pai de Jason Reitman, que é quem dirige este aqui. O filme se passa no interior de Oklahoma nos dias de hoje, e mostra a neta de um dos Caça-Fantasmas originais descobrindo os segredos do falecido avô e liberando alguns fantasmas no processo.

Achei que seria pior, pois um dos trailers era estranhamente contemplativo, e me deu a impressão de que o filme poderia virar um drama melancólico sobre jovens desajustados. Felizmente o filme não vai por essa linha e continua apostando na diversão, o que não quer dizer que ele abrace por completo o espírito dos filmes antigos também. Alguns personagens, diálogos, e a própria ambientação rural dão um toque mais naturalista pra produção que entra em conflito com o lado do filme que quer criar escapismo e nos transportar pro universo autêntico da franquia (o casal de irmãos até que achei simpático, mas essas personagens mal-humoradas, sem qualquer leveza, como a mãe ou a namoradinha de Trevor, são típicas do cinema de hoje e seriam inconcebíveis no entretenimento do passado, por exemplo). Mas diferente de um filme como Eternos, onde a cineasta não parecia ter mão pra lidar com o gênero, Jason Reitman já se mostra bastante confortável aqui, e executa o filme com uma competência acima da média (até por ser filho de quem é). Mas vindo de filmes como Juno, Amor Sem Escalas, ele acaba trazendo sua sensibilidade mais cínica (e atual) pra história, o que compromete em partes a diversão (isso mesmo levando em conta que Caça-Fantasmas já não era uma comédia plenamente Idealista).

Ghostbusters: Afterlife / 2021 / Jason Reitman

Nível de Satisfação: 6

Categoria C: Entretenimento com valores mistos

Filmes Parecidos: Star Wars: A Ascensão Skywalker (2019) / It - Capítulo 2 (2019) / Stranger Things (2016) / Zumbilândia (2009)

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Alerta Vermelho

Vem sendo divulgada como a produção mais cara da Netflix essa comédia de ação sobre ladrões de arte rivais em busca de 3 ovos de ouro que pertenceram a Cleópatra. O filme começa em ambientes urbanos sofisticados (museus, festas de bilionários) remetendo a filmes como Thomas Crowne - A Arte do Crime, True Lies, mas aos poucos vai se tornando um pouco mais fantasioso, com cenários e situações mais removidas da realidade. Achei legal a proposta de um entretenimento mais leve, tentando emular coisas dos anos 80/90, mas em termos de qualidade, ele acaba se parecendo mais com produções rotineiras da época — do tipo Armadilha com a Catherine Zeta-Jones — do que com os grandes blockbusters que sobreviveram ao teste do tempo (como Indiana Jones), aos quais ele faz diversas referências. Funciona como um bom passatempo pra quem quiser uma diversão despretensiosa... Eu como gosto de diversões pretensiosas (pelo menos em talento e criatividade, se não em atitude) achei apenas regular.

Red Notice / 2021 / Rawson Marshall Thurber

Nível de Satisfação: 6

Categoria B: Idealismo sem muita originalidade ou ambição artística

Filmes Parecidos: Armadilha (1999) / Thomas Crowne - A Arte do Crime (1999) / True Lies (1994) / A Lenda do Tesouro Perdido (2004) / Onze Homens e um Segredo (2001)

Cultura - Novembro 2021

15/11: Novidades musicais

As coisas que mais me animaram no entretenimento recentemente não vieram do cinema, e sim da música — o comeback do ABBA após um hiato de 40 anos, com o álbum Voyage (e seus inovadores "Abbatars"), e também os shows One Night Only e An Audience With... marcando o retorno da Adele para o lançamento do álbum 30. Deixo aqui nem tanto como recomendação, mas mais como um daqueles registros pra não acharem que eu que me tornei um rabugento e nada mais me agrada hoje.

domingo, 14 de novembro de 2021

Querido Evan Hansen

Adaptação do musical vencedor do Tony sobre um aluno do ensino médio que sofre de ansiedade social e se envolve em um grande mal entendido após o suicídio de um colega. A música é de Pasek and Paul que estão por trás de 2 dos musicais modernos que eu menos gosto: La La Land e O Rei do Show. E aqui mais uma vez eles vêm com a proposta de desconstruir o gênero, misturando a linguagem musical com elementos naturalistas. Além dessa mistura já estranha, outra coisa que torna o filme confuso é o fato dele começar focado no tema da ansiedade social, dando a entender que será uma história de superação (o diretor é o mesmo de Extraordinário, e o filme inicialmente parece estar seguindo essa linha), até que de repente se torna a história de Evan enganando diversas pessoas a respeito de uma situação aleatória, e se enfiando numa grande enrascada que não tem muito a ver com a solução de sua ansiedade. O filme cria o desejo de vermos o personagem superando suas dificuldades sociais e deixando de ser um "loser", mas em vez disso, mostra ele cometendo uma série de erros e provando ser um loser maior ainda do que imaginávamos — no começo ele só era socialmente inseguro, mas ainda tinha um charme inocente; agora, além de tudo ele se provará desonesto e insensível, fazendo as pessoas gostarem ainda menos dele! Em vez de um musical inspirador, o filme vira mais uma dessas produções atuais que pegam um gênero escapista pra transformá-lo numa discussão sobre fragilidades humanas, dar um falso boost de confiança para pessoas quebradas emocionalmente, etc.

Dear Evan Hansen / 2021 / Stephen Chbosky

Nível de Satisfação: 4

Categoria: C/F: Entretenimento com valores mistos / elementos Anti-Idealistas

Filmes Parecidos: O Rei do Show (2017) / A Festa de Formatura (2020) / O Som do Coração (2007) / Glee (2009) / Rent: Os Boêmios (2005)

sábado, 13 de novembro de 2021

O Culpado

Já tinha visto o original dinamarquês, que era suficientemente bem feito, então estava com preguiça de ver o remake americano, até porque se trata de um desses filmes que se passam praticamente em um único cenário, com poucos atores, então não esperava um grande upgrade em termos de produção.

Jake Gyllenhaal interpreta Joe, um policial que trabalha atendendo chamadas 911, quando é surpreendido por uma ligação de uma mulher no meio de um sequestro, e começa a tentar ajudá-la à distância. Um dos problemas aqui é que este é um "filme de serviço" — atender chamadas de emergência já é o trabalho de Joe, e embora esta chamada em particular seja mais dramática do que a média, não é algo tão inesperado ou extremo assim a ponto de criar um senso de aventura (um bom indício disso é que os outros operadores do call center seguem trabalhando normalmente — não é o tipo de caso que faz com que todos se reúnam ao redor da mesa de Jake). Sem falar que nada da vida pessoal do protagonista está de fato em jogo. Ele não tem responsabilidade alguma pelo sequestro, não está sendo ameaçado, não conhece nenhum dos envolvidos, então independentemente do resultado, no fim do expediente ele pode ir pra casa e continuar sua vida normalmente (eles até tentam criar um arco onde o protagonista passa por uma transformação interna ao longo do caso, mas é algo bem forçado, pois não há uma conexão clara entre os dramas pessoais de Joe e a situação do sequestro).

SPOILER: Outro problema é que todo o esforço de Jake é pra salvar uma mulher desequilibrada que acabou de esfaquear o próprio bebê, e não uma vítima inocente. Um detalhe estranho é que no começo da história, quando Jake acha que foi o pai que matou o bebê, ele fica totalmente indignado, diz que o pai deveria ser preso e executado pelo que fez. Mas assim que ele descobre que foi a mãe em vez do pai, sua postura muda totalmente... De repente ele quer ajudá-la, só demonstra empatia, compreende que ela fez aquilo por ter problemas mentais, não por ser má (o pai não poderia ter problemas mentais também?). Eu simplesmente achei difícil de me importar pela necessidade dele de salvar a mulher, então a história pra mim foi perdendo muito do interesse.

Das mudanças em relação ao original, a que talvez tenha me incomodado mais foi a caracterização dada ao protagonista. No dinamarquês, tínhamos um homem mais controlado, profissional... Aqui, já há uma ênfase enorme nas fragilidades de Joe; a necessidade de mostrá-lo como um homem de saúde frágil, com problemas familiares, que é impulsivo, agressivo, faz coisas estúpidas, chora o tempo todo, e não um herói inteligente, no domínio da situação.

Ou seja, o que parecia ser uma versão mais minimalista (e quem sabe melhorada) de Chamada de Emergência (2013), é na verdade um drama sobre pessoas falhas aprendendo a lidar com suas dores (uma policial chega a dizer a frase "pessoas quebradas salvam pessoas quebradas", que torna explícito o tema geral do filme).

The Guilty / 2021 / Antoine Fuqua

Nível de Satisfação: 3

Categoria C/F: Entretenimento com valores mistos / elementos Anti-Idealistas

Filmes Parecidos: Culpa (2018) / Oxigênio (2021) / Buscando... (2018) / Gravidade (2013) - mas sem ação e efeitos

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Finch

Ficção pós-apocalíptica onde Tom Hanks (Finch) viaja num trailer por uma América devastada, acompanhado apenas de seu cachorro e 2 robôs (ele é praticamente o único ator no filme) fugindo dos perigos climáticos, em busca de alimentos e de um lugar seguro pra viver, sempre evitando contato com outros seres humanos, nos quais não se pode confiar (ou seja, uma representação fiel do mindset de muita gente em 2021).

Parece uma mistura de O Céu da Meia-Noite com coisas que Hanks já fez no passado (o robô Jeff nos remete tanto à bola de vôlei de Náufrago quanto à garotinha Kiowa de Relatos do Mundo). O fato da produção ser da Amblin e ter Robert Zemeckis envolvido dá ao filme um tom mais leve do que o de outras produções recentes com histórias parecidas. O problema é que o roteiro não é de fato leve ou inspirador, o que cria um desencontro entre estilo e conteúdo. Esteticamente, parece que estamos vendo um entretenimento familiar agradável do tipo WALL-E. Mas tematicamente, é um filme melancólico, com um senso de vida trágico, onde desde o começo sentimos que não há esperança para o protagonista ou para a humanidade. George Clooney passava O Céu da Meia-Noite inteiro lidando com uma doença terminal, assim como Tom Hanks aqui, mas como Meia-Noite já tinha um tom deprimente, isso não causava tanto estranhamento quanto ver Hanks, com toda sua doçura, tossindo sangue vermelho em seu terno branco, numa paisagem lindamente fotografada.

Em termos de narrativa, o filme sofre um pouco da falta de objetivos, do foco ser todo na jornada, e não haver nada de interessante pra se esperar. Eles querem chegar em São Francisco, mas o que o protagonista realmente deseja encontrar lá? É só um destino vago que define a direção da viagem, mas não tem carga dramática, pois não há nada lá que possa realmente transformar a condição do personagem. O objetivo de Finch está mais ligado à sua relação com o robô Jeff, pela qual eu achei difícil de simpatizar, pois Jeff pra mim é apenas a bola do Náufrago com uma Siri instalada, mas sem um pingo a mais de vida (e com ainda menos expressões faciais). Quando Jeff é apenas um artifício pra conhecermos melhor o protagonista, o filme funciona bem. Mas quando temos que ver o robô como um personagem independente, pelo qual deveríamos nos importar, eu me peguei pensando que teria me envolvido mais se este fosse apenas um filme de cachorro (dos quais raramente sou fã).

Pelo menos filosoficamente o filme foge de alguns clichês, mostrando a tecnologia como uma aliada do homem, em vez da vilã; mostrando a destruição da Terra tendo sido causada por fatores naturais, e não pela ganância humana como de costume; há inclusive um discurso em favor do desempenho individual, questionando a soberania do esforço coletivo, que é a mensagem padrão de todos os filmes.

Finch / 2021 / Miguel Sapochnik

Nível de Satisfação: 5

Categoria C: Entretenimento com valores mistos

Filmes Parecidos: O Céu da Meia-Noite (2020) / Relatos do Mundo (2020) / O Chamado da Floresta (2020) / Eu Sou a Lenda (2007)

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Titane

Da mesma diretora de Grave (2016), este foi o grande vencedor do Festival de Cannes 2021. O filme acompanha uma dançarina sensual com uma placa de titânio na cabeça (e uma cicatriz enorme deixada por um acidente de carro na infância) que além de se revelar uma serial-killer, faz sexo com automóveis e chega a engravidar de um. Assim como Annette e tantas coisas que fazem sucesso em Cannes, é mais um desses filmes experimentais, altamente interpretativos — a diferença é que Annette era mais agradável e parecia apenas querer causar estranhamento, quebrar com as regras (o que ao fim de Titane já me parecia uma intenção nobre). Titane já tem como meta perturbar o espectador do começo ao fim. É basicamente 1h40 de imagens desagradáveis do tipo: uma cirurgia no crânio de uma criança filmada em close, mamilos sendo mordidos com força, tentativas de aborto com uma agulha, diversos assassinatos brutais, a protagonista tentando quebrar o próprio nariz na quina de uma pia, coçando a barriga incessantemente (grávida) até furar a pele... E tudo isso sem o humor, sem a inteligência e sem a riqueza estética que tornam filmes do Lars von Trier como Anticristo recompensadores, por exemplo.

Quando vi Grave, eu já tinha desconfiado que era um filme vazio, querendo apenas chocar, mas como era o primeiro longa de Julia Ducournau, ainda dei o benefício da dúvida (eu podia não ter entendido sua "profundidade" ainda). Mas agora a máscara caiu... Vendo o filme, lembrei da minha madrasta, que vivia brincando que pra ficar famosa como artista plástica, um dia ela iria pegar uma tela, ir em frente a um hospital público em São Paulo, e pintar um quadro completamente nua. Não tenho dúvidas de que teria dado certo. Por que um hospital? Por que pintar pelada? Não precisa ter um sentido... Um hospital público é uma locação ótima pra um ato do tipo. Certamente iria gerar interpretações fascinantes. E uma mulher pelada então, nem se fala! Sempre que você pega elementos ligados a sexo, violência, religião, tecnologia, dinheiro, política, e os usa de maneira contrastante e provocativa numa obra, você não precisa realmente ter algo a dizer. O público inventará um significado sozinho. Por exemplo: pegue uma figura de Jesus (religião), e coloque um "M" do McDonald's (capitalismo) em cima da cruz — trabalho feito! Pinte uma mulher nua (sexo), mas com o botão de "Unlock" do iPhone (tecnologia) no lugar do órgão genital — já será o suficiente pra todos acharem sua "crítica" genial (e se a mulher estiver cheia de hematomas então [violência], melhor ainda). O que Titane quer dizer com seu tratamento brutal do corpo feminino? E com carros? O fato de Alexia sentir atração por carros (aquilo que a machucou na infância) discute algum tipo de codependência entre abusado e abusador? Será que somos movidos por nossos traumas? Ou será que carros representam o "masculino", e é tudo uma reflexão sobre a vitimização da mulher? Ou será que é sobre como as máquinas destroem nossa humanidade, e ainda assim somos obcecados por elas? Há um pouco pra todo mundo: pra quem quiser achar mensagens sobre ambientalismo, sobre identidade de gênero, relações familiares, fragilidade masculina, objetificação do corpo da mulher — e talvez essa salada de símbolos ambíguos seja o grande trunfo de Titane. Tenho certeza que Ducournau tem explicações incríveis para o filme, mas o que vi na tela infelizmente não tinha mais substância que o plano da minha madrasta.

Titane / 2021 / Julia Ducournau

Nível de Satisfação: 0

Categoria D: Não Idealismo (experimentalismo / subjetivismo / simbolismo)

Filmes parecidos: Grave (2016) / Corpo e Alma (2017) / Azul é a Cor Mais Quente (2013) / Irreversível (2002)

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Eternos

ANOTAÇÕES:

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- A sequência inicial já deixa a impressão do filme ser meio malfeito, e da Chloé Zhao não ter mão pra esse tipo de cinema (o que já era meio óbvio). A cena na praia tem uma fotografia feia; a ação não é bem coreografada; a escolha da trilha na hora do título é estranha; Angelina Jolie que merecia uma grande entrada já é revelada no meio de outros heróis de forma casual, como uma mera coadjuvante; um simples movimento de câmera que só precisava acompanhar a adaga sendo pega no chão parece desleixado, pois a câmera não acompanha direito a subida; mais pra frente em cenas de diálogo onde não há trilha sonora, ouve-se um som ambiente estranho de fundo, que deixa o filme com cara de produção independente, etc.

- Os Eternos estão há 5 séculos aguardando o retorno dos monstros (Deviants), mas quando finalmente um deles aparece na Terra, em vez do filme criar uma cena impactante, grandiosa, o monstro surge num riozinho em Londres, numa sequência bem esquecível.

- O filme devia ser uma história simples de heróis tentando livrar o mundo dos invasores, mas a narrativa vai ficando extremamente confusa. Vamos pulando de um milênio pro outro, de um continente pro outro, de uma cultura pra outra... não é criado um universo coeso nem uma estrutura clara.

- Muitos atores parecem mal escalados. Poucos convencem como super-heróis ou têm o tipo de carisma certo pro gênero (e quem tem, é mal aproveitado).

- O documentário sendo gravado é um alívio cômico que destrói a seriedade de vários momentos. E o filme fica insistindo no personagem do cinegrafista, que não tem muita graça ou relevância.

- Os filmes de heróis hoje parecem ser os que mais lutam pra não provocar nenhum senso de admiração... Não só nenhum herói consegue se destacar direito pois o foco é todo no esforço coletivo (temos até uma "uni-mente"), como o filme segue as tendências de borrar a linha entre bem e mal, mostrando heróis agindo de forma destrutiva, traindo os outros, criando conflitos internos... E o maior obstáculo deles é o Celestial dentro da Terra, que não é uma criatura má, porém seu nascimento requer a destruição do planeta... Então em vez de um embate claro entre bem e mal, o filme foca mais em dualidades, conflitos de interesse complexos etc.

- A narrativa continua um caos... Uma hora o filme discute a origem do universo, daí do nada estamos em Hiroshima ouvindo um discurso sobre a bomba, depois vamos pra um musical de Bollywood — há uma bagunça de elementos, e às vezes nem sabemos claramente o que é flashback e o que está acontecendo de fato (SPOILER: a Salma Hayek acho que morre umas 3 vezes na história, e quando ela aparece, eu nunca sei se ela usou poderes de regeneração, ou se ela ainda está morta e é um flashback).

- A maneira como o Celestial vai saindo do centro da Terra não faz o menor sentido. Em vez do planeta rachar, é como se ele estivesse emergindo de um líquido, quando na verdade ele já teria que ter destruído todo o manto e a crosta terrestre daquela região antes de chegar na superfície (aliás, o Celestial está pequeno demais pra uma criatura que deveria ter quase o tamanho do planeta... se ele é "só" deste tamanho, dava pra deixá-lo nascer tranquilo que ele não iria destruir o planeta inteiro). Sem falar que foi fácil demais matá-lo (esforço coletivo parece realmente ser a solução pra tudo).

- SPOILER: Alguns auto-sacrifícios no final pra manter a tradição... Pelo menos aqui temos algo menos clichê: um herói que comete um suicídio real, motivado por culpa, em vez de um ato altruísta pra salvar alguém!

- SPOILER: Um pouco anticlimático a Duende abrir mão da imortalidade pra realizar seu sonho de ser humana, mas depois de transformada, o filme mostrá-la numa cena cotidiana, com cara de emburrada, como se nada tivesse mudado (em vez de mostrá-la feliz, vivendo seu sonho).

- Ridículo o Celestial gigantesco surgindo nos céus, pra no fim só dar uma "bronca" nos heróis, e dizer que volta mais tarde pra resolver se irá puni-los.

------------------------------

Eternals / 2021 / Chloé Zhao

Nível de Satisfação: 0

Categoria F: Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Mulher-Maravilha 1984 (2020) / Capitã Marvel (2019) / O Último Mestre do Ar (2010)

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Marighella

Filme dirigido por Wagner Moura sobre a vida do guerrilheiro comunista Carlos Marighella que foi um dos líderes da luta armada contra a ditadura militar no Brasil nos anos 60. Nos últimos anos vimos diversas histórias parecidas no cinema, como Judas e o Messias NegroMangrove, então os adiamentos na estreia de Marighella fazem ele chegar aos cinemas agora com uma cara de lugar-comum que não é totalmente merecida. Mas parte dessa impressão é também culpa do próprio filme e da caracterização dada ao protagonista, que pra mim pareceu apenas mais um de tantos líderes similares que lutaram pelas mesmas causas nessa época, sem nada de particularmente extraordinário ou diferente (algo que ocorre também em biografias de músicos famosos, que seguem sempre a mesma fórmula: falam do vício em drogas, das relações abusivas, etc.). Essa qualidade genérica é típica também de filmes que querem retratar "mitos" em vez de personalidades críveis (como filmes sobre Jesus) pois o personagem já surge na tela pronto, com seu caráter formado, com uma missão pré-estabelecida, e o espectador assiste a tudo de fora, sem conhecer as motivações e conflitos mais pessoais que movem aquele indivíduo, o que gera menos envolvimento.

Não costumo gostar muito de filmes biográficos e nem de dramas políticos, pois são gêneros que tendem a colocar a função histórica/informativa acima da satisfação do público, então filmes como Marighella pra mim são naturalmente chatos de assistir (sem falar que este é bem longo). Ele é basicamente um relato histórico dos últimos anos do guerrilheiro, e pula de um evento relevante para o próximo de forma meio desconexa, sem grandes ideias narrativas, sem criar suspense, cenas elaboradas, etc. A direção é igualmente funcional; quase tudo é filmado com câmera na mão, reforçando essa ideia de um relato realista, sem rodeios (apesar da produção ser de ótimo nível). Outro ponto negativo pra mim é que este é daqueles filmes que romantizam personagens de caráter duvidoso, onde todo mundo na história parece motivado por ódio, vingança (tanto os "mocinhos" quanto os "bandidos") e não há nada de realmente positivo pra esperar. Desde o começo você sabe que o ápice de "satisfação" do filme será provavelmente um grande massacre, uma cena de tortura difícil de assistir, e que a intenção do diretor é causar indignação na plateia, ganhar respeito através da brutalidade, etc. Então não é um filme pra mim, mas levando em conta os grandes hits do cinema brasileiro como Tropa de Elite e Cidade de Deus, não duvido que faça sucesso, pelo menos entre os que não cancelarem o filme de antemão por conta do teor político.

Marighella / 2021 / Wagner Moura

Nível de Satisfação: 4

Categoria D/C: Não Idealismo (função política/social) / Entretenimento com valores negativos

Filmes parecidos: Judas e o Messias Negro (2021) / Small Axe: Mangrove (2020) / Infiltrado na Klan (2018) / Tropa de Elite (2007)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Annette

Dirigido por Leos Carax, o mesmo de Holy Motors, que foi uma das minhas principais referências ao escrever a postagem Experimentalismo e Subjetivismo (só por aí já dá pra ter uma ideia do que achei do novo trabalho). O filme (que venceu melhor direção em Cannes) "conta a história" de um comediante de stand-up e de uma cantora de ópera famosa que vivem um casamento conturbado, e têm uma filha chamada Annette (interpretada por uma boneca de madeira sem grandes explicações) que herda o talento vocal da mãe e se torna uma sensação mundial ainda muito pequena. O filme é um musical (com músicas compostas pela banda americana Sparks) e tem elementos de fantasia. Mas não espere boas músicas, bons cantores ou mesmo uma boa história. O propósito aqui (como de costume no cinema francês) é principalmente o de brincar com a linguagem cinematográfica, subverter o gênero, quebrar normas estéticas, etc. O filme não é desprovido de valor de produção — apesar de alguns efeitos trash e das músicas parecerem amadoras, vemos atores de primeira como Adam Driver e Marion Cotillard, a fotografia é decente, etc. Mas isso tudo só serve pra fornecer uma embalagem respeitável ao grande nada que é o filme. Durante a primeira meia hora ainda me diverti com os elementos inusitados, mas passada a novidade, a ausência de história, aliada à pretensão de Carax, pra mim tornaram o filme desinteressante.

Annette / 2021 / Leos Carax

Nível de Satisfação: 3

Categoria D: Não Idealismo (experimentalismo)

Filmes Parecidos: The Square: A Arte da Discórdia (2017) / As Boas Maneiras (2017) / Holy Motors (2012)

Atualizações Pessoais - Novembro 2021

- Asperger:

Em 2017 eu gravei um vídeo sugerindo que eu poderia ter Síndrome de Asperger (uma suspeita levantada por um psiquiatra em 2012), e só pra atualizar quem não me segue nas redes sociais, entre Julho e Outubro deste ano eu passei por uma avaliação neuropsicológica mais completa (que é uma série de testes aplicados por uma psicóloga pra medir suas aptidões e funções cognitivas), e no fim do processo foi descartada a hipótese de Asperger, assim como a de outros transtornos relacionados. Pelo contrário, meu desempenho foi acima do esperado não só nos testes cognitivos, mas também nos de percepção social, nos quais quem tem Asperger não se sai bem. Claro que isso não faz desaparecer os incômodos que me levaram a consultar um psiquiatra em primeiro lugar, mas muda a explicação para esses incômodos (isso tudo me fez pensar que meu psiquiatra de 2012 funcionou como uma espécie de Matrix na minha trajetória pessoal, plantando uma semente de dúvida na minha mente que me faria questionar a validez das minhas percepções com mais frequência a partir dali, rs). 


- Objetivismo:

Embora o objetivismo tenha me trazido inúmeros benefícios e aprendizados, desde o início eu sempre hesitei em me rotular como objetivista, pois a filosofia não consiste apenas de suas premissas mais fundamentais, mas vem atrelada a um pacote enorme de valores e atitudes com os quais nem sempre eu concordei. Essas diferenças não me pareciam grandes demais até uns anos atrás, então não me incomodava que outros me rotulassem assim — mas novos insights e descobertas foram me levando a querer me dissociar do movimento, especialmente nos últimos meses, pois ficou mais claro que minhas divergências não envolvem apenas detalhes superficiais. Então embora eu ainda continue acompanhando alguns intelectuais da área, admirando as realizações de Rand, e mantendo muitos dos mesmos princípios, hoje eu já prefiro enfatizar que não me identifico como objetivista, e não abraço a filosofia em todo seu "pacote". Em Fevereiro de 2020 eu postei um vídeo no YouTube discutindo meu status em relação ao objetivismo, e embora o vídeo seja bem ponderado, hoje ele já estaria um pouco desatualizado. E até passagens do meu livro, onde o objetivismo tem uma influência mais direta, já sofreriam edições caso eu o relançasse hoje, por isso acho importante deixar esse registro.

* Vou deixar disponível abaixo a palestra do Nathaniel Branden "The Benefits and Hazards of the Philosophy of Ayn Rand" (dividida em 4 partes) que mencionei nos comentários: