segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Glass Onion: Um Mistério Knives Out




Se a trama de Glass Onion se provasse razoavelmente coerente, bem amarrada, eu teria um respeito maior pelo filme, mas ainda não seria o tipo de trama que mais me diverte, pois já discuti aqui o problema dos "whodunits", e de filmes cheios de reviravoltas, onde personagens espertalhões estilo Sherlock Holmes estão sempre à frente do público. Assim como existem os "feel-good movie", esses pra mim são "feel-stupid movies" — não vejo graça em me ver sempre atrás de todos na narrativa, apenas aguardando um sabe-tudo me explicar os eventos depois através de flashbacks que mais confundem do que esclarecem qualquer coisa. Pra eu me envolver com um personagem/linha de ação, eu preciso estar no mínimo na mesma página que o protagonista em termos do que sabemos sobre a situação. Ou então saber mais que ele — que era a forma de Hitchcock prender a atenção. Mas é difícil se conectar com alguém que está o tempo todo te enganando e ocultando o que sabe. 

E o pior é quando o roteiro não tem preocupação alguma com lógica, clareza, e ainda assim quer se passar por esperto, engenhoso. Só pra citar algumas questões básicas que tornam a situação forçada e incoerente: por que o bilionário Miles convidaria a ex-sócia Andi pra ilha, se os dois tinham sérios conflitos pessoais? (SPOILERS daqui em diante) E por que a irmã gêmea da Andi, sabendo que há um assassino na ilha, iria se arriscar indo pra lá desprotegida (e ainda expor uma prova tão importante quanto o guardanapo)? Dezenas de contradições e questionamentos como esses vão se acumulando ao longo da história (o argumento de que os personagens são incrivelmente burros chega a ser usado pra explicar as incoerências), até que você simplesmente desiste de tentar conectar os pontos — uns vão assumir que Rian Johnson é brilhante e pensou em tudo; outros, como eu, vão achá-lo incompetente e desonesto, usando uma tática meio Christopher Nolan de apresentar algo que parece racional e complexo superficialmente, mas que serve mais pra desintegrar o senso de objetividade do público. (Assim como a melhor forma de corromper Autoestima é promovendo anti-heroísmo em histórias de heróis, a melhor forma de corromper Objetividade é pegando histórias de detetive, mistérios que pressupõem coerência, lógica, e daí fazer a plateia se sentir tão confusa quanto a personagem da Kate Hudson quando exclama "What is reality?!!". Vale observar também que John Lennon compôs a canção "Glass Onion" — que inspirou o título do filme — justamente pra zombar de espectadores que analisavam demais as músicas dos Beatles, e fez uma letra cheia de pistas e simbolismos que de propósito não tinham significado algum). 

Tudo isso no fim vira só uma desculpa pro Rian Johnson passar suas mensagens políticas habituais (lembrem que ele foi o responsável por Star Wars: Os Últimos Jedi), atacar bilionários, zombar de estereótipos associados à direita (o influencer amante de armas que parece inspirado no Joe Rogan; as musas fitness dessas que davam festa durante o lockdown, estão sempre sendo canceladas por deixarem escapar comentários preconceituosos nas redes sociais, etc.). O filme não é de fato uma comédia; está mais pra um "thriller irônico" (Idealismo Corrompido). Quase todo o humor na verdade consiste desse escárnio com teor político; uma atitude de olhar os personagens de cima pra baixo. Nem mesmo os protagonistas são totalmente admiráveis — além das gracinhas, os superpoderes mentais de Benoit Blanc são tão desconectados da realidade quanto os poderes físicos de heróis da Marvel; outra forma eficaz de fazer virtude parecer um ilusão.

O filme combina o desprezo por bilionários com ativismo ambiental, mostrando que a grande invenção de Miles (um combustível neutro em carbono que resolveria a questão do impacto no clima) é algo altamente inflamável e perigoso (gasolina também é perigosa se você jogá-la no fogo irresponsavelmente — mas é melhor ignorar esses detalhes). A essa altura muitos já perceberam que o objetivo maior dos ambientalistas não é impedir mudanças climáticas, e sim usar dessa questão pra atacar o capitalismo — portanto um dos maiores receios deles é que alguém invente um combustível eficiente que não tenha impacto no clima, pois isso impediria o ambientalismo de ser usado com esse propósito. Por isso, Miles e seu combustível são os vilões "perfeitos" pro momento atual (faz o público associar invenções do tipo a intenções maléficas), e Glass Onion é tão antenado que no final ainda se inspira na moda de "ativismo de museu" (jovens que vêm atacando obras de arte famosas como forma de protesto), fazendo a personagem da Janelle Monáe destruir a Mona Lisa — a mais valiosa de todas as pinturas — só como tática pra "cancelar" o bilionário e seu combustível (e devemos achá-la admirável por isso; por levar o conceito de "disrupção" realmente a sério — não ser como o bilionário, que admira disruptores apenas quando suas inovações resultam em mais riquezas e produtividade; em vez de implodir o sistema todo).

Glass Onion: A Knives Out Mystery / 2022 / Rian Johnson

Satisfação: 3

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: O Menu (2022) / Morte no Nilo (2022) / Morte, Morte, Morte (2022) / Assassinato num Dia de Sol (1982)


domingo, 25 de dezembro de 2022

Dezembro 2022 - outros filmes vistos

Noite Infeliz (Violent Night / 2022 / Tommy Wirkola)

Tem algumas boas sacadas e diverte no começo, mas eventualmente vira um filme-de-uma-piada-só que se torna um pouco cansativo; mais inventivo na violência do que no humor em si.

Satisfação: 6

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Entre Armas e Brinquedos (2020) / Natal Sangrento (1984) / Crônicas de Natal (2018)



Filho da Mãe (2022 / Susana Garcia)

Bons registros da vida pessoal de Paulo Gustavo e dos bastidores de seu último espetáculo, com depoimentos tocantes de parentes e amigos.

Satisfação: 7

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Até os Ossos

Road movie dirigido por Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome) que se não fosse por 1 elemento bizarro, seria apenas um filme Naturalista comum, sem muita trama, sobre jovens desajustados vivendo às margens da sociedade, fugindo do passado, dando apoio um ao outro em seus conflitos pessoais, vivendo um romance (mas daqueles onde o que une o casal é o fato deles sofrerem e aceitarem as falhas um do outro — não espere nada muito inspirador), até que jogam uma cena trágica aleatória no final pro filme terminar dando aquela impressão de que algo aconteceu. O tal do elemento bizarro é que os personagens aqui não são marginalizados por razões comuns como pobreza, vício em drogas, e sim por serem canibais — e o filme mostra isso de maneira muito "sensível", como se fosse um problema normal de saúde alguém ter o impulso de devorar conhecidos, parentes, e como como se existissem diversos canibais por aí na sociedade, se encontrando secretamente, formando uma subcultura própria, etc. Então é um Naturalismo com elementos de terror, o que cria uma mistura inusitada de gêneros. Há bons atores que mantém o filme minimamente agradável, como Timothée Chalamet, Mark Rylance (que não acho um ator especialmente carismático, mas que é de uma versatilidade surpreendente). Mas no fim a história não passa de uma contemplação gratuita do mal, um filme que quer humanizar as monstruosidades dos personagens, e que não tem nem a justificativa básica do Naturalismo de estar dando visibilidade pra problemas relevantes da sociedade (se bem que, considerando filmes como RawFresh, o sucesso da série Dahmer e o escândalo recente do Armie Hammer — que inclusive trabalhou com Chalamet e Guadagnino em Me Chame Pelo Seu Nome — vai ver canibalismo é uma nova tendência mesmo e eu que não estou atualizado).

Bones and All / 2022 / Luca Guadagnino

Satisfação: 3

Categoria: NI / AI

Filmes Parecidos: Raw (2017) / Titane (2021) / Pearl (2022)


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Avatar: O Caminho da Água

James Cameron sempre foi um dos meus cineastas favoritos, mas como comentei na crítica recente, Avatar é um filme que, apesar dos méritos técnicos, tem uma série de fraquezas narrativas que foram ficando mais evidentes pra mim em revisões, e essas fraquezas continuam presentes agora na parte 2.

Em termos de CGI, a produção é obviamente um espetáculo, e até supera o primeiro em realismo e em quantidade de detalhes. Mas eu não sou o tipo de espectador que se deslumbra demais com efeitos gráficos, a não ser que estejam atrelados a um ótimo roteiro. E em termos de história, personagens, trama, mensagens, O Caminho da Água é mais problemático que o primeiro filme.

Ato 1:

O filme começa nos mostrando o que houve com os Sully desde os eventos da parte 1. Agora eles têm uma porção de filhos, e demora um pouco até a gente se familiarizar com os rostos, entender a estrutura da família, pois há filhos biológicos misturados com adotivos, irmãos de criação, e no meio disso temos que absorver ainda uma série de detalhes expositivos.

Os Sully estão felizes, tiveram pelo menos uns 15/20 anos de paz, mas agora o Povo do Céu está de volta pra destruir Pandora — um detalhe meio exagerado é que só pra pousar uma das naves (são inúmeras que chegam), os humanos causam uma devastação na floresta que parece 3x mais cataclísmica do que tudo que ocorreu no primeiro filme.

E aqui começam alguns dos meus problemas com o ambientalismo de Avatar, que não quer simplesmente passar uma mensagem positiva de preservação da natureza, mas mistura isso com um certo anti-humanismo; a visão de que o ser humano (e o progresso humano) são como um câncer pro planeta; que evoluímos não através de inteligência, ciência, produção, mas através de crueldade e exploração, e que de alguma forma não fazemos parte da natureza. Gostaria que houvesse um pouco mais de nuance nessa caracterização dos humanos no filme, pois desta forma, Avatar apenas empodera a ala niilista do movimento ambientalista do mundo real, que é muito influente (e perigosa) hoje politicamente.

Esse encanto de Avatar pelo primitivo, pelo não-civilizado, me impede de me envolver com alguns elementos da história. No primeiro filme, os humanos queriam destruir o lar dos Na'vi pra extrair minerais do solo, então pra mim era perfeitamente legítimo eles se rebelarem contra os humanos. Já agora, vemos os Na'vi explodindo trens, atacando tudo que é dos homens, mas não fica claro que os humanos estavam sendo violentos com os nativos em primeiro lugar ou invadindo a propriedade deles. Fica parecendo apenas um vandalismo gratuito, e o filme espera que a gente ache tudo justo, pois os humanos são inerentemente maus.

Por conta dessa rebelião (liderada por Jake), os humanos clonam Quaritch, o coronel linha dura da parte 1, e o trazem de volta com um pequeno exército pra dar um jeito nos "hostis". E uma das grandes fraquezas do roteiro de O Caminho da Água, é que temos um filme de mais de 3 horas baseado numa rivalidade entre Jake e Quaritch que simplesmente não tem carga dramática o bastante. Vejo Quaritch muito mais como um soldado, alguém que segue ordens, do que como um vilão motivado por valores odiosos, alguém que tem um antagonismo pessoal com Jake realmente convincente. Sem falar que este nem é mais o Quaritch original. Apenas um clone, que provavelmente pode ser clonado infinitas vezes caso esta unidade seja eliminada. Então o filme não funciona direito como trama de vingança. O real conflito de Jake é com os humanos. Se ele matar Quaritch, isso não resolverá nem dramas pessoais, nem questões práticas de sobrevivência. Passamos o filme todo aguardando esse grande combate no fim, mas sabemos que isso não será realmente significativo no contexto geral da saga.

Ato 2:

A parte do filme que mais gostei foi quando os Sully se mudam para o arquipélago e somos apresentados ao mundo das águas. Um detalhe que me parece um furo de roteiro nesse ponto é o fato de Jake colocar em risco o Povo do Recife indo se esconder no meio deles, sendo que uma das justificativas pra ele ter ido embora da floresta era justamente o perigo que sua presença representaria para os Omaticaya — uma atitude que não faz Jake parecer especialmente brilhante ou responsável. Mas é um momento agradável do filme onde o CGI brilha, os personagens podem se divertir um pouco, e Cameron exibe suas criações novas pro universo de Pandora (assim como no original, o "planeta" às vezes me gera mais encanto que seus próprios habitantes).

Mas aí nós vamos pro 2º ato do filme que é extremamente caótico narrativamente. O conflito com Quaritch (que já não é tão forte) é deixado um pouco de lado, e o filme passa a focar nos dramas familiares, nos conflitos dos Sully com o Povo do Recife, e se perde em uma série de subtramas que parecem totalmente dispensáveis.

A falta de protagonista ajuda esse miolo do filme a ficar sem forma, pois a história fica saltando de um personagem pro outro, de um drama pro outro, sem nenhum senso de hierarquia.

Um dos dramas explorados é o bullying sofrido pelos filhos de Jake e Neytiri no novo lar, mas o desenvolvimento disso é tão clichê quanto o de qualquer seriado de high-school. O forte de Cameron nunca foi diálogos, sutilezas de caracterização, e Pandora deve ser um universo confortável pra ele enquanto roteirista, pois agora ele só precisa lidar com povos "simples", que falam frases genéricas, vivem conflitos sempre muito básicos e universais (aquela caricatura que Hollywood sempre fez de estrangeiros).

Outro drama é o da filha Kiri (Sigourney Weaver) que parece meio "brisada" o filme todo. Ela sofre por se sentir diferente de todos por ter uma conexão especial com a natureza — mas é um conflito que pra mim não faz o menor sentido, considerando que todos os habitantes de Pandora têm uma conexão mística com a natureza.

Sabendo que as plateias são segregadas hoje politicamente, muitos blockbusters adotam a tática de andar numa corda bamba, e dar "biscoitos" pros dois lados pra ter um público mais amplo (o que costuma resultar em dois públicos levemente insatisfeitos). Então pra contrabalancear o ambientalismo e os temas mais de esquerda da história, temos aqui uma ênfase em valores familiares, no retrato de uma família nuclear tradicional que deverá apaziguar o público mais conservador. Mas pelo visto, uma família nuclear saudável pro filme é uma onde o pai está sempre dando uma dura nos filhos, impondo sua autoridade, sendo rígido, mesmo quando suas atitudes são totalmente injustas.

Jake já não era um herói muito carismático no primeiro filme, mas aqui ele está ainda menos gostável, principalmente pelas atitudes questionáveis em relação aos filhos, por ser submisso demais ao Povo do Recife, e por estar sempre preferindo se esconder e fugir das batalhas em vez de resolver o problema.

Neytiri eu sempre achei uma personagem meio irritante. Enquanto Jake ainda tem um pouco do humano que ele já foi, ela é alguém que devemos admirar por ser puro instinto, pura "raça", não ter sido tocada pelas impurezas dos homens. Ao contrário de heroínas antigas de Cameron como Ripley, que se guiavam pela razão, Neytiri encarna uma romantização do homem primitivo: ela ruge, vira bicho quando ameaçada, sabe que medicina ancestral é melhor que ciência moderna, não confia em quem não seja de sua tribo, e tem uma aversão (meio suspeita moralmente) até ao Spider por conta de sua raça, apesar dele ser alguém que cresceu no meio de seus filhos.

Spider, aliás, é outro personagem problemático. Primeiro porque ele está sempre semi-nu na tela, o que se torna uma distração (e o fato de ser um ator tão jovem cria um incômodo no estilo "Lagoa Azul" onde você não tem certeza do quão apropriado é sexualizar um corpo desta idade). Mas fora isso, incomoda a falta de posicionamento do personagem. Ele está sempre tendo atitudes que parecem traiçoeiras em relação aos Sully, mas no minuto seguinte muda de atitude e está de novo do lado certo. A gente nunca sabe se deveria ou não estar gostando dele. A câmera tenta explorar o máximo do carisma do ator, mas faz isso em momentos onde ele está sendo duvidoso moralmente, o que cria dissonância sempre que ele está em cena. Não fica claro qual o seu arco dramático; se a ideia do filme é a de um jovem sendo seduzido pelo "lado negro da foça", ou se ele está apenas sendo esperto e fingindo ser amigo dos humanos pra ganhar tempo.

Pra mim o ponto baixo do filme é quando a história começa a explorar a amizade de Lo'ak com a baleia (Tulkun). Parece o tipo de coisa que você vê nas Cenas Deletadas do DVD e entende por que não entrou no corte final. Não só a baleia fala, divide com Lo'ak seus traumas do passado, como os dois se conectam por serem ambos "outcasts" (Cameron parece ter percebido que o público atual se conecta mais com Heróis Envergonhados do que com personagens excepcionais, pois faz vários acenos aqui aos "excluídos", aos "diferentes", algo que não era comum em sua filmografia).

O filme salta de cenas desnecessárias como essas pra desenvolver outros conflitos pouco importantes (Kiri tendo ataque epilético, etc.), depois tenta de novo nos deixar deslumbrados com a paisagem de Pandora (a essa altura essas cenas já não têm o mesmo efeito), daí volta pra falar dos traumas da baleia, criando um ritmo truncado que dá a impressão do filme não estar caminhando pra lugar algum.

Ato 3:

Depois de muitos rodeios, finalmente Quaritch sai à procura de Jake no arquipélago, e os encontra com uma facilidade surpreendente (a primeira ilha que eles param já é a do povo que está abrigando os Sully; e logo eles colocam um localizador numa baleia que por sorte é a amiga do Lo'ak).

O terceiro ato é pura ação, mas apesar de tudo ser muito intenso e grandioso, não há nenhum Set Piece realmente memorável, o que costumava ser um dos grandes talentos de Cameron. Boas sequências de ação geralmente têm um conceito simples, envolvem poucos elementos físicos, algo visualmente marcante... Mas aqui, em geral temos perseguições complexas envolvendo dezenas de pessoas, com veículos de diversos tipos se chocando, e água espirrando por todos os lados.

Um desvio de trama que acho bem desnecessário nesse início do terceiro ato é toda a caça às baleias no trajeto dos vilões até o arquipélago, que parece ocorrer só porque os donos do barco no qual Quaritch pega carona precisam "bater a meta" e pescar algumas baleias pra justificar a viagem. É uma forma de reforçar a ideia dos homens como criaturas cruéis, mas que não é bem integrada à trama como um todo.

A luta final entre Quaritch e os Sully no barco naufragando parece o sonho que alguém teria ao ir dormir logo após maratonar todos os filmes de Cameron. As ideias parecem recicladas de vários de seus filmes, mas não estão à altura daquilo que já vimos no passado. Temos Neytiri indo resgatar sua filha pequena, que é sugada pra dentro de uma mega-estrutura prestes a colapsar... Mas ele já fez isso muito melhor no final de Aliens, e não tem como competir com aquela sequência. Temos um naufrágio com compartimentos sendo inundados e personagens tentando achar uma saída... Mas nenhum naufrágio vai chegar aos pés do de Titanic. Temos cenas envolvendo afogamento, falta de ar, mas nada será mais angustiante que a cena do submarino de O Segredo do Abismo. Então Cameron não pode ir a fundo em nenhuma dessas ideias. Ele só cria uma edição paralela mostrando um pouco de cada situação, mas não vem com um conceito realmente único para o clímax deste filme.

No fim, Quaritch continua vivo (não acho 100% convincente a atitude de Spider de salvá-lo, até por Spider ser um personagem mal definido), e Jake resolve fugir mais uma fez. Se você for pensar, a espinha da trama não é das mais interessantes, e pode ser resumida assim: os Sully estão vivendo em paz, até que Quaritch volta pra matar Jake; eles tentam se esconder; são encontrados; mas após uma luta, conseguem fugir e se esconder de novo. Os personagens agem apenas por uma motivação negativa — evitar o vilão — mas não buscam nada interessante que irá melhorar suas vidas.

Considerações finais:

A impressão que tenho é que Cameron passou esses anos todos pensando muito mais num novo universo pra mostrar (e em mensagens ambientais pra passar) do que em uma nova história pra contar. Acumulou centenas de ideias a respeito de como tudo funcionaria nesse novo mundo de Pandora (os animais que permitem respirar debaixo d'água, os diversos barcos, os submarinos em forma de siri, o ciclo diário de eclipses, o detalhe da visão das baleias que é amarelada fora da água, talvez pelo "white balance" delas estar ajustado para o fundo do mar — se bem que debaixo d'água elas continuam vendo tudo azul), e tentou inserir todos esses elementos num intervalo de 3 horas, em vez de construir uma linha narrativa forte e coesa primeiro, pra depois ornamentá-la com as ideias de criação de universo que coubessem. O filme foca em conflitos que parecem pequenos demais perto da escala grandiosa da franquia; como se fosse um episódio de novela que apenas desenvolve dramas pequenos em núcleos secundários, mas não faz muito pela trama central.

Apesar da excelência do CGI, não é um filme que acho tecnicamente brilhante do ponto de vista cinematográfico. A técnica que admiro no cinema não tem a ver com qualidade gráfica, mas com a técnica a que Hitchcock se refere quando diz que o que importa num filme não é o que acontece, mas como acontece. Avatar é um filme pra espectadores que se interessam mais pelo "o que" do que pelo "como". Cameron como realizador aqui busca apenas abrir uma janela na parede do cinema e te inserir naquele mundo, mostrar o que está acontecendo de maneira eficiente e grandiosa, mas ele exercita muito pouco seus poderes como contador de história. Em nenhum momento de O Caminho da Água eu me peguei pensando "que enquadramento inteligente", "que uso de música / luz ousado", "que movimento de câmera impactante", "que transição de cena criativa". Pra um filme realmente me estimular, ele precisa funcionar tanto no nível do conteúdo quanto no nível do estilo; as intervenções criativas do cineasta precisam me fascinar tanto quanto a jornada dos personagens. Mas em Avatar, meu lado que aprecia a técnica e a linguagem do cinema não é tão recompensado quanto em outras obras de Cameron.

Ainda assim, O Caminho das Águas tem seus méritos. É uma aventura com um tom mais romântico e Idealista que a maioria das franquias atuais; apesar dos problemas, ela resgata um pouco do espírito do cinema dos anos 80/90, e Cameron mesmo quando não está nos seus melhores dias ainda é muito mais magnético que a maioria dos diretores, pois seus filmes têm sempre bastante imediatismo e presença — num filme de Cameron, mesmo quando o conteúdo não é dos mais ricos, cada segundo na tela conta e parece trabalhado, pensado pra capturar sua atenção naquele instante, eleva as barreiras técnicas, te mostra algo diferente e intenso; algo bem diferente do blockbuster rotineiro de Hollywood, que te proporciona uma experiência de névoa mental, onde tudo é vago, distante e descartável na tela.

Avatar: The Way of Water / 2022 / James Cameron

Satisfação: 6

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Duna (2021) / Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma (1999) / Alita: Anjo de Combate (2019) / As Aventuras de Pi (2012) / O Segredo do Abismo (1989)


sábado, 17 de dezembro de 2022

Diário - Dezembro 2022

17/12 - Já assisti Avatar: O Caminho da Água mas não postei nada ainda pois estou pensando se assisto uma 2ª vez antes de comentar... Além disso, percebi que vou ter que mudar um pouco o método de gravar vídeos, pois tenho achado difícil fazer comentários mais elaborados sem ter um roteiro ou um outline no mínimo pra seguir. Estava achando que eu conseguiria simplesmente apertar REC e falar espontaneamente, mas já vi que não vai funcionar, a não ser que os vídeos sejam sempre muito curtos e superficiais.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

RRR: Revolta, Rebelião, Revolução

Já tinha tentado ver o filme uns meses atrás, mas minha paciência só durou 1 hora (faltavam mais 2 pro filme acabar). Como a produção vem ganhando algum destaque agora na temporada de prêmios, resolvi tentar ver até o final. Consegui, em mais duas etapas, mas ainda com muita preguiça e achando tudo com clima de novela da Record. O filme consegue fazer pela masculinidade o mesmo que 365 Dias faz pela feminilidade — nos mostra uma faceta tão primitiva e infantilizada do gênero que você começa a se perguntar se tem alguma aversão subconsciente a homens/mulheres enquanto tais, não apenas à visão do filme. Certamente as cenas de ação são incrivelmente trabalhosas, espetaculares visualmente (o que não é sinônimo de boa fotografia/bons efeitos especiais — mas merecem um destaque). Mas depois de 5 cenas onde um indiano voa pelos ares, dá um mortal triplo, monta num tigre, metralha um exército de ingleses, e cai no chão sem errar ou levar 1 tiro, as outras 50 cenas do tipo que seguem acabam perdendo um pouco do impacto. O mindset de delírio de grandeza misturado com desprezo pela realidade que o filme celebra faz a saga Velozes e Furiosos parecer comedida em comparação. Sem falar nos sentimentos de nacionalismo, de "revolução dos oprimidos", nos ideais de auto-sacrifício / altruísmo / coletivismo imbuídos na trama (surpreendentemente cristãos pra uma cultura que tem outras origens), que tornam tudo dramático e impedem uma leitura mais benevolente e despretensiosa do filme (algo na linha Sharknado) de que tudo não passaria de uma grande piada.

RRR (Rise Roar Revolt) / 2022 / S.S. Rajamouli

Satisfação: 3

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Velozes & Furiosos 9 (2021) / John Wick 3: Parabellum (2019) / Transformers: A Era da Extinção (2014)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Ruído Branco

Noah Baumbach sempre me passou uma visão lúgubre da vida, mas seus dramas focados em conflitos pessoais e relacionamentos costumam ter bastante riqueza psicológica, o que torna as obras proveitosas em algum nível. Aqui, ele tenta algo diferente; um filme interpretativo, alegórico, onde o foco são as críticas à sociedade, as ideias filosóficas, e não os personagens. Assim, ele eliminou o elemento humano que era o que salvava seus filmes do completo vazio espiritual.

O filme mostra uma família americana de classe média nos anos 80, e tem uma série de elementos que remetem a produções do Spielberg, sucessos de bilheteria da época, mas diferentemente de filmes que fazem isso por um senso de nostalgia, o filme recria esse ambiente apenas como um alvo pra suas críticas. Assim como muitos filmes usam os anos 50 como um cenário ideal pra fazer uma crítica ao "american way of life", os anos 80 são outro período que cineastas adoram pegar pra fazer um ataque aos EUA, justamente por ser um período no qual o otimismo americano estava em pleno vigor.

O filme começa fazendo uma análise esperta, porém cínica, da violência nos filmes americanos — sugerindo que acidentes de carro no cinema são na verdade otimistas, pois foram transformados numa espécie de espetáculo acrobático por Hollywood, um feito admirável do ponto de vista técnico, que inspira o público mais do que choca. É uma análise que eu poderia concordar totalmente, exceto que o tom cínico indica que na verdade o filme pensa o oposto disso. Ele traz diversas outras críticas à "cultura do espetáculo", chegando a traçar um paralelo entre Elvis Presley e Adolf Hitler pelo fanatismo que ambos conseguiam inspirar no público. Tudo o que simboliza a cultura ocidental é condenado pelo filme — entretenimento, o "consumismo", supermercados, alimentos industrializados, petróleo, pessoas que fazem dieta, pessoas que comem carne, remédios psiquiátricos, televisão, e até mesmo a igreja, que o filme parece colocar na mesma categoria de supermercados — no fim, tudo não passa de uma forma de "escapismo", da tentativa fútil do ser humano de evitar a morte, de buscar falsas esperanças num universo essencialmente maligno e sem sentido.

Infelizmente, o filme se resume a criticar, a expressar seu desprezo pelo mundo, pelo ser humano, pela busca da felicidade, mas não dá nenhum argumento pra explicar por que ele acha essas coisas condenáveis, e qual seria a alternativa, uma forma melhor de viver. Por eliminação, podemos sempre concluir que é o socialismo, mas o filme prefere ser sutil nesse ponto. Até temos as TVs de fundo com mensagens políticas indiretas, as menções irônicas a Ronald Reagan, mas mesmo nesses detalhes o filme é mais discreto que o normal, como se ele estivesse se dirigindo a um público tão "entendido", que é como um casal que está junto há décadas e já consegue se comunicar por códigos — basta um leve aceno com os olhos pro outro entender exatamente o que ele quer dizer. (Lembro quando pequeno que saquei algo sobre os adultos: sempre que eles estavam rindo, usando termos misteriosos, e eu não entendia a piada, era porque se tratava de sexo. Algo parecido ocorre na arte: quando um filme é meio sem pé nem cabeça, parece esconder uma série de mensagens obscuras nas entrelinhas, o assunto normalmente é socialismo.)

Em vez de uma crítica inteligente, desafiadora para os tempos atuais, o filme acaba parecendo intelectualmente datado (a cena dos créditos finais consegue ser mais vergonha-alheia que o filme brasileiro 1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras) falando de pautas que talvez fossem quentes quando o livro White Noise foi publicado em 1985, mas que hoje é como falar em buraco na camada de ozônio, "bug do milênio" — discussões que não devem empolgar nem aqueles que concordam com a visão de mundo básica do autor.

White Noise / 2022 / Noah Baumbach

Satisfação: 2

Categoria: AI

Filmes Parecidos: Armageddon Time (2022) / Pequena Grande Vida (2017) / Não Olhe para Cima (2021)


domingo, 11 de dezembro de 2022

Ela Disse



She Said / 2022 / Maria Schrader

Satisfação: 7

Categoria: I

Filmes Parecidos: Spotlight: Segredos Revelados (2015) / The Post: A Guerra Secreta (2017) / O Escândalo (2019) / Todos os Homens do Presidente (1976)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Aftersun

Filme estilo "fatias da vida" que parece mais uma série de vídeos caseiros e registros pessoais do que um enredo cinematográfico. O filme começa mostrando pai e filha se divertindo numa viagem sozinhos, mas isso é basicamente tudo o que acontece. Do começo ao fim, ficamos vendo momentos aleatórios desta viagem, conversas e situações casuais, mas nunca surge algum conflito ou evento extraordinário — como se a cineasta fosse tão alienada e removida da existência que os momentos singelos da vida de pessoas normais já fossem o bastante pra fasciná-la — a filha que dorme de tênis, e o pai tem que tirá-lo pra não sujar a cama, etc. Não há nem uma estrutura narrativa básica, como a de um filme como C'Mon C'Mon, que também mostra momentos do dia a dia, mas pelo menos dá ao espectador um contexto geral para essas cenas: explica por que os personagens estão juntos, qual a relação da família, quando todos voltarão pra casa (e o filme acabará), etc.

O conceito de Aftersun é que a filha, depois de adulta, está assistindo a esses vídeos da viagem e refletindo sobre sua relação com o pai — o lado obscuro dele que ela não tinha acesso quando pequena. Mas esse contexto é sugerido apenas por um flash-forward muito breve em que a garota Sophie aparece adulta. O filme não é de fato sobre uma mulher tentando curar feridas de sua infância. Se fosse isso, pelo menos haveria algum conflito interno, um personagem com um propósito. Também não é sobre os dramas do pai, que também são apenas sugeridos nas entrelinhas. Em 99% do tempo, o que o filme mostra é apenas cenas banais da viagem. Então é daqueles filmes que espera que todo seu valor venha do não-dito, do não-mostrado, de tudo aquilo que a cineasta deixou de fora do filme. Percebemos que há vários dramas mais intensos ocorrendo nas beiradas da história, mas em vez de abordá-los, de desenvolvê-los, o filme acha mais "sofisticado" focar na banalidade, e apenas indicar sutilmente que existe algo além daquilo. E claro que esse "algo" se resume a sofrimento, dor, desesperança. Naturalismo e "senso de vida malevolente" andam sempre de mãos dadas, e se um filme Naturalista está te mostrando pessoas em momentos agradáveis, você pode ter certeza que existe algo deprimente por trás, pois é apenas o pessimismo que justifica tais filmes — enquanto o cineasta não confirmou para o público que a vida é difícil, dolorosa, é como se ele ainda não tivesse feito um filme de verdade. Sofrimento é o que parece metafisicamente importante, real, profundo pra esse tipo de cineasta. A aparente leveza de Aftersun é apenas um Contraste. Enquanto em um filme Idealista, o sofrimeno é usado como Contraste pra acentuar valores positivos, aqui é o contrário. A proposta do filme é mostrar que, por trás de uma viagem agradável e ensolarada da infância, havia coisas tenebrosas ocorrendo no mundo dos adultos que arruinariam toda a experiência caso a criança soubesse da verdade (e se "sol" é sinônimo de vida e de alegria, talvez seja por isso que o filme se chame Aftersun). Se for possível dizer que existe um arco narrativo em Aftersun, seria apenas essa tática do filme ir expondo aos poucos para o público o fato de que, por trás das memórias positivas apresentadas, existia algo deprimente que eventualmente arruinou a vida emocional da menina.

Mas o problema do filme não é nem o pano de fundo melancólico, e sim esse fato dele não encarar e desenvolver seu verdadeiro tema; deixar tudo nas entrelinhas e nas linhas de fato apresentar apenas trivialidades. É uma tática meio fraudulenta, que livra o autor da responsabilidade de ter que escrever bons diálogos, criar cenas memoráveis, emocionar o público, e mostrar se de fato tem algo a dizer.

Aftersun / 2022 / Charlotte Wells

Satisfação: 4

Categoria: NI

Filmes Parecidos: A Filha Perdida (2021) / C'Mon C'Mon (2021) / Sem Rastros (2018)


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

O Menu

O começo é interessante; lembra um Jurassic Park só que da gastronomia. Em vez dos convidados irem pra uma ilha misteriosa e se depararem com as maravilhas da engenharia genética, eles se deparam com pratos que parecem igualmente avançados tecnologicamente — até que as coisas desandam e os humanos se tornam comida pra suas próprias criações (pagando o preço pela soberba e pela busca por controle, perfeição — coisas que nunca saem impunes na nossa cultura). O problema é que a situação aqui não é nada crível. É absurda a ideia de um chef renomado como Slowik (Ralph Fiennes) se revelar um Jigsaw da cozinha de uma hora pra outra... E a passividade dos convidados diante de tudo também torna a situação artificial. O filme obviamente não quer que você acredite no que está acontecendo (e os toques constantes de humor reforçam isso). Ele funcionaria melhor como uma alegoria — um filme desses onde você sabe que não deve levar os eventos ao pé da letra, apenas procurar as ideias filosóficas e mensagens políticas embutidas na narrativa (tipo O Poço, Triângulo da Tristeza). Só que aqui não há clareza alguma quanto às tais ideias, o que deixa o filme sem propósito. Ele não é nem um suspense de verdade, nem uma comédia de verdade, nem uma alegoria satisfatória intelectualmente.

The Menu / 2022 / Mark Mylod

Satisfação: 5

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Tempo (2021) / Corra! (2017) / Velvet Buzzsaw (2019) / O Convite (2015) / A Ilha da Fantasia (2020)


terça-feira, 29 de novembro de 2022

Diário - Novembro 2022

28/11 - Wandinha:

Vi os dois primeiros episódios da série nova da Netflix baseada na Família Addams (com direção/produção executiva de Tim Burton) e fiquei positivamente surpreso, não só com a qualidade da produção, mas também com a escrita. Em vez daquele conteúdo ralo, diluído, da execução genérica que costuma caracterizar produções para o streaming, temos aqui algo com um padrão mais elevado de qualidade, onde vemos capricho cena após cena, seja nos diálogos afiados, na direção de arte, na performance brilhante do Mãozinha, etc. Wandinha como personagem é um pouco unidimensional, mas Jenna Ortega está divertida e se encaixa no papel com perfeição.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Pinóquio

Bem superior artisticamente ao live-action da Disney que saiu também este ano — o enredo é mais rico em detalhes, mais bem costurado, as relações entre os personagens têm mais credibilidade e profundidade emocional... Mas claro que, se tratando de Guillermo del Toro (um cineasta incapaz de expressar valores positivos), isso tudo vem com um preço: temos aqui uma versão bem mais sombria do conto, onde Pinóquio está o tempo todo morrendo (há um fascínio pela morte que del Toro parece ter trazido do México em sua bagagem), enfrenta o fascismo, é engolido por uma "baleia" que, ao contrário das da Disney (que têm vísceras limpinhas), é bem asquerosa por dentro... Sem falar nos temas de fragilidade, imperfeição humana, da "efemeridade da vida" que dão o tom geral da produção.

Pinocchio / 2022 / Guillermo del Toro, Mark Gustafson

Satisfação: 5

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: Coraline e o Mundo Secreto (2009) / Kubo e as Cordas Mágicas (2016) / Festa no Céu (2014) / Frankenweenie (2012) / O Pequeno Príncipe (2015)

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Triângulo da Tristeza

Checando o Trivia do IMDb, me deparei com a seguinte curiosidade sobre o filme:

"Apesar do filme ser uma sátira de pessoas privilegiadas, o diretor/roteirista Ruben Östlund não queria que ele fosse maniqueísta. Ele não acredita na monstruosidade das pessoas ricas; pelo contrário, ele acha que elas normalmente têm bastante inteligência social, do contrário não teriam chegado tão longe."

Isso é quase como alguém fazer A Lista de Schindler e depois dizer "na verdade nós não quisemos falar mal dos nazistas". Mas talvez Östlund tenha sido honesto... Pois se você prestar atenção, não são apenas os super-ricos que são ridicularizados e demonizados no filme. O casal de influenciadores, por exemplo, ganhou de graça a passagem para o navio, e não está necessariamente nadando em dinheiro. Ainda assim, são ridicularizados, pois são bonitos, jovens, dentro do "padrão". A faxineira que inicialmente era boa, no fim se torna má, afinal no contexto da ilha deserta, ela se torna uma mulher importante, poderosa, por ser a única pessoa capaz de pescar, de fazer fogo. Ela não passa a ter dinheiro, mas passa a ter habilidades importantes para a sociedade, conquista certo respeito e status. Ou seja, talvez Östlund não odeie os ricos exatamente... O ódio dele é mais amplo. O que ele odeia é a capacidade humana em geral. Qualquer pessoa que tenha algum tipo de habilidade, virtude, que seja capaz de sobreviver, que tenha conquistado algo de valor, não seja alguém completamente impotente e desprezível. Odiar os ricos pra ele é muito clichê, ultrapassado. Isso era o que te dava a Palma de Ouro em Cannes até uns 2, 3 anos atrás. Agora, é necessário um nível mais profundo de niilismo e decadência espiritual pra receber tal honra.

Triangle of Sadness / 2022 / Ruben Östlund

Satisfação: 0

Categoria: AI

Filmes Parecidos: Força Maior (2014) / Parasita (2019)

Efeito Vertigo 3D

Uma ideia que tive há mais de 15 anos e ainda não vi realizada em nenhum filme (se eu estiver errado, me corrijam), é a de uma espécie de Efeito Vertigo (o famoso Dolly Zoom que Hitchcock usou em Um Corpo que Cai) só que utilizando recursos ópticos do cinema 3D.

Uma das coisas que nos encantam no cinema é que ele nos permite ir além de nossas limitações fisiológicas e olhar para o mundo de uma maneira impossível, nova. Nossos olhos têm uma série de características que são imutáveis — nascemos com uma lente "fixa", não podemos trocar de uma 35mm pra uma teleobjetiva, dar zoom em algo, ver em preto e branco, por exemplo, nem mesmo fazer mudanças de foco suaves, "borrar" fundos como faz uma lente de cinema, etc. 

O Efeito Vertigo de Hitchcock usa apenas 1 recurso que é de fato impossível para a visão humana: o zoom (o olho humano não pode dar zoom pois nós nascemos com uma "lente fixa" que impede variações na distância focal). O outro elemento do Efeito Vertigo é apenas o ato de se aproximar ou se afastar de um objeto, algo que todos podemos fazer. Mas ao sincronizar os 2 movimentos, Hitchcock criou um efeito visual ainda mais estranho do que o simples zoom.

Uma outra característica que é fixa nos seres humanos, mas não em câmeras de cinema, é a distância entre o olho direito e o olho esquerdo, que é responsável pela nossa interpretação do tamanho e da distância de um objeto em relação a nós.

Da mesma forma que uma lente zoom pode criar um efeito "alienígena" mudando a distância focal e fazendo uma imagem ampliar ou diminuir na tela, alterar a distância entre o olho direito e o olho esquerdo poderia criar um efeito visual igualmente estranho em filmes 3D.

Pra ilustrar melhor a ideia, imagine uma esfera ocupando 80% do seu campo de visão. Mas imagine 2 cenários diferentes: um caso onde tal esfera é uma bola de basquete a 10 cm do seu rosto, e um caso onde a esfera é o planeta Terra, a milhares de quilômetros do seu rosto (imagine você em uma estação espacial). O tamanho relativo que as duas esferas ocupariam seria idêntico nos dois casos. Porém, no primeiro cenário, a impressão que você teria seria a de um objeto pequeno próximo a você, e no segundo cenário, a de um objeto gigantesco muito longe. Isso ocorre por causa da triangulação que nosso cérebro faz, comparando a imagem do olho esquerdo com a do olho direito, e calculando a distância e o tamanho aproximado do objeto.

Filmes 3D são gravados com 2 câmeras, cada uma gerando uma imagem para um olho. Porém a distância entre câmera A e câmera B normalmente é fixa, e busca simular a distância natural entre os olhos humanos. Se você afastasse demais as 2 câmeras, e filmasse um automóvel, por exemplo, você teria a impressão de que se trata de uma miniatura de um carro, em vez de um carro em tamanho normal.

Então imagine o que ocorreria se você fizesse um afastamento gradativo da câmera A e da câmera B, mantendo o foco e o enquadramento num mesmo objeto. Você veria subitamente um objeto grande se "transformando" em uma miniatura, ou uma miniatura se transformando num objeto grande, porém com seu tamanho relativo na tela permanecendo igual.

Se filmássemos, por exemplo, o planeta Terra do espaço com uma câmera 3D que tivesse essa capacidade de afastar as duas lentes, e fizéssemos as câmeras começarem a gravar o take próximas uma da outra (simulando a visão humana), mas irem se afastando até ficarem centenas de quilômetros distantes (o que seria mais simples de se fazer em animação 3D), o resultado seria que o espectador veria, ao longo de um único take, algo gigante como o planeta Terra, mudar de aspecto até parecer um miniplaneta do tamanho de uma bola de basquete.

Pelo que vi em imagens de bastidores do novo Avatar, o James Cameron desenvolveu câmeras 3D com maior capacidade de controle sobre essa distância entre olho direito / olho esquerdo, por isso tive o impulso de registrar minha "invenção" aqui — pois se alguém como o Cameron colocar essa ideia em prática primeiro, ninguém vai acreditar que eu tive ela anos antes, hehe.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Desencantada

Encantada pra mim foi um dos melhores filmes originais da Disney dos anos 2000, então acho que ele merecia uma sequência mais sofisticada, lançada nos cinemas, em vez desta produção com cara de lançamento direto pra VHS. E o que dá essa impressão não é apenas a cenografia, os efeitos especiais mais simples, as canções mais genéricas, mas principalmente a trama pouco grandiosa, que foca em problemas pequenos que Giselle enfrenta ao mudar para uma cidadezinha chamada Monroeville com sua família. É tipo quando criam uma série de TV animada baseada num blockbuster, mas daí em vez de tramas envolvendo acontecimentos épicos, conflitos profundos, você vê historinhas mais cotidianas, tipo "o primeiro dia de escola do filho do herói".

O roteiro tem umas escolhas esquisitas que tornam a história menos memorável também. Começa sugerindo que o "felizes para sempre" da parte 1 não durou muito, e após uns anos, Giselle passou a ter uma vida frustrante, sem magia, como a da maioria das mães modernas. Porém, quando Amy Adams surge na tela pela primeira vez, ela parece quase tão encantada e vendo tudo em cor-de-rosa quanto antes. Não há contraste o suficiente pra justificar o "Desencantada" do título, e a necessidade de ir embora de Nova York. Mais pra frente, quando Giselle se vê frustrada também em Monroeville, ela usa uma magia pra transformar a cidade num lugar mágico como Andalasia — só que a mudança também não é tão radical a ponto de criar um conceito memorável... Pois antes mesmo da transformação, Monroeville já parecia um lugar cenográfico, utópico. Narrativamente, costuma ser muito mais interessante você ir de um extremo para o outro nesse tipo de situação, em vez de apresentar variações ambíguas de um ambiente ou personagem.

SPOILERS: Depois disso, a história basicamente se resume a Giselle tentando desfazer o feitiço, e se torna um desses enredos onde não esperamos nada realmente emocionante ou positivo no final, apenas a eliminação de um erro (e a "cura emocional" — o momento clichê onde alguém abraça alguém, derrama uma lágrima, e feixes mágicos resolvem tudo). A ideia basicamente é que o poder corrompe, e que a busca pela perfeição é perigosa (Giselle começa a ser seduzida pelo "lado negro da força" e a se tornar uma madrasta má — o que faz com que a sequência explore menos a personalidade ingênua de Giselle, que é onde Amy Adams brilha mais). Em vez de divertir, o filme vem com uma daquelas mensagens "responsáveis" sobre aceitar as adversidades da vida, ser comedido, não exagerar muito na busca pela felicidade. É uma história "super excitante" sobre uma família que vai de um padrão de vida nota 7 pra um padrão de vida nota 8.5. A vida em Nova York não parecia particularmente terrível, nem mesmo a vida em Monroeville antes da transformação. Nada do que ocorre parece necessário. E o conflito entre Giselle e a filha/enteada é tão vago que no fim nem entendemos direito qual foi a grande "cura", o que mudou fundamentalmente entre as duas que tornará tudo melhor agora.

Disenchanted / 2022 / Adam Shankman

Satisfação: 5

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Abracadabra 2 (2022) / Espelho, Espelho Meu (2012) / Frozen II (2019) / Cinderela (2021)

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Riquezas sem Lastro

Uma série de tendências que observo na cultura atual têm algo em comum: elas rejeitam o conceito de "lastro" — a noção de que é necessário haver valor, benefícios reais para a vida humana, para que algo possa ser considerado uma riqueza de fato.
Já falei muito do efeito disso no cinema — de como os estúdios aprenderam a se sustentar com filmes que não oferecem real valor para o espectador. Usam personagens/marcas/obras que tinham valor no passado pra validar novas produções (adaptações, sequências, reboots, etc.), mas essas não têm o mesmo talento, nem o mesmo poder de inspirar o público. Têm apenas embalagens atraentes, são desenhadas pra convencer o espectador a pagar pelo ingresso, não para satisfazê-lo, não para impactar sua vida positivamente ou gerar valor espiritual.

Dando um exemplo de outra área, outro fenômeno atual que também ilustra essa rejeição à ideia de lastro é a febre das criptomoedas. Independentemente do que você acha sobre o potencial das criptomoedas de se tornarem o dinheiro oficial do futuro, é difícil negar que muita gente envolvida nesse negócio hoje se interessa por criptomoedas pois elas parecem uma maneira de ficar rico sem ter que criar algo de valor primeiro. Alguns fãs de criptomoedas parecem animados com a ideia de que as economias das pessoas no futuro não terão mais uma âncora em valores objetivos; poderão expandir ou encolher radicalmente, o tempo todo, com base em flutuações aleatórias do mercado.

O mundo do marketing digital e dos influenciadores digitais é outro campo repleto de pessoas atraídas pela ideia de riqueza sem lastro. As redes sociais deram o poder às pessoas comuns de usarem suas personalidades como forma de ganhar dinheiro e de ficarem conhecidas (algo que no passado era reservado para personalidades de TV, artistas, etc.). Isso criou uma cultura onde muitos acreditam que ter seguidores e ter alcance é a chave para o sucesso. E no mundo das redes sociais, para atrair seguidores ("clientes"), sua imagem e seu carisma contam mais do que aquilo que você faz (a qualidade de seus produtos e serviços). Antigamente, acreditava-se que primeiro você tinha que se tornar bom em algo, criar algo de valor, pra que daí você fosse notado e fizesse sucesso. Na era das redes sociais, você primeiro tem que fazer sucesso, e só depois as pessoas olharão pro que você faz (o sucesso inicial surge com base em personalidade, identificação pessoal, carisma). Até mesmo pra que publiquem um livro seu, hoje as editoras dão preferência pra autores que tenham já um público online. Mas como o autor ganhou público em primeiro lugar, se ele não teve nada publicado? Bem... Podemos imaginar o caso de um escritor que tenha começado publicando textos menores na internet, e foi ganhando público aos poucos com base no mérito desses textos. Mas a verdade é que se alguém apenas publicar textos, não for uma personalidade interessante mostrando o rosto em Reels, Stories, criando identificação pessoal através de estilo de vida, identidade social, essa pessoa demorará muito mais pra se tornar relevante.

Nos anos 80, quando surgiu a MTV, muitos astros do rádio se rebelaram, pois agora, não bastava mais você ser um bom músico, você tinha também que ser fotogênico, performático, ter um estilo atraente, se não, não faria tanto sucesso no novo cenário musical. Não dou tanto mérito pras queixas desses músicos, pois no ramo do entretenimento e em artes como a música, acho que imagem e personalidade são coisas importantes. Claro, seria bom se houvesse mais espaço para músicos habilidosos, porém não-performáticos. Mas os músicos que juntam as duas coisas, na minha visão, oferecem um produto diferenciado. Com as redes sociais, um fenômeno parecido com o da MTV está ocorrendo: imagem/personalidade começaram a importar muito mais do que para as gerações anteriores. O problema é que agora isso não está restrito ao mundo do entretenimento. Estamos falando da economia e da sociedade como um todo. Pra fazer sucesso em inúmeras áreas, é necessário que você tenha uma personalidade cativante, do tipo que gera engajamento nas redes sociais (de preferência que esteja em harmonia com os ideais políticos considerados corretos pela cultura mainstream), pois redes sociais são movidas mais por personalidade/atitude/identificação pessoal do que por bons produtos. Por isso, uma série de coisas que fazem sucesso hoje não têm verdadeiro lastro, pois o sucesso não foi baseado primeiramente em qualidade, na eficácia de determinada coisa em melhorar a vida humana, e sim no carisma do vendedor.

Como todos temos filmadoras no bolso, e nós consumimos tudo através de telas, a questão da imagem vem se tornando mais e mais relevante, até pro que não devia. Em De Volta para o Futuro, há uma piada genial que mostra que já nos anos 80 existia essa preocupação: quando o Doc Brown dos anos 50 vê a filmadora de Marty pela primeira vez, ele diz: "Um estúdio de televisão portátil! Não surpreende o presidente de vocês ser um ator (Ronald Reagan), ele precisa aparentar bem na televisão!". Ou seja, o que estou dizendo aqui não é novidade, é apenas uma evolução do mesmo fenômeno, só que potencializado ao infinito por conta da internet, celulares e das redes sociais.

É como se nos últimos séculos, tivéssemos ido de uma era onde apenas qualidade importava (imagine um compositor no século 18), pra uma era onde qualidade começou a ter que "negociar" um pouco mais com o fator imagem/personalidade (com o surgimento da televisão, por exemplo), pra uma era onde imagem/personalidade começaram a importar um pouco mais do que qualidade, e agora estamos chegando no ponto onde imagem/personalidade é tudo o que importa — seu produto pode ser um lixo, mas se você tiver a personalidade certa, uma atitude que gere engajamento com determinada tribo, você terá o mercado aos seus pés. Passamos de uma sociedade que priorizava produtividade para uma sociedade onde sua popularidade é a maior riqueza de todas. Até mesmo em áreas que nada têm a ver com entretenimento, como política, ciência e jornalismo, dependem cada vez mais de personalidade, não de competência, experiência, resultados, fatos, pra terem relevância. Estudos científicos ou argumentos políticos que se tornam dominantes na cultura são aqueles que são divulgados em jornais, podcasts, e que são endossados por intelectuais e "autoridades" online. Porém esses intelectuais só se tornam influentes se eles forem personalidades cativantes - entertainers, acima de tudo - não experts, até porque falar a verdade é o pior negócio possível para atrair grandes massas.

Com esse potencial de lucrar com base em seguidores, imagem pessoal, você vê uma série de fenômenos bizarros, como influenciadores que ficam ricos vendendo cursos online, que te ensinam a ficar rico vendendo seus próprios cursos online. Mas sobre o que é tal curso? Como o tal influenciador fez sucesso em primeiro lugar pra provar sua competência? Criou algo de valor? É realmente expert em algo? Não... Fez sucesso basicamente com sua capacidade de comunicação, sua personalidade, carisma em vídeo, habilidade de encantar seguidores. Agora, ele usa essa base de seguidores pra vender cursos. Mas seus cursos não vendem pois são realmente os melhores, os que trazem os melhores resultados. E sim porque os seguidores gostam do vendedor, e estão dispostos a comprar tudo que ele oferece. Se ele vendesse maquiagem, camisetas, pó de café, seus fãs comprariam da mesma forma. Quando você consome produtos desse tipo, o valor que você está recebendo no fundo é entretenimento ou conforto emocional: a sensação agradável de ver/se conectar com uma pessoa atraente que sabe se comunicar, que fica bem em vídeo e fala coisas que te deixam num humor positivo, reafirmam sua identidade. Mas não é o produto que de fato irá te trazer o melhor conhecimento, os melhores resultados e benefícios, pois o sucesso do vendedor não foi baseado em seus resultados, e sim em sua personalidade.

Seres humanos sempre tentaram pegar atalhos, buscar o caminho mais fácil, se dar bem manipulando o sistema. Há séculos que marketeiros tentam fazer algo de baixo valor parecer mais atraente; bancos centrais abandonaram o padrão-ouro há décadas, e não é de hoje que imprimem dinheiro de maneira irresponsável, com a mentalidade de quem coloca água no feijão pra poder "alimentar" mais pessoas (ou pra roubar nutrientes dos outros sem tornar isso evidente). A questão é que agora, certas tendências filosóficas na cultura (como o Declínio da Objetividade, o identitarismo e o desprezo por habilidade/mérito em favor de diversidade, causas ideológicas), junto com certas facilidades tecnológicas, potencializaram esse fenômeno, e estão criando uma elite de "barões ocos", um mundo onde milhões de pessoas enriquecem, bilhões circulam de mãos em mãos, mas pouca riqueza real é gerada no processo: poucas inovações, poucas ideias de qualidade, poucas melhorias no padrão de vida humano.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Passagem

Causeway cartaz críticaÉ um desses dramas que beiram o Naturalismo, sobre pessoas "quebradas" dando apoio umas às outras, tentando recolher seus cacos enquanto lidam com as dificuldades da vida. A personagem da Jennifer Lawrence sofreu uma lesão cerebral no Afeganistão, o que resultou em sérios problemas motores, e agora ela volta a morar com a mãe na cidadezinha em que cresceu (um lugar cheio de memórias dolorosas) enquanto tenta se reabilitar socialmente. Se pensarmos no Mapa de Valores, toda a ênfase do filme está em valores negativos como Repressão e Malevolência, não em valores positivos. Há uma cena breve que resume bem o clima do filme: Lawrence sai com seu novo amigo pra tomar sorvete, numa rara tentativa de se animar, mas termina derrubando o sorvete no chão por conta de seus problemas motores (uma forma simbólica e eficiente de mostrar valores como Fragilidade/Malevolência/Repressão superando Autoestima/Benevolência/Excitação). Seu amigo é um mecânico que perdeu a perna num acidente de carro trágico que arruinou sua família. O sofrimento é o que une os dois. O irmão de Lawrence, responsável por algumas de suas memórias traumáticas na cidade, está na cadeia por tráfico de drogas, e é deficiente auditivo. O filme não exagera na tragédia, não chega a deprimir, mas também não inspira — no máximo serve como consolo pra pessoas em situações análogas. Mas pelo menos não é um filme malfeito, superficial. O elenco está bem, e há diálogos maduros que tornam o filme interessante como estudo psicológico/estudo de personagem.

Causeway / 2022 / Lila Neugebauer

Satisfação: 6

Categoria: IC / NI

Filmes Parecidos: Imperdoável (2021) / O Som do Silêncio (2019) / Manchester à Beira-Mar (2016) / Reencontrando a Felicidade (2010)

Armageddon Time

Armageddon Time cartaz criticaNão vi muitos filmes do James Gray, mas sempre tenho uma sensação parecida quando surge um filme dele: à primeira vista, parece um filme tradicional, acessível, do tipo que seria indicado a Oscars nos anos 80. Mas ao mesmo tempo, fica uma impressão estranha de que não se trata de um filme mainstream de fato... Pois se o filme fosse tudo aquilo que ele promete à primeira vista, não seria um filme pouco comentado, passando apenas em salas alternativas. Preciso ainda assistir Era uma Vez em Nova York, Z: A Cidade Perdida... Mas Armageddon Time me esclareceu um pouco essa questão: Gray parece ser desses cineastas mais interessados em política do que em arte/entretenimento de fato. Mas que, por algum motivo, não se permite assumir isso e abandonar suas pretensões de ser um cineasta comercial. Então externamente, ele finge que está fazendo um filme convencional, pro grande público, mas é tudo uma desculpa pra ele inserir no meio da história seus comentários sociais, suas críticas ao capitalismo, etc. E o problema pra mim não é nem tanto a presença desses comentários, e sim o fato dele não ser muito empenhado (ou bom) no lado artístico do filme. As atuações, a fotografia, a direção, os diálogos... é tudo bem mediano, preguiçoso, sem o encanto e o padrão de excelência de Hollywood (o garotinho principal não é nada gostável, a imagem é exageradamente escura, há escolhas bem esquisitas de música...). Quem esperar um drama familiar pra chorar, com personagens cativantes, atuações memoráveis, algo na linha Gente como a Gente (1980), sairá frustrado. No fundo, a energia toda do filme está na mensagem sobre racismo estrutural, em sugerir que o sucesso dos brancos se deve a certos privilégios enraizados na sociedade, que meritocracia é uma ilusão, que a era Reagan foi um grande pesadelo para os EUA (e que haveria paralelos entre Reagan e Trump), etc. Só que muito disso é apresentado de forma casual, como se fosse apenas um pano de fundo pra outra coisa mais importante (o filme usa aquela tática batida que mencionei na crítica de Marte Um, de mostrar uma TV na sala passando alguma notícia, achando que isso já é o suficiente pra dar um subtexto político ao filme), só que essa "outra coisa" (o drama familiar, a amizade entre os dois garotos) não é forte o bastante pra sustentar a história.

Armageddon Time (2022 / James Gray)

Satisfação: 4

Categoria: NI / AI

Filmes Parecidos: Licorice Pizza (2021) / A Lula e a Baleia (2005) / Projeto Flórida (2017) / Belfast (2021) / Marte Um (2022)

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Pantera Negra: Wakanda para Sempre

Pantera Negra Wakanda para Sempre poster critica
Após um começo interessante e uma sequência divertida num navio, que te dá a impressão de estar vendo um filme de desastre / invasão alienígena, o filme cai pro mesmo nível de mediocridade e enrolação dos roteiros padrão da Marvel (vai nos transportando dos EUA pra Wakanda, pro Haiti, pro México, onde vemos uma série de reuniões que não servem pra nada). Como se Wakanda já não oferecesse fantasia o bastante pra uma franquia só, o filme agora inventa um reino subaquático com homens-peixe que usam baleias como transporte, encantam marinheiros com hipnose sônica, têm um líder com mini-asinhas nos pés que são fortes o bastante pra fazê-lo voar na velocidade de aeronaves... Acho que nem vendo um desenho da She-Ra você se sente tão infantilizado quanto com as coisas que esse filme quer que você compre (a erva criada em impressora 3D que te transforma em Pantera Negra é outra dessas ideias estranhas). Tudo isso com muita propaganda woke, claro — há toda a exaltação da África, de culturas místicas primitivas (os EUA e o capitalismo são sempre o problema, embora o filme tome cuidado pra não rotular nenhuma nação como "boa" ou "má", mesmo aquelas que iniciam ataques militares — são apenas culturas diferentes, cada uma com suas verdades, seus erros e acertos). O filme, agora sem Chadwick Boseman, tem apenas mulheres negras empoderadas como protagonistas, incluindo uma garota de 19 anos chamada Riri que tem a personalidade de uma TikToker, mas temos que acreditar que é uma das cientistas mais brilhantes do mundo, a única pessoa capaz de construir a máquina que detecta Vibranium, e que de quebra usa um traje voador estilo Homem de Ferro que ela mesma construiu (SPOILER: a personagem da Angela Bassett, que é a alma do filme, sacrifica sua vida pra salvar esta personagem insuportável). Há até algumas sugestões de lesbianismo — as mulheres são tão masculinizadas que no fim, quando as heroínas se despedem, Shuri presenteia Riri com um carro estilo Velozes e Furiosos, num gesto máximo de amizade, e Riri convida Shuri pra ir a Chicago com ela assistir a um jogo dos Bulls. O filme tenta extrair algumas lágrimas com homenagens a Chadwick, que são aceitáveis e esperadas, porém não passam dessas táticas da Marvel (tipo cenas pós-créditos) pra satisfazer os fãs no final não com base em méritos narrativos/dramáticos do próprio filme, mas em fatores externos à produção.

Black Panther: Wakanda Forever / 2022 / Ryan Coogler

Satisfação: 4

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Aquaman (2018) / Thor: Amor e Trovão (2022) / Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022)

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

My Policeman

Lembro de uma entrevista em que o James Cameron falava da importância (em Titanic) de fazer a plateia superar rapidamente a impressão de estar vendo um filme de época chato, onde as pessoas falam diferente, se vestem diferente, pra que ela pudesse realmente se envolver na história subjetivamente. Ele entendia que, para o espectador, é difícil se identificar com uma "pessoa de época", com esses arquétipos artificiais que só existem na ficção, com os rótulos que projetamos sobre pessoas que não conhecemos bem... Pois no fundo, sabemos que todo ser humano tem uma mesma essência, é motivado por coisas familiares, e até que você exponha isso, um personagem não parecerá real para o público. Durante a maior parte do tempo, My Policeman falha justamente neste ponto. Ele parece querer mostrar "pessoas de época" agindo de maneira formal, de acordo com os costumes de um período, e contar uma história de um ponto de vista externo, mantendo certa distância entre o público e os personagens. Ninguém é especialmente carismático; é difícil de entender a atração de Tom tanto por Marion quanto por Patrick, e Patrick parece se atrair por Tom mais com base em fetiche do que em sentimentos mais profundos. É difícil também entender a lógica de Marion trazer Patrick pra viver com eles na casa (depois que eles estão mais velhos) sem o consentimento de Tom, considerando o passado delicado dos três. Não é um filme vazio, desinteressante, mas ele funciona melhor como retrato de uma cultura, dos preconceitos vividos por homossexuais em décadas passadas, do que como uma história de amor arrebatadora pra você se emocionar.

My Policeman / 2022 / Michael Grandage

Satisfação: 6

Categoria: NI / I-

Filmes Parecidos: Carol (2015) / 45 Anos (2015) / Me Chame pelo Seu Nome (2017)

Weird: The Al Yankovic Story

Acho que existe um erro conceitual básico no filme. A única parte em que o humor fez sentido pra mim foi nos créditos finais, onde vemos montagens do verdadeiro Al Yankovic em situações absurdas, ao som de uma trilha dramática. Assim como no trailer falso criado pelo Funny or Die em 2013, é divertida a ideia de contar a história de alguém como Weird Al Yankovic com o tom pretensioso e melodramático que se contaria a história de um artista como Freddie Mercury ou Ray Charles. (Me lembra de quando eu era adolescente, que a gente brincava que se a Carla Perez morresse, iriam fazer uma versão lenta da "Melô do Tchan" pra algum artista respeitado cantar no funeral, como era comum na época.). O humor viria do choque entre o tom pomposo da narrativa, e o teor não-sério do artista. Só que o filme Weird não tem esse tom melodramático consistente que seria necessário pra torná-lo uma paródia. Ele começa com a mesma atitude que uma biografia honesta sobre a carreira de Weird Al teria — o tom é descontraído, irônico, mas ainda sério. Daí, no meio disso, tenta-se inserir piadas que só funcionariam no contexto de uma paródia completamente nonsense. Outro erro é tentar fazer graça exagerando as conquistas de Al... Mostrá-lo chegando no topo das paradas, vencendo Grammys, conhecendo celebridades como Madonna, tendo momentos de inspiração, como se isso em si fosse absurdo. Se Al fosse uma figura desprezível, tivesse sido totalmente insignificante no meio da música, sugerir esse tipo de sucesso poderia ter alguma graça. Mas Al de fato ganhou vários discos de platina, de fato venceu Grammys, teve sacadas criativas que resultaram em grandes hits... Onde está a piada, então? Será que o filme tem uma visão tão baixa da comédia que, pra ele, um comediante não poderia ser tema de uma história inspiradora de sucesso? Pra mim não funcionou nem como paródia, nem como biografia (até onde entendi, pouco do que acontece no filme reflete a história de Al).

Weird: The Al Yankovic Story / 2022 / Eric Appel

Satisfação: 4

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Meu Nome é Dolemite (2019) / Artista do Desastre (2017) / TV Pirada (1989) / O Mundo de Andy (1999) / Isto é Spinal Tap (1984)

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O Enfermeiro da Noite

Uma das formas de fugir do Idealismo sem corrompê-lo é fazer o que este filme faz: contar uma história dramática, cheia de suspense, mas evitando qualquer elemento de espetáculo — conduzindo a trama de maneira tranquila, sem criar tensão ou expectativa demais (em vez de segurar informações pra surpreender, o roteiro já vai revelando suas cartas sem muita cerimônia), e sendo bem contido na direção (pouco é feito pra dar cor ou tornar o filme impactante esteticamente). Ele apenas conta a história de forma simples, objetiva — mas como se trata de uma história envolvente por si só, e os atores estão ótimos (Eddie Redmayne nasceu pra fazer esse tipo de personagem), acaba sendo uma experiência satisfatória.

The Good Nurse / 2022 / Tobias Lindholm

Satisfação: 7

Categoria: I-

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terça-feira, 1 de novembro de 2022

Pearl | Crítica

Pearl filme crítica cartaz
É mais fácil perdoar as burrices de um filme quando ele é despretensioso e nunca prometeu nada. Agora imagine um filme que pretende se destacar justamente por ter uma linguagem cinematográfica conceitual, cheia de referências ao cinema clássico, mas daí comete uma série de erros justamente nesta área, provando uma enorme ignorância sobre cinema e sobre a cultura americana.

O filme começa romantizando uma região rural dos EUA, com uma fotografia estilo Technicolor, widescreen CinemaScope, créditos com fonte caligráfica e uma trilha sonora melodramática, tudo parecendo ironizar o cinema dos anos 50 (de diretores como Douglas Sirk). Só que pouco depois, descobrimos que não estamos nos anos 50, e sim em 1918, numa época em que o cinema não tinha nem cor, nem widescreen, nem trilha sonora. Quando conhecemos a protagonista, as referências passam a flertar com O Mágico de Oz — um filme de 1939 que também não tem nada a ver com a Hollywood da era muda. Até aí você ainda poderia imaginar que essa salada de referências foi proposital, faz parte do "conceito" do cineasta, mas quando Pearl diz que seu sonho é ser uma dançarina como as que ela vê nos filmes, e mostra ela indo ao cinema assistir a um musical em 1918 — quase uma década antes da invenção do cinema falado — o filme começa a parecer simplesmente tolo.

A ideia de Pearl ser uma jovem de classe média, que sonha em ser famosa, e está ansiosa para passar numa audição onde ela precisa ser "perfeita", é um clichê tirado da cultura dos anos 80. Não é nada convincente a maneira como o filme insere essa narrativa de busca pelo estrelato numa fazenda do Texas em 1918 (quase nunca vemos Pearl ensaiando, além disso o show-business na época ainda nem era um indústria elitizada, glamourosa, como se tornou umas décadas depois). Outra coisa bizarra é Pearl falando em certos momentos sobre querer fazer turismo na Europa, como se isso fosse uma viagem casual pra se fazer na época, ainda mais com a Europa devastada após a 1ª Guerra e todo mundo fugindo de lá para os EUA. Pearl conversa sobre isso com seu date — um rapaz que trabalha como projecionista num cinema local, mas apesar disso se veste como um executivo de sucesso e tem um carro próprio. Todos esses detalhes vão tornando o universo do filme totalmente irreal, e reforçando essa ideia de que o diretor não tem muita noção do que está fazendo.

A caracterização de Pearl é igualmente incongruente. Os grandes vilões do cinema são memoráveis pois refletem sempre algum tipo de distúrbio psicológico reconhecível, um traço de caráter que vemos na vida real, só que levado ao extremo. Hannibal Lecter ou HAL-9000 representam as pessoas de racionalidade extrema, mas que não sentem empatia. Annie Wilkes representa o fanatismo e os delírios de grandeza (que muitas vezes encobrem um ego frágil). Na medida em que esses traços são reconhecíveis, se relacionam com alguma patologia real, o vilão ganha credibilidade. Mas Pearl parece mais baseada num estereótipo do cinema clássico do que num perfil psicológico. Ela é basicamente uma Dorothy — uma menina simples do campo, sonhadora, ingênua — que de vez em quando muda de personalidade e comete atos grotescos sem explicação alguma. A graça parece estar puramente na subversão do estereótipo, como esses filmes que pegam figuras como Papai Noel ou Ursinho Pooh e os transformam em serial-killers só pra fazer graça (mais pro final, durante um monólogo de vários minutos, que serve mais como exibicionismo técnico, Pearl exibe uma nova faceta mais consciente, honesta, madura, que parece incompatível tanto com sua versão "Dorothy" quanto com sua versão "Psycho").

A intenção do cineasta parece ser a de fazer uma crítica ao "sonho americano", tornar o modelo de perfeição dos anos 50 o vilão da história (embora o filme se passe nos anos 10), e mostrar Pearl como uma vítima do sistema, mais ou menos como o Coringa. Só que ao contrário de Coringa (2019), o filme não tem nem o personagem e nem a ambientação certa pra tornar esta crítica minimamente plausível. A cena final, com Pearl sustentando um sorriso forçado, basicamente diz: "veja como a cultura americana oprimia as mulheres e as forçava a serem donas de casa submissas e educadas". É uma ideia que parece totalmente deslocada em relação à personagem, à trama, e que caberia melhor num filme como Não Se Preocupe, Querida (que aliás, é igualmente tolo e com referências culturais sem sentido — mostra coregorafias geométicas filmadas de cima, estilo Busby Berkeley, como se tivessem a ver com a estética dos anos 50). 

Como terror/slasher também não dá pra esperar muita coisa, afinal se trata de um filme da A24, que não tem o menor compromisso em satisfazer o público com base em expectativas de gênero.

Pearl / 2022 / Ti West

Satisfação: 3

Categoria: IC / AI

Filmes Parecidos: X (2022) / Saint Maud (2019) / Rua do Medo: 1994 (2021)