terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Matrix Resurrections

Uma das dificuldades de se fazer uma sequência para Matrix é que o impacto do primeiro filme se deve muito aos conceitos inovadores que ele apresentou, não apenas à qualidade da narrativa, às cenas de ação, etc. Então pra manter o mesmo nível de impacto, não bastaria criar uma boa história e ter boas cenas; seria necessário surpreender o público com conceitos igualmente inovadores, diferentes dos do primeiro, o que se torna uma missão praticamente impossível (me lembra um pouco o desafio de Dogville, embora seja um filme totalmente diferente).

Das 3 sequências, acho que esta é a que mais se esforça pra pensar fora da caixa, trazer ideias novas, e isso é feito com um uso interessante de metalinguagem que nos leva a questionar a existência da própria trilogia inicial. Não chega perto da inventividade do primeiro, mas pelo menos me pareceu um roteiro mais ousado e estimulante intelectualmente do que os de Matrix Reloaded e Revolutions, que se destacaram apenas pelas cenas de ação.

Eu gosto de sequências como Aliens ou Terminator 2, que apresentam elementos novos, mas procuram não fugir muito do clima e da estrutura do filme original, pois entendem que o que conquistou o público não foram apenas os personagens e o universo, mas a experiência narrativa como um todo. E Matrix Resurrections respeita isso trazendo de volta a estrutura e muitos dos elementos do primeiro filme, porém com alguns twists (assim como De Volta para o Futuro 2 nos leva de volta ao 1, mas por uma nova perspectiva — e justificado por recursos essenciais da franquia; não tirando algo da cartola como o multiverso da Marvel, que torna o fan-service mais forçado).

SPOILER: O que torna a narrativa um pouco insatisfatória aqui é que os personagens passam o filme inteiro neste processo de "ressurreição", de "voltar à Matrix", e quando eles finalmente voltam, o filme acaba (Duna feelings). Na maior parte do tempo, não sentimos que Neo e Trinity estão realmente de volta, e que uma aventura nova, autêntica, está sendo vivida. Seus corpos estão de volta, mas suas consciências ainda não estão lá 100%. Pra que fosse uma experiência satisfatória e tivéssemos a sensação de uma refeição completa, o comeback dos dois teria que ter ocorrido muito mais cedo no roteiro, e a partir daí, o time saído em busca de um novo objetivo, lutado pra salvar o mundo de novas ameaças, etc. (Twin Peaks: O Retorno (2017) é um bom exemplo de como o mais fundamental nesses casos não é tanto o retorno ao lugar, aos trajes, à ação — mas é quando o personagem recupera plenamente sua consciência, seus propósitos e traços de caráter, que ele realmente parece vivo na tela.)

Quando Matrix saiu, lembro de um comentário sarcástico do José Wilker, que não via tanta profundidade no filme, e achava que se tratava apenas de uma história sobre um sujeito que aprendia a lutar mais rápido. Na época achei boba a crítica, mas hoje vejo que ela tinha um fundo de verdade, mas que isso não diminui o filme. Apesar dos temas complexos sendo discutidos, todo filme pra funcionar precisa ter um foco, uma linha simples de interesse que sustente o resto (uma das 5 Histórias Idealistas), e Matrix era essencialmente sobre um homem comum descobrindo e desenvolvendo seus novos poderes. Resurrections já não encontra um foco tão claro e prazeroso, e muitas vezes acaba deixando o espectador perdido no meio das discussões existenciais, sem saber o que esperar emocionalmente da trama.

De tudo, o que mais me impressionou no filme foi a direção de Lana Wachowski e o bom uso de todos os recursos cinematográficos. Eu vivo reclamando aqui da estética dos blockbusters atuais, como tudo se tornou mais Naturalista, menos mágico, até no caso de filmes de fantasia (problemas que vão desde o casting, até a direção de fotografia — sem falar no conteúdo, nos valores). Bem, aqui está uma prova de que isso não é problema dos equipamentos atuais, do CGI, nem de alguma "energia dos tempos" misteriosa que afete negativamente nossa percepção dos filmes, e sim de decisões artísticas (ou da falta de) tomadas pelos cineastas. Matrix Resurrections é atual, não busca um visual retrô, e ainda assim, com seu uso de trilha, fotografia, edição, atuação, efeitos sonoros, ele consegue fugir completamente do Naturalismo atual, e criar uma experiência rara hoje em dia, um entretenimento que se leva a sério, e tem pleno domínio da linguagem. Pelo menos neste aspecto, é o blockbuster mais bem feito que vejo em muito tempo (mesmo a ação e as lutas não sendo tão espetaculares e bem coreografadas quanto as dos outros capítulos).

A fraqueza do filme, portanto, não está na direção, na produção, nem na matéria prima do roteiro, que ainda demonstra inteligência, criatividade, e respeita o DNA da franquia (não corrompe os personagens com toques malevolentes, nem com humor autodestrutivo). O problema pra mim é que a história não explora todo seu potencial, termina antes de dar ao público o que ele quer — então é como uma música bem produzida, com ótimos vocais, letras interessantes, mas cuja melodia fica prometendo um refrão que nunca chega.

The Matrix Resurrections / 2021 / Lana Wachowski

Nível de Satisfação: 7

Categoria B: Idealismo com problemas de roteiro/estrutura

Filmes Parecidos: Han Solo: Uma História Star Wars (2018) / Tron: O Legado (2010) / Tenet (2020) / Twin Peaks: O Retorno (2017) / Duna (2021) / Matrix (1999)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Imperdoável

Baseado numa minissérie britânica de 2009, o filme conta a história de uma ex-presidiária (Sandra Bullock) tentando reencontrar sua irmã mais nova e se reintegrar à sociedade após cumprir uma pena de 20 anos por ter matado um policial (o tal do ato "imperdoável"). É preciso entender o estigma envolvendo matar policiais em países como os EUA (especialmente entre conservadores) pra história fazer mais sentido. Aqui no Brasil, a população sente mais medo do que respeito pela polícia, então um crime do tipo dificilmente causaria a mesma comoção. Mas mesmo pro contexto americano, eu achei forçada a hostilidade da comunidade em relação à personagem. É nítido pra qualquer espectador que Ruth não é uma assassina perversa, e que seu crime ocorreu num contexto muito peculiar, então nos perguntamos por que os personagens na tela não enxergam a mesma coisa. Ela passa o filme todo sendo ameaçada, atacada, espancada por estranhos, como se fosse uma serial-killer pedófila (sofrendo um ódio que talvez fosse mais convincente pro público atual se a situação fosse inversa — se o protagonista fosse um policial estigmatizado por ter matado um cidadão inocente, um caso na linha do George Floyd). E a maioria das punições Ruth aceita de cabeça baixa, sem se defender, mesmo sabendo que está sendo injustiçada, como se fosse Jesus carregando a cruz. Parece uma tática manipulativa do filme pra vitimizar Ruth e gerar empatia pela personagem, mas feita sem sutileza ou realismo comportamental. Algumas atitudes de Ruth foram me irritando ao longo do filme (especialmente quando ela começa a agir de forma destrutiva) até porque não há muitas qualidades positivas pra admirar na personagem (a não ser que você considere sofrimento e sacrifício coisas positivas). Em Mare of Easttown, Kate Winslet também fazia uma personagem difícil de gostar inicialmente, que passava boa parte da história sofrendo, com uma cara emburrada, só que ela tinha um lado mais doce que escapava pelas entrelinhas, e nos dava uma visão da mulher gostável por trás daquele estado deprimido, algo que não ocorre tão bem aqui. O filme funciona mais ou menos como uma novela; algo sem muita profundidade ou pretensão artística, mas que por lidar com eventos dramáticos de apelo universal (crimes, traumas familiares) e ter reviravoltas bem posicionadas ao longo da trama, se torna um programa razoável.

The Unforgivable / 2021 / Nora Fingscheidt

Nível de Satisfação: 5

Categoria C: Entretenimento com Senso de Vida trágico

Filmes Parecidos: O Diabo de Cada Dia (2020) / Mare of Easttown (2021) / Monster: Desejo Assassino (2003) / Tudo por Justiça (2013) / O Lenhador (2004)

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Being the Ricardos

Drama biográfico escrito e dirigido por Aaron Sorkin (roteirista consagrado que agora vem se consolidando como diretor também) sobre os bastidores do seriado de TV I Love Lucy, um dos mais populares da história. No começo estava estranhando a proposta do filme de levantar conflitos políticos (Lucy é acusada de ser comunista pela mídia, podendo sofrer um "cancelamento") e questões que ninguém associa à figura de Lucille Ball; como se hoje todos os filmes tivessem que trazer algum tipo de discussão do tipo pra serem levados a sério, mesmo quando o tema não pede. Parecia um desses filmes que iriam focar no lado decadente do show business, só porque é mais fácil parecer respeitável desta forma. Mas aos poucos o filme foi me conquistando. Nicole Kidman está surpreendentemente bem, apesar de não se parecer em nada com Lucille Ball. O que faz ela funcionar no papel é o fato do filme focar no lado determinado e perfeccionista da comediante (um temperamento que cai muito bem em Nicole), e não no lado "palhaça" que surge apenas quando o diretor grita "ação". Pra entender o filme, é preciso encará-lo quase como um novo Steve Jobs (2015), também escrito por Sorkin. Não espere uma biografia convencional, linear, que abrange toda a vida da personagem. O filme é uma exploração da personalidade de Lucy, e seleciona apenas alguns momentos chave de sua carreira, que são condensados pra revelar sua essência. Vemos uma profissional brilhante, técnica, capaz de visualizar cenas detalhadamente em sua mente conforme lê os roteiros, antecipando fraquezas no conceito, inconsistências lógicas — é impressionante a atenção aos detalhes e a preocupação quase obsessiva com verossimilhança de Lucy no processo criativo. Sorkin deu a ela um verniz meio Steve Jobs/Mark Zuckerberg, e a apresenta como uma figura exigente, um mestre em seu ofício, capaz de ser dura e insensível com sua equipe na busca por excelência. Até que ponto Lucille era de fato assim eu não sei, e essa era a última coisa que eu esperava ver em um filme sobre I Love Lucy, mas a personagem que Sorkin pintou não deixa de ser fascinante. O filme se passa em um ambiente que Sorkin conhece intimamente, e talvez até por isso ele consiga descrevê-lo com tanta riqueza e veracidade, muito mais que o universo de Os 7 de Chicago, por exemplo. É um filme para pessoas que gostam do processo criativo, que admiram talento artístico, e são apaixonadas pelo mundo do entretenimento (não é um filme que apela para o grande público). Quando Sorkin descreve os desafios criativos e as soluções para os problemas do programa, não são passagens genéricas, como vemos na maioria dos filmes (pensem na visão superficial que WandaVision tem da TV e do humor da época) e sim discussões bastante específicas, reais, que apenas alguém que conhece o meio, que entende a diferença entre o que funciona e o que não funciona tecnicamente, entre humor de qualidade e humor de segunda linha, poderia ter elaborado. Há também toda a relação de Lucille com o marido Desi Arnaz (Javier Bardem, também ótimo) e uma exploração interessante dos conflitos mais íntimos dela — suas desilusões quanto à família, o desejo de constituir um lar — algo que é arrematado na cena final com um simbolismo visual muito bem colocado.

Being the Ricardos / 2021 / Aaron Sorkin

Nível de Satisfação: 9

Categoria A: Idealismo com ênfase em conflitos, mas ainda buscando inspirar (é no mínimo um bom filme sobre Idealismo, o que explica em partes meu contentamento extra)

Filmes Parecidos: Um Lindo Dia na Vizinhança (2019) / Steve Jobs (2015) / Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013) / O Destino de uma Nação (2017)

domingo, 19 de dezembro de 2021

Pig

Nicolas Cage faz um ex-chef que ficou deprimido após a morte de sua esposa e passou a viver recluso na floresta, caçando trufas com a ajuda de sua habilidosa porca (pra depois serem vendidas a fornecedores de restaurantes sofisticados). Quando a porca é roubada por trufeiros competidores, Cage parte numa missão para resgatá-la. A trama é obviamente irônica — em vez de algo que se leva a sério como John Wick ou filmes do Liam Neeson, a ideia aqui é promover um certo deboche do gênero, contrastando a atitude séria e agressiva de Cage, com a missão esdrúxula de resgatar uma porca farejadora de trufas. É mais ou menos como O Homem que Matou Hitler e o Pé-Grande (2018), a diferença é que aquele ia mais longe na brincadeira de se passar por filme de ação de verdade, então se tornava algo razoavelmente estimulante de assistir. Este aqui já conduz a história de maneira bastante lenta, cheia de espaços vazios entre os diálogos, num tom sério, deixando o elemento "ação" bem de pano de fundo. Se assemelha mais a um filme indie convencional, como First Cow (o filme não é da A24, mas lembra um pouco, pois é uma companhia que adora ver elementos de gêneros escapistas em contextos de filme de arte, criando ironia e dissonância). O problema é que pra mim, não há substância o bastante pra encará-lo como filme de arte, e nem deboche/ação o bastante pra aproveitá-lo como algo Tarantinesco. Cage vem sendo reconhecido por sua performance, que é boa, porém cai um pouco na categoria de DiCaprio em O Regresso (2015), onde o que impressiona é mais a aparência destroçada do que a interpretação em si.

Pig / 2021 / Michael Sarnoski

Nível de Satisfação: 4

Categoria D/C: Filme de autor / Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Mandy: Sede de Vingança (2018) / O Homem que Matou Hitler e o Pé-Grande (2018) / First Cow (2019) / Saint Maud (2019)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa

Terceiro filme do Homem-Aranha com Tom Holland, onde ele e o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) acidentalmente abrem um portal para outras dimensões, e trazem de volta diversos vilões que lutaram contra o Homem-Aranha no passado, inclusive em filmes anteriores à "era Holland".

A Marvel parece ter 2 vertentes; uma que busca agradar o público mais progressista, que quer mudanças drásticas no gênero, e outra que quer agradar os mais conservadores, que querem que as coisas voltem a ser como sempre foram. A segunda vertente certamente é a mais popular, e Sem Volta para Casa é provavelmente o filme do MCU que melhor satisfaz este desejo. Como muitos desses filmes são feitos com base em fan-service e referências a outras obras, normalmente eu fico me sentindo meio de fora, mas neste caso eu consegui entender a maioria dos (vários) momentos onde a plateia aplaudiu na sessão, pois lembro bem de atores como Alfred Molina e Willem Dafoe dos outros filmes da série; as "memórias afetivas" aqui são mais óbvias que de costume, então você não precisa ser um fã hardcore pra aproveitar.

De qualquer forma, continuo achando essa uma tática meio barata de agradar o espectador, mesmo eu tendo ficado feliz de rever alguns rostos. Vivemos numa época tão pobre em diversão e criatividade, que parece que a única forma satisfazer o público é fazendo referência a coisas de outros tempos (e nem precisamos ir muito pra trás; até a aparição de Electro, o vilão de O Espetacular Homem-Aranha 2 de 2014, fez alguns espectadores pularem de alegria na sala). Eu gosto de nostalgia, e sou super a favor de filmes "crowdpleasers" — porém há formas mais e menos admiráveis, mais e menos artísticas de se fazer isto; e esta das referências, da memória afetiva, das participações especiais, é uma que já foi explorada à exaustão (achei que Vingadores: Ultimato tinha sido o limite dessa tática de reunir personagens, mas eles continuam pensando em novas ideias), e serve de muleta pra muitos filmes que, sem esta carta na manga, não teriam muito a oferecer (SPOILER: fico imaginando daqui a 20 anos, se as cenas-chave deste filme terão qualquer impacto; e também como serão os filmes do futuro, se eles serão saudosistas e farão referência aos filmes de hoje, que já sobrevivem de referências a coisas anteriores — neste segundo caso acredito que sim, pois a nostalgia deste público no fundo não é direcionada à obra, nem mesmo ao personagem, e sim ao ator, ao I.P., ao passado em si, então daqui a 20 anos, o retorno de um Tom Holland será tão aguardado quanto o de um Tobey Maguire ou Andrew Garfield, independentemente dos méritos destes filmes novos).

O multiverso é a desculpa perfeita pra Marvel poder repetir esta fórmula ad infinitum (junto com as "joias do infinito" e com o próprio conceito do MCU) e serve como uma lâmpada mágica inesgotável, capaz de proporcionar qualquer tipo de aparição, reencontro, comeback, até o de personagens que já morreram, e ainda podendo desfazer tudo no fim, como se nada tivesse ocorrido, pra não comprometer narrativas futuras.

Se você pensar na história em si, ela é bem corriqueira, sem imaginação, e se resume a uma grande burrada de Parker e do Doutor Estranho (por serem tão descuidados ao brincarem com as forças do universo), e depois uma outra grande burrada do Homem-Aranha (SPOILERS), que pra ser altruísta e tentar amar seus inimigos, decide soltar todos os vilões (o conceito de vilão e a ideia de punir o mal andam em baixa, e hoje vemos cada vez mais filmes sem vilões tradicionais, ou com vilões que no fundo não são maus — Sem Volta Para Casa, apesar do tom descontraído, vem com todo o pacote de valores como "sacrifício", "humildade", que reflete os de seu público alvo). Estes erros dos personagens resultam numa série de problemas, que no fim são corrigidos de forma fácil, num outro passe de mágica que já poderia ter sido feito logo no início da história. Então é um roteiro sem muito investimento criativo, e daquelas tramas onde o protagonista não busca nada que irá realmente melhorar sua vida; tem apenas que desfazer um acidente que ocorre no início do filme pra poder voltar à normalidade, o que não cria uma meta tão atraente.

No começo do filme, Parker está sendo vilanizado pela população, é chamado de assassino na mídia, mas em vez de pensar em maneiras de transformar a opinião pública através de ações efetivas, e buscar uma vitória honesta, Parker vai logo atrás do Doutor Estranho, pra que ele simplesmente lance um feitiço e mude a mente da população. Os próprios vilões não precisam fazer nada para terem seus espíritos "curados"; basta Parker instalar um chip, usar nanotecnologia, que já está tudo feito. Esse tipo de solução instantânea contribui pra característica vápida e superficial dos filmes da Marvel; num universo onde tudo pode acontecer num estalar de dedos, tudo pode ser revertido com um Ctrl+Z, e nada tem consequências sérias, as emoções do espectador em relação à história se desmaterializam tão facilmente quanto os personagens ao final da sessão. Fica até difícil sentir grande admiração pelo Homem-Aranha, pois suas habilidades não são demonstradas de forma convincente (pegue a cena onde ele usa "matemática" para vencer uma luta, e veja se aquilo faz qualquer sentido).

Eu até fiquei emocionado em alguns momentos do filme. A questão é que, quando eu realmente admiro e respeito um filme, depois que ele acaba, os sentimentos vividos parecem crescer em mim. Mas quando eles foram obtidos de forma pouco talentosa e autêntica, a experiência é rebaixada na minha memória já nas horas seguintes.

De todos os filmes do MCU, este é possivelmente o mais satisfatório e o que melhor utiliza todos os recursos que eles já vêm usando há muito tempo; o que é ótimo por um lado, mas também expõe as limitações deste modelo atual de entretenimento. 

Spider-Man: No Way Home / 2021 / Jon Watts

Nível de Satisfação: 7

Categoria B/C: Entretenimento eficaz, mas baseado em clichês, fórmulas, e valores morais não Idealistas

Filmes Parecidos: Homem-Aranha: De Volta ao Lar (2017) / Homem-Aranha no Aranhaverso (2018) / Vingadores: Ultimato (2019) / Star Wars: A Ascensão Skywalker (2019) / The Mandalorian (2019)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

No Ritmo do Coração

Remake americano do filme francês A Família Bélier (2014), sobre uma garota que é a única ouvinte em uma família de surdos, e cujo sonho é cantar, o que gera uma série de conflitos dentro de casa. Não tinha gostado nada do original, e este só me agradou um pouco mais por causa do elenco (Marlee Matlin, que é a única atriz surda a já ter ganho um Oscar, faz o papel da mãe) e também por eles terem atenuado algumas das cenas que mais tinham me incomodado no outro, que pareciam depreciar os personagens gratuitamente (embora outras continuem iguais). Mas a tentativa de combinar uma história Idealista de "busca dos sonhos" com um grau tão forte de Naturalismo pra mim continua sendo péssima: a ambição modesta da garota e a falta de energia das cenas de apresentação impedem o filme de se enquadrar na categoria de um King Richard (2021) por exemplo (também sobre "underdogs" buscando o sucesso), e deixam o foco da produção mais na representação dos conflitos da comunidade surda, nos dilemas de jovens comuns, ainda que num tom mais leve e comercial do que um O Som do Silêncio (2019)

Coda / 2021 / Sian Heder

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Idealismo Corrompido (ênfase no Naturalismo e na função social)

Filmes Parecidos: A Família Bélier (2014) / Apenas Uma Vez (2007) / Mesmo Se Nada Der Certo (2013) / Mr. Holland: Adorável Professor (1995)

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Não Olhe para Cima

Comédia de Adam McKay (A Grande Aposta) com o elenco mais estelar do ano (Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett e Meryl Streep, só pra citar alguns) sobre dois cientistas que descobrem um cometa gigante vindo em direção à Terra, mas têm dificuldades em convencer a população do perigo por causa da alienação dos políticos, da mídia, e de outros fenômenos como o negacionismo, as teorias da conspiração, etc. Eu assisti ao filme inteiro traçando paralelos com a situação da pandemia, mas originalmente ele pretendia discutir mais a indiferença da cultura em relação às mudanças climáticas. De qualquer forma, é tudo um grande pretexto pra satirizar o comportamento dos Republicanos, da direita Trumpista, então qualquer emergência do tipo serviria como base. Eu teria gostado mais se o filme tivesse focado no debate "ciência vs. anti-ciência", que é mais universal, porém ele opta por expandir a discussão para outras questões, se transformando em um filme bastante partidário, que não é tanto sobre defender ciência quanto é sobre ridicularizar o oponente (está muito mais pra um Borat do que pra um Contato).

O melhor do filme é sua capacidade de sintetizar certos absurdos da cultura atual através dos personagens e dos eventos da história, e muito da graça vem de ver atrizes sérias como Streep e Blanchett brincando de pessoas sem-noção (aliás, o que torna o filme menos amargo que outros filmes políticos recentes é que ele faz um retrato mais benevolente dos conservadores; em vez de pessoas repulsivas e desumanas, neste filme eles parecem apenas alienados, irresponsáveis, pessoas que pensam demais em se divertir, criando uma dinâmica carismática entre eles e os protagonistas "sensatos").

Não é um filme tão satisfatório intelectualmente quanto sátiras do tipo Rede de Intrigas (1976) ou Dr. Fantástico (1964), pois além da abordagem tendenciosa, a situação é tão exagerada que às vezes perde conexão com os problemas do mundo real (além disso, o que o filme tem a dizer sobre a direita não vai além do que já estamos acostumados a ouvir na mídia e nas redes sociais). Ainda assim, é um bom entretenimento pra quem não identificar demais com o alvo das piadas.

Don't Look Up / 2021 / Adam McKay

Nível de Satisfação: 7

Categoria C: Idealismo crítico com foco demais no ataque e na zombaria

Filmes Parecidos: Idiocracia (2006) / A Grande Aposta (2015) / Borat: Fita de Cinema Seguinte (2020) / Uma Verdade Inconveniente (2006) / Fahrenheit 11 de Setembro (2004) / Dr. Fantástico (1968)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Belfast

Projeto pessoal do cineasta Kenneth Branagh, baseado em memórias de sua infância em Belfast (Irlanda do Norte) nos anos 60. O filme não tem muita trama, e faz apenas um retrato da vida do garoto Buddy naquele bairro, durante um período turbulento e de mudanças. A principal diferença entre Belfast e um filme com Roma (baseado nas memórias do Alfonso Cuarón) é que Branagh aparentemente teve uma infância mais leve, e olha pro passado com carinho e um senso positivo de nostalgia. O objetivo dele com o longa parece mais o de homenagear aquele lugar e período onde ele cresceu (há muitas referências saudosistas a músicas, filmes e produtos da época), do que o de exorcizar algum trauma ou senso de culpa remanescente (não há nem um grande foco em mensagens sociais, como se poderia imaginar). Não sou um super fã de Naturalismo ou de filmes que o cineasta faz pra si mesmo, mas esse é daqueles que ainda se esforçam pra trazer coisas positivas para o espectador; há personagens cativantes, a presença adorável da Judi Dench, uma fotografia preto e branca muito bonita, alguns conflitos universais (o apego ao lar vs. a inevitabilidade da mudança) e a rotina do garoto envolve sempre situações curiosas — não é uma "fatia da vida" tão aleatória, sem seletividade, e sim algo que busca tocar o espectador, promover uma reflexão positiva sobre a infância, ainda que de forma casual.

Belfast / 2021 / Kenneth Branagh

Nível de Satisfação: 7

Categoria D: Filme de autor / Naturalismo com inclinação Idealista

Filmes Parecidos: Roma (2018) / O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) / Cinema Paradiso (1988) / A Invenção de Hugo Cabret (2011)

Amor, Sublime Amor

Considerando a importância de West Side Story (1961) e de Spielberg na minha história como cinéfilo, nem preciso dizer que minhas expectativas estavam altas para essa nova adaptação, mesmo sabendo dos perigos envolvendo refazer clássicos, e fazer musicais, que sempre digo ser o gênero mais complicado de se executar. Mas acho que o desafio se provou grande demais até pra Spielberg, e o filme não funcionou tão bem quanto eu esperava. Achava que ele não teria problemas com questões de linguagem (em usar fotografia, edição, atuação, coreografia, pra tornar natural o que não é natural — atores subitamente dançando e cantando), mas acho que o filme tem complicações já neste nível. Começando pelo elenco, que exceto por um ou outro (a que mais convence pra mim é Ariana DeBose como Anita), não consegue entregar o nível de intensidade e romantismo necessário pra criar a magia, a "suspensão da descrença" que é o principal desafio do gênero. Ansel Elgort é o que me pareceu mais deslocado no papel, tentando fazer um Tony mais contido, sério, o que deixa meio "cringy" os momentos onde ele precisa entrar numa canção e ser mais extrovertido. Talvez Spielberg tenha percebido em algum nível a estranheza de algumas das sequências musicais, pois a câmera está sempre tão ocupada com movimentos chamativos, enquadramentos espertinhos, flares inundando a lente, que isso parece quase uma tentativa desesperada de tirar o foco das performances, e fazer a cena funcionar simplesmente com base em ideias fotográficas; quando a realidade é que, se tudo estivesse funcionando direito (roteiro, elenco, tom...), a câmera poderia ficar praticamente parada, deixando o movimento por conta dos atores, que os números ainda seriam prazerosos de ver (basta lembrar dos clássicos da MGM).

Uma coisa que eu sinto é que musical é inevitavelmente é um gênero leve, ingênuo... Pra funcionar, tem que haver uma pureza mais exagerada, quase com atmosfera de desenho animado — até mesmo no caso de um musical com temas mais sérios como WSS. Se você tenta ser adulto, sensato ou "durão" fazendo um musical, você já está com um pé no desastre.

O West Side Story de 1961 é um filme tão excepcional que seria difícil superá-lo em muitas coisas... Mas mesmo os pontos que poderiam ser melhorados não chegaram a ser. Por exemplo: Richard Beymer, que faz o Tony no antigo, apesar de entregar bem, nunca me pareceu a melhor opção imaginável pro papel... Consigo imaginar um West Side Story com um casal central ainda mais forte e com mais química do que Beymer e Natalie Wood... Mas o novo acaba sendo pior nesse sentido. Vocalmente, o filme antigo também não era tão polido quanto poderia ser (mesmo usando dublagem), outra oportunidade perdida, pois apesar de Rachel Zegler cantar super bem, Ansel já tem uma voz não tão forte pra esse tipo de canto... E embora seja simpática a ideia de dar "Somewhere" pra Rita Moreno cantar, eles acabaram minimizando a música mais grandiosa do filme, pois obviamente, beirando os 90 anos, Moreno não teria como cantá-la em plena intensidade.

(Algumas decisões criativas, como a de gravar algumas das canções parcialmente ao vivo, ou a de não colocar legendas para as falas em espanhol, me fizeram pensar também se o desejo de Spielberg de parecer moderno não o faz ir às vezes em caminhos questionáveis.)

Narrativamente, me incomodaram algumas mudanças na ordem e no contexto das músicas... "Cool", além de ser um dos números mais incríveis e bem filmados do de 61, se encaixava muito bem após a briga, por se tratar de uma música mais sombria, num momento de grande tensão. Aqui, ela ocorre antes da briga, num contexto bem mais ameno dramaticamente, e a coreografia não tem uma "raison d'être" nem uma composição tão boa. Por outro lado, depois da briga, quando o clima está pesado, eles jogam "I Feel Pretty", uma música levinha e divertida que vira um anticlímax naquele momento. Sei que algumas dessas "mudanças" na verdade são mais fiéis à peça original do que foi o filme de Robert Wise e Jerome Robbins — porém se o filme melhorou a peça em alguns pontos, não acho que faz sentido voltar atrás só pela fidelidade (imagine refilmarem A Noviça Rebelde, e "Do Re Mi" ser cantada numa sala fechada, só pra seguir a peça). 

Ainda há outros detalhes que me soaram estranhos... Os Jets/Sharks, por exemplo, são "marmanjos" demais pra estarem envolvidos em briguinhas bobas de rua — algo que seria mais convincente se eles fossem garotos mais imaturos, ainda num clima de high school, em vez de adultos formados.

Talvez isso tudo seja apenas minha familiaridade excessiva com o clássico, e que alguém que não conheça a história tenha uma experiência menos confusa; mas pra mim o filme pareceu meio sem pé nem cabeça, emocionalmente desconectado, com uma ênfase exagerada em efeitos de fotografia, e desconfortável pra lidar com coisas mais importantes como as performances, o conteúdo — nem mesmo a mensagem anti-preconceito foi atualizada de forma satisfatória (a Anybodys, por exemplo, que é a personagem não-binária, me pareceu uma caricatura ainda mais desajeitada do que a feita por Susan Oakes).

Só não achei um fracasso total pois ainda há uma história sólida sendo contada, com alto valor de produção. Spielberg sempre foi de se aventurar por gêneros que fogem de sua zona de conforto, o que é algo admirável, mas nem sempre isso resulta em bons filmes. Nesse caso, achei que tinha potencial pra ser um grande acerto (e os críticos estão adorando o filme, então não levem minha palavra como parte do consenso) mas pra mim, o filme entra mais na categoria de O Bom Gigante Amigo ou 1941, produções onde Steven não estava em plena sintonia com o material (vale lembrar também que, além da falta de jeito dele pra assuntos adultos e políticos, ele nunca conseguiu retratar um amor romântico convincente entre homem e mulher em seus filmes, algo que pode ter pesado em WSS).

(Pra finalizar, é importante mencionar que, apesar dos pontos fracos do filme, nada se compara ao completo desleixo e falta de noção das pessoas que legendaram o filme em português, destruindo alguns dos pontos altos do espetáculo — como os punch lines brilhantes de "America", por exemplo, que foram completamente arruinados pra quem não entende inglês. Um desrespeito não só com o espectador e com o cineasta, mas principalmente com Stephen Sondheim, que acabou de falecer agora dia 26 de Novembro, e terá muitos jovens sendo apresentados às suas letras desta forma.)

*************************************

2ª VEZ:

Dei uma segunda chance, afinal a expectativa alta podia ter distorcido minha impressão inicial... Mas continuei vendo os mesmos problemas e estranhando ainda mais o filme. Apesar dele ter um visual bastante trabalhado, pra mim o visual é uma das coisas que mais prejudicam o longa — mais especificamente, escolhas de direção relacionadas à fotografia e à edição. Ao longo da carreira, Spielberg foi desenvolvendo um gosto especial por planos-sequência (o "Spielberg oner"), e já vi ele elogiando também filmes antigos (como esta cena de A Felicidade Não Se Compra) onde a câmera não faz a coisa "óbvia" de cortar pra um close do rosto do protagonista quando ele está falando, e permanece distante, num plano geral. Só que na cena de A Felicidade Não Se Compra (que aliás é uma exceção dentro do filme) essa abordagem faz sentido, pois ela cria a impressão de um protagonista vulnerável, impotente, no meio de uma multidão (sem falar que a câmera fica parada, e não fazendo enquadramentos chamativos que distraem do conteúdo). Essa não é uma técnica boa pra qualquer tipo de cena. Só que em West Side Story, ele usa esse artifício o tempo todo, inclusive em momentos onde teria sido crucial fazer o "óbvio" — registrar as reações e falas dos personagens em close pra pontuar a narrativa, enfatizar as emoções para o público (como um exemplo disso, vejam a cena lá pela 1h55 onde os Sharks contam para a Rita Moreno que Bernardo foi morto, e como tudo é filmado de longe, através de um neon amarelo). 

Além da câmera balançando, mais "solta" e espontânea que de costume, Janusz Kaminski usa grande angular o tempo inteiro; uma lente que enquadra o cenário todo e diversas pessoas ao mesmo tempo, aumentando o senso de realismo, e deixando o olhar do espectador livre pra vasculhar a tela, sem o diretor "impor" um foco único de atenção a cada instante. A edição também é bem aleatória (não espere aqueles cortes disciplinados do antigo, que respeitavam a estrutura da música). Tudo isso cria um distanciamento emocional entre o espectador e o enredo, como se estivéssemos no mesmo ambiente onde o drama está ocorrendo, mas não participando e vivendo 100% o drama. É uma linguagem adequada para o cinema Naturalista, experimental, mas não é compatível com um musical, onde isso vira um toque de desintegração; uma desconstrução gratuita da forma.

Outro problema pra mim é o tom relativamente sério da produção, que briga com a essência lúdica do gênero musical... Spielberg parece ter abordado o filme como se estivesse fazendo mais um de seus dramas políticos, tipo Ponte de Espiões ou Munique, a única diferença sendo que aqui, a trama seria interrompida de vez em quando por sequências energéticas de canto e dança. Isso cria um estranhamento constante ao longo do filme: cenas com uma trilha sonora engraçadinha, meio antiquada e infantil, mas onde o visual é sério, moderno, realista; atores com rostos densos, que ficariam ótimos num thriller tipo Munique (como o ator que faz Bernardo ou a própria protagonista Rachel Zegler), mas que não parecem totalmente "em casa" dançando e cantando. Um bom exemplo desse problema de tom é no minuto 47 quando Tony canta "Maria" pelas ruas, e cruza com um varredor de rua e com uma "senhora dos pombos" à la Mary Poppins, que observam ele passando apaixonado... Esses estereótipos funcionavam muito bem nos musicais antigos, mas do jeito que a cena foi iluminada, filmada, e atuada, em vez de figurantes simpáticos, eles se tornam presenças sinistras: o varredor parece alguém que poderá esfaquear Tony a qualquer momento.

Isso não é exatamente uma surpresa. Desde os anos 2000 Spielberg vem duelando com o próprio Idealismo, tentando se desconstruir, diminuir seu sentimentalismo, na tentativa de parecer um diretor mais "respeitável", "adulto", em vez daquilo que ele era naturalmente. Ele sempre admirou e até invejou seus colegas que jogavam no outro time: diretores Não Idealistas como Scorsese, que tinham mais respeito da crítica, das elites. A única surpresa é que aqui ele deu um passo mais "corajoso" nessa direção, exercitando esse lado não em uma história original como A.I., na qual entramos com menos expectativas, mas em West Side Story, um filme tão ligado à Hollywood clássica. Por isso, de todos os seus filmes, esse pra mim foi o mais indigesto e o que menos gostei.

*************************************

West Side Story / 2021 / Steven Spielberg

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Em um Bairro de Nova York (2021) / Nine (2009) / Mamma Mia! (2008) / Além da Eternidade (1989)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

King Richard: Criando Campeãs

Drama biográfico sobre a ascensão das duas estrelas do tênis, Venus e Serena Williams, treinadas de maneira pouco convencional pelo pai determinado (Will Smith). É uma história naturalmente satisfatória, que pra funcionar o filme só precisa ter uma competência narrativa básica e não entrar no caminho. E é isso que King Richard faz — não há grandes ousadias de roteiro, de direção, mas é tudo muito acertado, especialmente a caracterização Richard e seus métodos curiosos de disciplina. Teria gostado de saber um pouco mais sobre como o talento das filhas foi descoberto pelo pai, e como elas adquiriram técnicas tão superiores (o quanto foi genética, o quanto foi o conhecimento de Richard), pois o filme acaba sendo mais sobre como vender um "produto" excelente uma vez que você o tenha, do que como atingir a excelência em primeiro lugar. Ainda assim há mensagens interessantes na história, com nuances o bastante pra que ela fuja do beabá do discurso motivacional. É daqueles filmes raros hoje que falam positivamente sobre a busca do sucesso, do sonho americano, e ainda assim ganham a simpatia da crítica; talvez por ser uma história real, sobre esportes (uma área onde vencedores são celebrados com menos suspeita), mas também pelo fato da narrativa ser temperada por realismo e consciência social.

King Richard / 2021 / Reinaldo Marcus Green

Nível de Satisfação: 8

Categoria A: Idealismo contido por realismo, mas ainda positivo

Filmes Parecidos: Estrelas Além do Tempo (2016) / Ford vs Ferrari (2019) / O Homem Que Mudou o Jogo (2011) / À Procura da Felicidade (2006)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Cultura - Dezembro 2021

2/12: Oscar Update

Parece que West Side Story (2021) terá uma presença maior na "disputa" do que eu imaginava, pois desde que ocorreu a première uns 3 dias atrás, as expectativas sobre o filme aumentaram bastante; no Gold Derby (site de previsões), o filme subitamente entrou pra lista de apostas da maioria dos experts, e agora pouco a protagonista Rachel Zegler surpreendeu levando Melhor Atriz no National Board of Review, que é o evento que dá início à temporada de prêmios. O filme entrou pro Top 10 do NBR também, mas o grande vencedor foi Licorice Pizza do Paul Thomas Anderson.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ataque dos Cães

É um dos pretendentes ao Oscar 2022 este novo trabalho da Jane Campion (O Piano) que não lançava nenhum longa desde 2009. O filme se passa em Montana, em 1925, onde 2 irmãos donos de um rancho começam a ter conflitos após um deles se casar e trazer a esposa (Kirsten Dunst) para morar com eles. Benedict Cumberbatch, que é a figura central do filme, representa aqui a "masculinidade tóxica", atormentando a vida da cunhada (e também a do filho afeminado dela) com seu comportamento abusivo.

O filme tem ótimas atuações, uma das fotografias mais bonitas do ano, e embora muito pouca coisa aconteça na primeira hora, eu estava assistindo interessado, querendo saber onde aquilo tudo iria parar. Porém quando o filme começa a revelar suas cartas, pra mim ele foi ficando cada vez mais frustrante.

(SPOILERS fortes daqui em diante) O objetivo da história é basicamente condenar o comportamento tóxico de Phil (Cumberbatch), que leva a personagem de Dunst ao alcoolismo e a passar por várias humilhações. Descobrimos ao longo da história que Phil tem uma homossexualidade enrustida, e o filho de Dunst, percebendo isso, usa a informação para ganhar sua confiança e se vingar no fim. Só que pra justificar essa vingança (à la Promising Young Woman), o filme acaba criando diversos exageros e inconsistências nos personagens, como se as caracterizações estivessem a serviço do plot twist e não o contrário.

A primeira coisa que achei estranha foi o sofrimento exagerado de Dunst ao longo do filme. Ela parece chorar e ficar abalada por razões que não entendemos direito. Por exemplo: quando seu filho sofre bullying no restaurante e depois ela chora compulsivamente (mais até do que o filho parece ter se abalado), como se alguém tivesse morrido; ou as reações de horror quando ela vê o filho formando amizade com Phil; ou o desconforto enorme ao receber visitas para o jantar (sendo que ela trabalhava em restaurante e lidava com pessoas o dia todo); ou a própria ideia dela se tornar alcóolatra por causa das provocações (o marido desaparece convenientemente da história no segundo ato, e não a protege — o que não faz sentido, pois ele ama a esposa e teria capacidade de enfrentar o irmão).

Phil de fato é uma figura tóxica, mas a fragilidade emocional dela parece desproporcional até para os padrões de hoje, quando nossas sensibilidades para questões emocionais são muito mais aguçadas — que dirá pros padrões de Montana nos anos 20, onde esse tipo de comportamento era o normal. Phil sempre a provoca e faz comentários cruéis (dizendo que ela é interesseira, que não tem talento, etc.), mas não chega nem perto de cometer alguma agressão física, nem mesmo quando ela faz a loucura de vender o couro dele, provocando um grande prejuízo. Será que bullying desse tipo já é motivo pra assassinar alguém? O filme parece acreditar que conforto emocional agora está acima de qualquer outro direito.

Se o comportamento de Dunst não me pareceu convincente, tampouco achei o do filho, que é apresentado como um garoto extremamente delicado, interessado em arte, flores, sem um pingo de agressividade, mas depois, pra ajudar a explicar a reviravolta, inventam que ele adora matar coelhinhos e estripar animais como hobby — 2 comportamentos conflitantes que o filme não consegue encaixar numa mesma personalidade. Ele nem demonstra ser tão protetor em relação à mãe ao longo da trama, a ponto de justificar o que faz (uma coisa é um personagem complexo, outra é um personagem incongruente).

O próprio Phil tem inconsistências estranhas. O fato dele ser gay enrustido eu até comprei — mas a ideia dele ser um homem estudado, capaz, vaidoso, com uma postura natural de líder, pra mim não casa com a noção dele ser alguém que não sabe que precisa tomar banho pra receber visitas, que se comporta às vezes como um garoto problemático e irresponsável.

Então me pareceu um daqueles filmes que querem soar mais maduros e sofisticados do que são de fato; que apelam pra ambiguidade, pro interpretativo, pra que os críticos depois preencham as lacunas com uma riqueza que ele em si não possui.

E é uma narrativa que frustra, por construir expectativas ao redor de um tema (a sexualidade mal resolvida de Phil e a amizade com Peter) e no fim não entregar um momento catártico resolvendo esta questão, e sim um pay-off que parece arbitrário; uma vingança contra Phil que ocorre não no auge de sua intolerância, e sim num momento onde ele já tinha iniciado uma jornada de transformação para melhor.

The Power of the Dog / 2021 / Jane Campion

Nível de Satifação: 4

Categoria D/C: Filme de autor / trama minimalista insatisfatória e com valores ambíguos

Filmes Parecidos: Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) / The Rider (2017) / O Estranho que Nós Amamos (2017) / O Piano (1993)

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Encanto

Animação musical da Disney dos criadores de Zootopia, com canções originais escritas por Lin-Manuel Miranda (que está em tudo este ano) sobre uma garota na Colômbia que é o único membro de sua família que não nasceu com poderes mágicos. Menos radical que Coco, o filme ainda assim pertence à vertente Não Idealista da Disney cujo foco está mais em educar o público do que em entreter (promover valores como diversidade, esforço coletivo, respeito aos "não especiais" — e ao mesmo tempo desestimular a competição, o individualismo e a busca pela perfeição). É um daqueles roteiros mais água-com-açúcar onde não há grandes sacadas, conflitos (nem há um vilão praticamente) e as soluções para todos os problemas dependem apenas de um abraço afetuoso (a cobiçada "cura emocional"). Algumas canções achei divertidas até (como "Colombia, Mi Encanto"), embora uma ou outra tenha me parecido enfiada à força na história (especialmente a sequência da mulher fortona). Não achei terrível, mas nem preciso dizer que não me encantou.

Encanto / 2021 / Byron Howard, Jared Bush

Nível de Satisfação: 4

Categoria C/F: Entretenimento Não Idealista (foco em educar; remediar dores) / Alguns toques de Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Raya e o Último Dragão (2021) / Viva: A Vida é uma Festa (2017) / Moana - Um Mar de Aventuras (2016) 

Noite Passada em Soho

De Edgar Wright (Baby Driver / Shaun of the Dead), o filme conta a história de uma garota que se muda para Londres para estudar moda, mas chegando lá, começa a ser perturbada por visões dos anos 60 envolvendo outra garota (Anya Taylor-Joy), um assassinato brutal, e se vê no meio de um pesadelo, perdida entre realidade e fantasia. É um desses filmes onde o estilo do diretor é mais importante do que a história... Não acho que esse seja o background de Wright de fato, mas ele tem o perfil de diretores que começam na publicidade ou fazendo videoclipes, e quando migram para o cinema não percebem que entraram num universo totalmente diferente, onde a importância da narrativa é muito maior. Um dos problemas estruturais aqui é que demora mais de 1 hora pro filme realmente começar, pois até a protagonista ter a visão do assassinato e resolver fazer algo a respeito (o que teria ocorrido em 20 minutos num roteiro tradicional), não há um verdadeiro gancho — não entendemos pra onde o filme está caminhando, que gênero de história estamos vendo, deixando tudo meio tedioso, conceitual demais, como se o cineasta estivesse interessado apenas em bolar transições criativas entre passado e presente, entre uma personagem e outra (tipo fã de Hitchcock que fica tão fascinado com as mecânicas da direção que esquece que Hitchcock antes de mais nada era um mestre do suspense). Outra questão aqui é que muito do que acontece de mais dramático está apenas na mente da protagonista... Thomasin McKenzie está sempre fugindo de assassinos ou figuras sinistras que a plateia já sabe se tratarem de alucinações, portanto não há um verdadeiro senso de perigo, de que a trama está avançando para algum lugar. Então acaba sendo um daqueles filmes onde a protagonista só busca resolver alguma ferida emocional... E essas manifestações visuais, físicas, são apenas uma forma do filme ilustrar metaforicamente a batalha interna da "heroína" — o que pra mim não resulta em um bom thriller (coloquei aspas em "heroína" pois a personagem é extremamente frágil, mal tem segurança pra abrir a boca pra falar, que dirá pra enfrentar assassinos).

Last Night in Soho / 2021 / Edgar Wright

Nível de Satisfação: 4

Categoria C: Entretenimento prejudicado por Subjetivismo e por pôr estilo acima de conteúdo (Pseudo-Sofisticação / 1999 e o Declínio da Objetividade)

Filmes Parecidos: A Mulher na Janela (2021) / Cisne Negro (2010) / Mãe! (2017) / Repulsa ao Sexo (1965)

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia

Tenho visto (e revisto) entrevistas com diretores de fotografia renomados, e é interessante notar como a abordagem de alguns naturalmente tomba mais pro Idealismo e a de outros mais pro Naturalismo.

Fotógrafos mais próximos do Idealismo frequentemente falam de seus trabalhos como "pintar com luz", e até costumam estudar pintores clássicos pra entender como luz e cores criam certas impressões no observador. Esse tipo de fotógrafo se sente estimulado pela conceito de começar com um cenário totalmente escuro, sem luz, e a partir daí ir acrescentando luzes com base no que querem que o espectador sinta, no que o diretor quer comunicar com a cena, e assim vão decidindo o quanto de sombra deve haver no rosto do personagem, qual a qualidade e a direção da luz, o que deve ser realçado ou minimizado na imagem pra direcionar a atenção do espectador, que texturas interessantes podem ser criadas — além claro das decisões ligadas a lentes, composição, movimentos de câmera, etc.

Já outros fotógrafos, talentosos também, mas que tombam mais pro Naturalismo, citam frequentemente o conceito de "luz motivada", algo muito em alta hoje, que é o princípio de que a luz incidindo sobre o cenário e os atores deve ter sempre uma justificativa plausível; estar vindo de alguma janela (mesmo que seja uma luz artificial colocada fora da janela) ou de pontos de luz existentes no cenário (abajures, lustres, etc.). Partindo desta restrição, eles podem até criar imagens lindíssimas — não estou dizendo que isso resultará em algo feio esteticamente — mas é uma abordagem bastante diferente, e que reflete a visão de cada um sobre o que é arte, quais as regras do jogo, etc.

Os "Idealistas" moldam a realidade com mais liberdade pra gerar o impacto desejado no espectador. Eles enxergam o frame como uma tela em branco, e se sentem responsáveis por cada informação que incluem ali. Os Naturalistas já colocam o realismo num patamar mais alto; pensam primeiro na realidade da cena, do ambiente físico, e daí decidem como fotografar aquilo de maneira interessante; mas não se sentem tão à vontade pra "manipular" livremente a experiência do espectador. É como se a artificialidade da arte os incomodasse, e com esse tipo de fotografia eles buscassem tornar o cinema um pouco menos "desonesto" (esquecendo talvez que o roteirista já inventou eventos impossíveis, que os atores estão fingindo o tempo todo, que o compositor colocará música onde não haveria música na vida real, etc.).

Não estou falando aqui de extremos opostos — da diferença entre Nomadland (2020) e Os Sapatinhos Vermelhos (1948), por exemplo — e sim de algo mais sutil, que pode explicar por que Blade Runner 2049 talvez pareça menos "mágico" visualmente do que o Blade Runner original, mesmo tendo imagens fantásticas e sendo uma produção igualmente rica. Roger Deakins, que é um dos melhores e mais populares diretores de fotografia em atividade, faz filmes lindos visualmente (1917 / Onde os Fracos Não Têm Vez / Skyfall), mas costuma sempre manter um pé no Naturalismo e na ideia de luz motivada.

Quando olho para os filmes dos anos 70–90 que eu gosto (ou até dos anos 30, 40, 50), vejo que muito do encanto já era criado na direção de fotografia, e que o fato dos fotógrafos da época estarem mais em sintonia com princípios Idealistas os deixava livres pra agirem como "pintores de luz", e criarem um tipo de efeito que é impossível no Naturalismo.

Existem centenas de formas de moldar a imagem para atingir efeitos dramáticos, e um filme não precisa seguir exatamente os exemplos que vou listar a seguir. Mas só pra citar 2 técnicas clássicas que passaram a ser usadas com menos frequência nas últimas décadas, vamos pegar por exemplo o contra-luz. O contra-luz é uma luz colocada atrás do ator (ou do objeto filmado), o que cria um contorno brilhante ao redor dele. Alguns teóricos justificavam essa técnica com base na necessidade prática de "separar" o ator do fundo do cenário (algo que era ainda mais importante quando o cinema era preto e branco os objetos na tela se confundiam mais), mas a verdade é que um dos principais efeitos do contra-luz é que o "halo" brilhante que ele cria ao redor do ator (um brilho no cabelo, na lateral do rosto, no ombro) acaba tornando o personagem mais glamouroso, "maior que a vida", e menos como pessoas comuns que enxergamos no dia a dia. Esta sempre foi uma das luzes mais usadas em Hollywood, mas nas últimas décadas ela passou a ser vista como uma convenção desnecessária, um pouco antiquada, por remeter demais à linguagem comercial dos anos 80/90, algo que a nova geração de criadores buscava se distanciar (assim como o contra-luz foi saindo de moda, o uso de tripés e câmeras estáveis também se tornou "clássico" demais, dando início à tendência da câmera na mão). Claro que ainda se usa o contra-luz, mas ele geralmente é mais suave, mais "motivado", e menos consistente ao longo do filme, o que não provoca o mesmo efeito (na minha opinião, quando a luz não é motivada e não é totalmente natural é que o efeito se torna realmente fascinante, dependendo do gênero de filme).


Exemplos de como o contra-luz era usado de forma mais marcada e expressiva no passado (à esquerda), e como hoje a luz tende a ser mais natural, mesmo em cenas com contra-luz.

Outra técnica que foi se tornando menos comum é o uso de fumaça ou haze (névoa) nos filmes. Fumaça é algo que pode ser um elemento cenográfico, mas que pode ser também um recurso da direção de fotografia; um elemento usado ao longo do filme (mesmo em cenas onde não há uma justificativa pra fumaça) pra criar certa atmosfera e tornar o universo do filme mais interessante. Fumaça (ou haze) sempre foi usada de forma subliminar nos filmes e até hoje é algo usado em tudo o que é conteúdo audiovisual, mesmo quando o espectador não se dá conta (só registramos subconscientemente que há certa "atmosfera" na cena, sem perceber que é porque estamos literalmente enxergando a atmosfera — o que só ocorre por causa da fumaça jogada no cenário).



Acima uma cena de Coringa com haze, e depois uma comparação de um cenário com haze e sem.

A diferença é que hoje isso é usado com mais discrição e comedimento, algo que requer ainda mais justificativa do que o contra-luz. Se você pega um filme do Spielberg antigo por exemplo, você vai ver que não só as luzes não precisavam ser sempre realistas e prováveis (pense no início de Contatos Imediatos, e a sombra da árvore sendo projetada na casa), como nem mesmo fumaças intensas precisavam ser justificadas. Às vezes Spielberg tentava justificá-las, colocando cigarros em cena, ventanias exageradas pra levantar poeira (outros tipos de particulas no ar também valem), churrasqueiras ou barris ao fundo com algo pegando fogo, só pra conseguir ter fumaça em cenas externas (que é mais difícil do que em internas). Mas às vezes ele simplesmente queria fumaça lá sem grandes explicações. Veja esta cena de Jurassic Park que se passa dentro de um trailer — onde aparentemente ninguém está cozinhando — e fique observando a janela ao fundo; como a luz entrando cria um feixe visível, algo que só ocorre na presença de fumaça/haze, e como a partir da metade do clipe, eles não se deram o trabalho nem de dissipar a fumaça pra disfarçar.




Em E.T. há um exemplo ainda mais fascinante do uso de fumaça: na cena logo perto do início, onde Elliott e os amigos estão na sala brincando e pedindo pizza, há muita fumaça no ambiente, criando um clima meio onírico (a fumaça meio que justificada por um cigarro da mãe que está na mesa). Já nas cenas externas, a fumaça é explicada pela neblina. 



Mas o mais interessante é na cena do dia seguinte, que se passa na mesma sala onde os garotos brincavam, só que desta vez a fumaça não é usada — pois a ideia nesse momento é criar um clima de "de volta à realidade", dar a impressão de que tudo aquilo que aconteceu na noite anterior não passou de uma fantasia. Isso muito provavelmente foi planejado, pois notem como no final desta sequência, quando Elliott resolve ir lavar a louça irritado, e levanta os olhos para o céu (voltando a "sonhar"), a fumaça retorna, desta vez justificada pelo vapor da água quente da pia. O vapor surge numa quantidade tão exagerada que não é possível que Spielberg (e o fotógrafo) não tenham usado aquilo de propósito (consciente ou inconscientemente) como recurso narrativo: um símbolo associado ao mundo mágico para o qual Elliott (e o espectador) deseja ser transportado.




Claro que é preciso ter em mente que o propósito final é fazer o espectador acreditar na história, ser transportado para a realidade do filme. Se a fotografia se torna tão teatral, tão irreal, a ponto de chamar a atenção do espectador, distanciá-lo da história, isso prejudica o filme. O ideal é que esses elementos sejam percebidos subconscientemente, e o foco do espectador continue nos acontecimentos da história. Em E.T., há luzes irreais mesmo na segunda cena, a do "de volta à realidade" — um contra-luz sutil no cabelo da maioria dos atores; ou a luz entrando pela persiana e criando riscos de baixo pra cima na parede da cozinha, algo bem improvável numa casa de verdade. A fotografia nunca se torna Naturalista de fato, mas o fotógrafo entende que não se pode usar todos os truques a todo momento, pra não atropelar a história.

Esses exemplos são de técnicas mais voltadas para filmes escapistas, fantasias/aventuras, etc. Num drama, ou numa comédia romântica, esse tipo fotografia talvez não se encaixe. Ainda assim, há inúmeras formas de usar a fotografia de forma expressiva, dramática, se o filme quiser fugir do Naturalismo. Kubrick não gostava de luzes artificiais, por exemplo, e muitas vezes colocava abajures e luzes "práticas" fortes o bastante no cenário, a ponto delas bastarem para iluminar o ambiente, deixando-o livre pra apontar a câmera em qualquer direção, sem ter refletores no set limitando seus ângulos. Seus filmes, portanto, têm luzes mais realistas, menos glamourosas, mas ainda assim, através de enquadramentos, lentes, composição, cenografia, ele criava imagens incríveis que passavam longe de uma linguagem documental, Naturalista. Então a essência do Idealismo não é necessariamente ser escapista, fantasioso, e sim ser expressivo, dramático, moldado para provocar determinado efeito no espectador.




Se pegarmos os 4 pilares do Idealismo separadamente, podemos entender melhor como eles se aplicam à fotografia de cinema:

Objetividade — Seria respeitar a necessidade do espectador por ordem, clareza, compreensão; composições que criem algum senso de ordem visual, que "simplifiquem" a complexidade do ambiente físico; que tenham um foco e conduzam a atenção do espectador para apenas um ou dois elementos em cena, minimizando na imagem tudo o que é irrelevante ou distrativo; câmeras "ativas" que sejam usadas com propósito, para comunicar ideias, narrar a história, etc. O extremo oposto dessa abordagem seria, por exemplo, a câmera "catatônica" do cinema experimental, que não acompanha a ação de propósito, foca em coisas aleatórias e deixa eventos importantes ocorrerem fora de quadro, ou que simplesmente aponta a câmera na direção da ação sem se preocupar com enquadramento, fundos, luz, narrativa visual, etc.




Benevolência — Está na intenção geral de mostrar um universo melhorado; de usar a câmera para criar harmonia, beleza, uma realidade mais "colorida" do que a que encontramos no dia a dia. A negação disso seria o tipo de filme que usa imagem pra incomodar, pra mostrar o lado trágico e obscuro da vida (câmera na mão, imagens dessaturadas, luzes duras, ênfase em conteúdos negativos como violência, feiura, etc.). Abaixo o final de Vitória Amarga (1939), considerado pesado para a época (SPOILER), pois a protagonista (Bette Davis) tem um tumor no cérebro e morre na cena final. Na história, tinha sido estabelecido que quando ela perdesse totalmente a visão, ela já estaria próxima da morte, então a câmera desfocada no fim é basicamente uma forma criativa de "matar" a personagem; um tipo de sutileza e foco no positivo que seria impensável hoje em dia, num filme com este conteúdo:




Autoestima — Numa entrevista com Janusz Kamiński, grande parceiro de Spielberg, ele comenta que uma das principais preocupações de Steven nas filmagens, no que diz respeito à fotografia, é que os atores pareçam dignos e enobrecidos na tela. Essa preocupação com a dignidade dos atores é uma das manifestação básicas do fator Autoestima, e há uma série de técnicas para se buscar este resultado (como o já discutido contra-luz; criar luzes personalizadas pra favorecer as qualidades do rosto de cada ator; filmar o ator de um ângulo mais baixo para torná-lo mais grandioso, etc.). Mas o conceito pode se manifestar também num nível mais formal; no simples ato de se criar uma fotografia elaborada, tecnicamente virtuosa (mesmo que o foco não seja favorecer o elenco, afinal nem toda história comporta isso). O oposto disso seriam filmes que desglamourizam os atores de propósito, que são fotografados de maneira simples, sem grande técnica, etc. Abaixo, Jack Cardiff comentando sobre como estudava as atrizes com quem trabalhava antes de filmá-las (começa em 1:02:32 e vai até 1:05:09).




Excitação — É usar a imagem pra estar sempre estimulando o espectador, criando interesse, envolvimento, escapismo, trazendo novidades, surpresas, não entediando. Fumaça e luzes "irreais" cairiam nessa categoria (ou silhuetas, por exemplo, que além de mistério podem também engrandecer os personagens). Mas há muitos recursos dentro desta categoria: movimentos de câmera envolvendo trilhos, dollys, gruas (que fazem a plateia "voar" e se deslocar como em um simulador); cores vivas; uma boa variedade de composições e enquadramentos, de forma que a atenção do espectador esteja sempre avançando para algo novo e interessante; Reveal Shots; planos que culminem em alguma surpresa visual; efeitos especiais (CGI, práticos, matte painting, etc.), o uso de lentes teleobjetivas (que, diferentemente de lentes "normais" que são mais Naturalistas e próximas da visão humana, nos fazem ver um mundo por um olhar diferente, que comprime e seleciona a realidade de uma maneira impossível para o olho nu), efeitos óticos como o dolly-zoom, ou até o zoom simples, que também é impossível para o olho humano; câmera-lenta, etc. O contrário seria uma câmera que apenas registra o que está na frente dela de maneira direta, passiva, com uma "lente normal"; ou planos longos, monótonos, onde o foco seja só os diálogos, sem nada de visualmente interessante. Abaixo Dean Cundey falando sobre como Spielberg planeja suas cenas pra sempre estimular o espectador  (começa em 29:32 e vai até 31:24)




Claro que a fotografia sozinha não faz o filme, e não vai conseguir transformar uma história realista, com pessoas comuns, em algo totalmente inspirador. Um exemplo disso é o filme O Fundo do Coração (1981), do Coppola, que é um ótimo filme e explora incrivelmente o conceito de "pintar com luz", mas que por ter um conteúdo mais realista e melancólico, não se torna um entretenimento escapista só por causa do visual.

E é claro que há lugar pra estética Naturalista nos filmes — nada contra os que se propõem a fazer um tipo diferente de cinema (ou iniciantes que não tenham verba pra criar muitos desses efeitos). Mas meu papel aqui é promover a abordagem Idealista, e no caso de filmes cujo propósito é entreter, transportar o público, eu acho frustrante essa predominância atual do Naturalismo na fotografia, que pra mim impede muito da magia do cinema de ocorrer.


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Casa Gucci

Segundo lançamento recente de Ridley Scott, o filme conta a história da queda da dinastia da família Gucci entre os anos 70 e 90, focando principalmente no assassinato de Maurizio Gucci (Adam Driver) orquestrado por sua ex-mulher Patrizia Reggiani (Lady Gaga). Já falei algumas vezes que Ridley Scott só faz grandes filmes quando cai um roteiro bom nas mãos dele e um projeto já no rumo certo, o que não foi o caso aqui infelizmente. No nível de roteiro, o filme já apresenta uma série de problemas — não entendemos direito o que levou Maurizio a se casar com Patrizia, que de cara já parece uma oportunista sem grandes afinidades com ele. Maurizio, que é apresentado como um rapaz honesto que inicialmente quer distância do universo decadente da família, de repente começa a se tornar mau caráter e ganancioso sem grandes explicações... Todos esses arcos de personagens são meio confusos, e ao final da história você não entende que lição tirar da tragédia; a morte de Maurizio fica parecendo apenas um crime passional aleatório que não está exatamente ligado à decadência do business da família, e portanto não serve como um clímax satisfatório. É como se o roteiro quisesse usar o assassinato pra fazer os Gucci parecerem uma espécie de família Corleone, envolvida em uma série de crimes tenebrosos... Quando na verdade, tirando esse incidente com Patrizia, os outros crimes parecem envolver apenas sonegação de impostos, nada tão impensável que coloque a família no patamar de mafiosos. O filme não consegue encontrar uma linha narrativa satisfatória, que amarre todos esses eventos com algo interessante a observar. O lado "O Poderoso Chefão" / "o crime não compensa" da trama acaba não funcionando direito, e nem o lado "Atração Fatal", sobre uma ex-mulher desequilibrada, já que as relações e o caráter dos personagens são mal construídos.

Outro problema do filme (e este provavelmente é o que mais chama atenção) são as atuações, especialmente as caracterizações de Lady Gaga e Jared Leto. Gaga pelo menos se esforça, apesar de não se encaixar no papel. Já Leto parece estar de zoeira no filme... No começo eu tinha esquecido que era ele interpretando Paolo, e estava achando tão bizarra e incômoda a atuação daquele senhor, que não estava entendendo como um ator tão sem-noção podia estar num filme como aquele... Depois que me dei conta que era o Jared Leto, tudo fez mais sentido. Mas é o tipo de coisa que só "funciona" se você sabe que é uma celebridade disfarçada, fazendo gracinha pro público, ou aquele tipo de cameo que você perdoa a ruindade por ser alguém supostamente "acima" da função de ator, como quando surge uma figura que destoa totalmente do filme, e daí você saca: "Ah, é o Mike Tyson!" ou "Ah, é o diretor do filme fazendo uma ponta!".

Não é uma história desinteressante, mas vários probleminhas assim vão se somando e dando impressão de uma produção fora de prumo... Há exageros gritantes na maquiagem do Jeremy Irons, que em vez de doente, parece mais alguém fantasiado de Família Addams pro Halloween. Outra coisa estranha: o filme vai dos anos 70 aos anos 90, mas você não percebe um envelhecimento notável nos atores, e os estilos de cada década não são muito marcados, te deixando desorientado quanto ao período em que estamos (a trilha sonora é esquisita também — tocam quatro músicas da Donna Summer sem explicações pra tamanha ênfase; e na cena do casamento entre Maurizio e Patrizia, que teoricamente seria no início dos anos 70, toca "Faith" do George Michael, que é do final dos anos 80, sendo que o resto do filme não tem essa linguagem desconstruída, de misturar elementos de épocas). É o típico filme que acaba sendo indicado a Framboesas de Ouro, por ser uma produção ambiciosa, com certas qualidades, mas misturada com alguns defeitos primários que até leigos conseguem notar.

House of Gucci / 2021 / Ridley Scott

Nível de Satisfação: 5

Categoria B: "Idealismo crítico" com problemas de roteiro e execução

Filmes Parecidos: Saint Laurent (2014) / O Lobo de Wall Street (2013) / Foxcatcher (2014) / The Assassination of Gianni Versace - American Crime Story (2018)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

tick, tick...BOOM!

Estreia na direção de Lin-Manuel Miranda (criador de Hamilton / In the Heights), que é uma adaptação para o cinema do musical autobiográfico de outra figura importante do teatro musical, Jonathan Larson, que morreu precocemente nos anos 90 antes de ver sua peça Rent se tornar um grande hit na Broadway. O filme acompanha Larson (muito bem interpretado por Andrew Garfield) como um artista talentoso, porém sem reconhecimento, passando por uma série de dificuldades em sua vida pessoal e profissional, enquanto busca seu "big break" em Nova York. Assim como Rent, é um musical mais realista, com uma visão de mundo semi-trágica, mas comparando com a adaptação de Querido Evan Hansen que saiu recentemente, por exemplo, é um filme bem mais talentoso e respeitável. Não sou particularmente fã do estilo de Larson e de sua música, mas considerando que este era o artista, e esta foi sua história, fica difícil imaginar como o filme poderia ter sido mais adequado e competente em contá-la.

tick, tick...BOOM! / 2021 / Lin-Manuel Miranda

Nível de Satisfação: 7

Categoria C: Entretenimento com senso de vida negativo, mas bem feito

Filmes Parecidos: The Boys in the Band (2020) / Bo Burnham: Inside (2021) / Rent: Os Boêmios (2005) / O Show Deve Continuar (1979) / Torch Song Trilogy (1988) / Fama (1980)

domingo, 21 de novembro de 2021

A Crônica Francesa

Novo filme de Wes Anderson sobre a equipe de um jornal fictício na França (inspirado no The New Yorker) e as histórias que rodeiam a última edição do jornal após a morte de seu editor. É uma espécie de antologia onde as histórias contadas não têm muita relação umas com as outras, exceto pelo fato de se passarem no mesmo universo; são mais crônicas sobre acontecimentos aleatórios e curiosos do que histórias interligadas por um tema, com algo importante a dizer. Como muitos filmes do Wes Anderson, tudo acaba parecendo um grande pretexto pra ele exercitar seu estilo visual, criar aqueles equadramentos super elaborados que parecem mais destinados a uma galeria de arte do que a uma sala de cinema. Eu poderia praticamente copiar e colar meus comentários sobre O Grande Hotel Budapeste que eles se aplicariam quase perfeitamente a este filme.

The French Dispatch / 2021 / Wes Anderson

Nível de Satisfação: 4

Categoria D: Não Idealismo ("filme de autor" / exercício de estilo)

Filmes Parecidos: O Grande Hotel Budapeste (2014) / O Fantástico Sr. Raposo (2009) / A Vida Marinha com Steve Zissou (2004) / Annette (2021)

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ghostbusters: Mais Além

Ignorando o reboot de 2016, Mais Além dá sequência aos dois Ghostbusters dos anos 80 dirigidos por Ivan Reitman, pai de Jason Reitman, que é quem dirige este aqui. O filme se passa no interior de Oklahoma nos dias de hoje, e mostra a neta de um dos Caça-Fantasmas originais descobrindo os segredos do falecido avô e liberando alguns fantasmas no processo.

Achei que seria pior, pois um dos trailers era estranhamente contemplativo, e me deu a impressão de que o filme poderia virar um drama melancólico sobre jovens desajustados. Felizmente o filme não vai por essa linha e continua apostando na diversão, o que não quer dizer que ele abrace por completo o espírito dos filmes antigos também. Alguns personagens, diálogos, e a própria ambientação rural dão um toque mais naturalista pra produção que entra em conflito com o lado do filme que quer criar escapismo e nos transportar pro universo autêntico da franquia (o casal de irmãos até que achei simpático, mas essas personagens mal-humoradas, sem qualquer leveza, como a mãe ou a namoradinha de Trevor, são típicas do cinema de hoje e seriam inconcebíveis no entretenimento do passado, por exemplo). Mas diferente de um filme como Eternos, onde a cineasta não parecia ter mão pra lidar com o gênero, Jason Reitman já se mostra bastante confortável aqui, e executa o filme com uma competência acima da média (até por ser filho de quem é). Mas vindo de filmes como Juno, Amor Sem Escalas, ele acaba trazendo sua sensibilidade mais cínica (e atual) pra história, o que compromete em partes a diversão (isso mesmo levando em conta que Caça-Fantasmas já não era uma comédia plenamente Idealista).

Ghostbusters: Afterlife / 2021 / Jason Reitman

Nível de Satisfação: 6

Categoria C: Entretenimento com valores mistos

Filmes Parecidos: Star Wars: A Ascensão Skywalker (2019) / It - Capítulo 2 (2019) / Stranger Things (2016) / Zumbilândia (2009)

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Alerta Vermelho

Vem sendo divulgada como a produção mais cara da Netflix essa comédia de ação sobre ladrões de arte rivais em busca de 3 ovos de ouro que pertenceram a Cleópatra. O filme começa em ambientes urbanos sofisticados (museus, festas de bilionários) remetendo a filmes como Thomas Crowne - A Arte do Crime, True Lies, mas aos poucos vai se tornando um pouco mais fantasioso, com cenários e situações mais removidas da realidade. Achei legal a proposta de um entretenimento mais leve, tentando emular coisas dos anos 80/90, mas em termos de qualidade, ele acaba se parecendo mais com produções rotineiras da época — do tipo Armadilha com a Catherine Zeta-Jones — do que com os grandes blockbusters que sobreviveram ao teste do tempo (como Indiana Jones), aos quais ele faz diversas referências. Funciona como um bom passatempo pra quem quiser uma diversão despretensiosa... Eu como gosto de diversões pretensiosas (pelo menos em talento e criatividade, se não em atitude) achei apenas regular.

Red Notice / 2021 / Rawson Marshall Thurber

Nível de Satisfação: 6

Categoria B: Idealismo sem muita originalidade ou ambição artística

Filmes Parecidos: Armadilha (1999) / Thomas Crowne - A Arte do Crime (1999) / True Lies (1994) / A Lenda do Tesouro Perdido (2004) / Onze Homens e um Segredo (2001)