segunda-feira, 30 de maio de 2022

A Médium | Crítica

A Médium - cartaz oficial
Terror Tailandês/Sul-Coreano sobre uma equipe de documentaristas que viaja para o interior da Tailândia pra registrar o dia a dia de uma médium local, que estaria possuída por um espírito benigno adorado na comunidade, que passa de mulher pra mulher de uma mesma família ao longo de gerações.

A Médium segue à risca diversos clichês que o terror do século 21 definiu como padrão: o formato found-footage, a trama sobre maldições familiares, o exorcismo obrigatório da garota jovem, a menina-monstro com o cabelo preto cobrindo o rosto que anda feito aranha, etc. O que faz o filme parecer diferente, além da ambientação, é o fato dele ter uma direção mais efetiva que a maioria. A história começa com uma boa apresentação da mitologia particular da história, definindo o contexto para o espectador, e prende a atenção logo de cara por conseguir criar um senso de realismo e veracidade, não só através da fotografia de estilo documental, mas também através da credibilidade das performances — em particular da protagonista Nim, que por ter uma personalidade marcante e não ter cara de atriz, realmente convence como médium. Daí pra frente, é só aguardar as coisas desandarem e virem os sustos.

A trama sofre de alguns problemas comuns do gênero, como uma certa falta de dinamismo (o interesse se concentra mais no grand finale, e até lá nada de muito substancial pode ocorrer) e o fato da protagonista ser guiada por regras místicas meio misteriosas, que deixam o espectador mais como observador da história do que como participante. Mas terror muitas vezes nós medimos pelos "thrills" e emoções que as cenas de suspense conseguem provocar, e nesse sentido A Médium não se sai mal.

The Medium / 2021 /  Banjong Pisanthanakun

Satisfação: 6

Categoria: B

Filmes Parecidos: O Último Exorcismo (2010) / Espíritos 2: Você Nunca Está Sozinho (2007) / Espíritos: A Morte Está ao seu Lado (2004) / A Bruxa de Blair (1999)

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Cannes e Hollywood, amigos tóxicos

Como discuto no texto A Invasão Anti-Idealista, é muito comum o cinema americano ser invadido por pessoas que são contra o que ele representa — haters que se infiltram em certas produções de Hollywood pra deturpá-las e tentar alterar os rumos da cultura.

Pro crédito de Hollywood, o contrário já não é tão comum — você não vê o Michael Bay se infiltrando em filmes franceses independentes pra tentar inserir uma ou outra explosão no meio de discussões existenciais.

Mas há uma fraqueza nos hollywoodianos nesse ponto, que é essa necessidade de obter o reconhecimento dos Anti-Idealistas da Europa, algum tipo de validação moral-artística, que pode ser vista no festival de Cannes todos os anos. Até Tom Cruise, o mais americano dos astros de Hollywood, foi até lá exibir Top Gun: Maverick, um filme que é a antítese do festival.

Cannes é o grande covil do Anti-Idealismo, um lugar onde celebridades bebem champagne e desfilam em roupas glamourosas pra protestar contra o capitalismo e celebrar o que há de mais grotesco no cinema em termos de valores e ideias.

Na atual edição, um dos favoritos à Palma de Ouro é The Triangle of Sadness — um filme que se passa num cruzeiro frequentado por super-ricos, cujo capitão é marxista. "Tudo vai bem, ou quase, até que em uma noite, uma tormenta põe os ricos, arrogantes e gananciosos hóspedes à beira de naufrágio. O que seria o pomposo jantar com o Capitão se torna um "shit show" de vômitos. A tormenta piora e o esgoto da embarcação estoura, espalhando a "m" por todos os lados. O barco é atacado por piratas e afunda... O filme foi várias vezes aplaudido em diversas sequências que mexem com o âmago de uma plateia imersa em uma sociedade de consumo hipócrita, racista, classista e gananciosa." (UOL). 

Até entendo que, no passado, artistas associados ao cinema de entretenimento buscassem um "tapinha nas costas" do mundo de Cannes, do cinema de "arte" (assim como já discuti o fenômeno de cineastas mais alinhados com o cinema europeu quererem reconhecimento no Oscar). Truffaut, por exemplo, ajudou Hitchcock a ser reconhecido como diretor autoral, o que foi algo positivo. Mas o cinema europeu não é mais representado por figuras interessantes como Truffaut, e o festival de Cannes não é mais o festival semi-respeitável que talvez já tenha sido. Não há mais o que lucrar com suas palmas hoje, exceto talvez exposição na mídia (nada contra quem use festivais do tipo pra promover seu trabalho). Mas alguém bem sucedido em Hollywood sair de lá pra buscar aprovação num festival cujo prêmio tem ido sempre pro filme que melhor expressa ódio contra qualquer coisa que remeta à cultura americana, é no mínimo fútil.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Filmes Autorreferenciais e a Descrença na Ficção

Embora filmes autorreferenciais não sejam novidade (nem necessariamente problemáticos), me preocupa um pouco o fato de tanta coisa no cinema hoje ser autorreferencial, da ficção estar sempre tendo que assumir a própria artificialidade pro espectador: Matrix 4 se passa num mundo onde existe uma trilogia MatrixPânico 5 se passa num mundo onde existe uma espécie de franquia Pânico, o live action Tico e Teco: Defensores da Lei se passa nos "bastidores" do desenho Tico e Teco, Nicolas Cage interpreta Nicolas Cage em O Peso do Talento, Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa reconhece a existência de outros Homens-Aranha em outros filmes, etc.

Isso reflete um público que parece ter perdido o fascínio pela ficção, o prazer (ou capacidade) de se deixar transportar para a realidade de um filme (o que não é surpreendente, considerando o declínio na qualidade média dos filmes), e que também está tão acostumado a acompanhar o dia a dia de seus artistas favoritos nas redes sociais, a ler na internet tudo sobre os bastidores de cada produção, que pra ele a magia do cinema se perdeu.

Não há mais uma grande divisão entre artista e espectador, entre espetáculo e bastidores. É como se agora estivéssemos vendo um show de mágica, mas com as luzes acesas, as paredes e cortinas removidas, revelando todos os truques e mecanismos, o mágico usando jeans e uma camiseta casual, e o palco estivesse liberado pra qualquer um subir e dar uma volta.

"O show business mudou e não é mais tratado de uma forma mágica e preciosa. Todo mundo quer saber como os truques são feitos e o que os atores fazem 24 horas por dia e isso meio que tira um pouco da diversão da experiência de ir ao cinema." - Julia Roberts

Tom Cruise é uma figura que chama atenção atualmente por tentar resgatar um pouco do fascínio que o cinema costumava causar no público; não só pelos heróis que interpreta, mas também por ele não se expor demais nas redes sociais, gostar de fazer aparições grandiosas em tapetes vermelhos (chegou pilotando um helicóptero na première de Top Gun: Maverick), etc. Lutar pela experiência em salas de cinema (vs. lançamentos em streaming) também faz parte deste pacote.

Será que estamos passando por uma maturação natural do entretenimento? Que isso é o que o espectador quer de fato consumir? A quantidade enorme de filmes que precisam apelar pra nostalgia pra gerar algum senso de encantamento é um bom sinal de que o que a cultura tem produzido de original não tem suprido as necessidades do público.

Ao mesmo tempo, o público (e os produtores) parecem achar impossível restaurar o encantamento de antes, assim como alguém não consegue se forçar a re-acreditar no Papai Noel (e o equivoco aqui é associar o desejo por esperança e encantamento a ingenuidade, misticismo, não a valores e a funções psicológicas legítimas). Há um certo resgate do nostálgico, mas esse resgate é automaticamente minado por autorreferências e atitudes que buscam "desmistificar" a ficção. (Idealismo Corrompido)

É importante reconhecer o perigo de 2 extremos nessa discussão: por um lado, há o perigo da ingenuidade extrema, como a do telespectador que xinga um ator de novela na rua por achar que se trata de um vilão — essas são as pessoas que não têm um senso mínimo de realismo, de pensamento científico, e enxergam tudo como um fenômeno mágico, sobrenatural, como tribos antigas que interpretavam trovões como mensagens dos deuses.

No outro extremo, existe o perigo do cinismo, da indiferença completa, algo mais próximo do espectador atual, que não enxerga encantamento em nada, que se esforça pra desmistificar tudo o que vê, como alguém que disseca um corpo humano pra provar pra si mesmo que não há nada de especial sobre a vida, que somos apenas um aglomerado vazio de matéria. É a velha (e falsa) dicotomia entre misticismo e materialismo.

Há algo de "religioso" na arte por sua capacidade de exaltar, projetar valores morais, ideais positivos. E assim como a revolução científica causou uma crise na religião na época do Renascimento (levando muitos a concluírem que, junto com o sobrenatural, teriam que abrir mão também dos ideais e de todos os valores associados à fé), é como se a atual geração, ao crescer já tão consciente de todas as engrenagens por trás da produção audiovisual, estivesse vivendo uma crise parecida no entretenimento; uma perda de "fé" na ficção.

Tico e Teco: Defensores da Lei | Crítica

Tico e Teco: Defensores da Lei  - poster
Adaptação live-action da série animada que estreou na TV em 1989. O filme começa mostrando um pouco da história de origem de Tico e Teco — mas não dentro do universo do desenho, e sim nos bastidores, como se eles fossem 2 atores reais em Hollywood que fizeram sucesso nos anos 80/90 estrelando o desenho Tico e Teco e os Defensores da Lei, e depois seguiram caminhos separados. Nos dias de hoje, a dupla acaba se reencontrando (Tico ainda em 2D, mas Teco otimizado para CGI) e tendo que unir forças pra resgatar o amigo Monterey Jack das mãos de traficantes de queijo.

O filme se passa num mundo meio Roger Rabbit onde personagens animados e seres humanos coexistem, e também num universo-compartilhado da animação, que reúne personagens famosos de diversos desenhos numa mesma realidade (não apenas personagens da Disney). Embora não seja uma ideia original (Space Jam: Um Novo Legado fez algo parecido recentemente, assim como Shrek, Detona Ralph etc.) esse é certamente um dos filmes que melhor explorou esse conceito e extraiu da situação as melhores piadas (o diretor Akiva Schaffer é comediante e foi roteirista/diretor no Saturday Night Live por vários anos — experiência que é notada). No medidor de "ideias por minuto" o roteiro tem uma pontuação altíssima, e eu me peguei pausando e voltando o filme várias vezes pra pegar detalhes que passavam muito rápido, como um outdoor ou cartaz cômico aparecendo ao fundo.

É uma comédia pra cinéfilos, pois muitas das piadas envolvem filmes e tiram sarro da indústria do cinema — Hollywood é praticamente a vilã da história, mostrada como uma fábrica de remakes e reboots absurdos (Bebês Velozes e Furiosos está prestes a ser lançado, e Meryl Streep será o Sr. Doubtfire no remake gender-swap de Uma Babá Quase Perfeita) e que agora começou a sequestrar personagens animados do passado e desfigura-los ligeiramente pra driblar leis de direitos autorais e usá-los em produções fajutas, que lucram em cima da similaridade com produções antigas de sucesso. É uma crítica esperta e uma alfinetada muito bem dada na indústria, que poderia ter saído pela culatra, caso Tico e Teco (em si uma adaptação) não fosse tão criativo e engraçado quanto é.

Chip 'n Dale: Rescue Rangers / 2022 / Akiva Schaffer

Satisfação: 8

Categoria: A

Filmes Parecidos: WiFi Ralph: Quebrando a Internet (2018) / Space Jam 2: Um Novo Legado (2021) / Pokémon - Detetive Pikachu (2019) / Uma Cilada para Roger Rabbit (1988)

domingo, 22 de maio de 2022

Top Gun: Maverick | Crítica

Top Gun: Maverick - Crítica
Tom Cruise mais uma vez se prova um herói não só dentro como fora das telas — nem tanto pelos stunts que ele faz sem dublês e CGI, mas por ser uma das únicas figuras do entretenimento que sobreviveram às últimas 2 décadas sem se deixar contaminar pelas influências culturais e tendências estéticas que vieram corroendo o Idealismo do cinema americano.

No começo do filme, há uma cena em que Maverick entra num restaurante aleatório após um acidente aéreo, vestido como um astronauta, e pergunta onde está. "Na Terra", responde um garotinho. A piada pode parecer um pouco forçada, mas é totalmente apropriada, pois Cruise de certa forma vive em outro planeta. E que bom pra nós que ele não pertence à Terra de hoje, e pode nos mostrar esse universo paralelo onde heróis ainda existem, onde habilidade e conquistas são celebradas, não ressentidas, onde diferenças de sexo, cor de pele e idade não são problematizadas, e as pessoas se tratam com base em caráter, desempenho; um universo onde até a bandeira americana ainda pode ser ostentada com orgulho.

Na minha crítica do primeiro filme, apontei alguns elementos que me incomodavam na produção, e é interessante ver como a sequência melhora cada um desses pontos. Falei como o primeiro não caminhava pra um objetivo claro, e a missão final surgia acidentalmente, desconectada do resto da história. Aqui, a missão é estabelecida desde o começo, e todo o filme é uma construção em direção a ela. Falei como as cenas de ação eram confusas, e como nunca víamos claramente o que Cruise tinha feito de tão impressionante. Aqui é tudo muito mais visível, há diversas manobras e voos memoráveis (como a sequência de abertura, ou a cena onde Cruise rouba um avião pra provar pros alunos que sua estratégia é possível) e o filme está sempre usando relógios, gráficos, mapas, simulações 3D, pra situar o espectador e fazê-lo entender o que está acontecendo — quando chega na hora da missão, temos uma noção muito clara do que os pilotos devem fazer, quais serão os obstáculos, os momentos críticos, o que representará uma vitória ou situação de perigo etc.

Não é um filme de grandes ousadias, ideias originais. Em vez de um inovador, Cruise é mais como um artesão dedicado, que vem aperfeiçoando uma mesma linha de produtos ao longo de décadas, e que agora entrega a versão suprema deste produto, com toda a bagagem e experiência que adquiriu ao longo do caminho (em alguns aspectos, o filme lembra mais Missão: Impossível - Efeito Fallout do que o Top Gun antigo).

Maverick também melhorou como personagem. Em vez do garoto imaturo, preocupado demais em superar os outros, ele surge aqui com a serenidade de alguém que já não questiona mais as próprias habilidades, e não precisa mais se vangloriar na frente de ninguém. E embora ele já comece o filme como o melhor piloto e não tenha muitos obstáculos nesta esfera, sua missão agora é ser um professor/mentor que precisa ganhar a confiança e inspirar alunos a superarem os próprios limites, e é deste arco que vem a satisfação emocional da história.

O filme é 100% fiel ao espírito do original, e sem parecer um desses remakes/sequências em alta agora, que se sustentam apenas com base em nostalgia. Alguém que nunca viu o original e não tem nenhuma memória afetiva associada ao filme, deve ter uma sessão empolgante, satisfatória, e sair até sentindo que entendeu o que se passou no filme de 86 — ao contrário de muitas franquias atuais, que te deixam confusos mesmo lançando novos filmes a cada 2 anos.

Top Gun: Maverick / 2022 / Joseph Kosinski

Satisfação: 10

Categoria: A

Filmes Parecidos: Missão: Impossível - Efeito Fallout (2018) / 007 - Operação Skyfall (2012)

sábado, 21 de maio de 2022

O Peso do Talento | Crítica

O Peso do Talento - Crítica
Comédia com Nicolas Cage onde ele interpreta a si mesmo — o ex-astro de ação de A Outra Face e Con Air, que agora luta pra conseguir bons papéis em Hollywood. Prestes a se aposentar, ele recebe uma oferta de 1 milhão de dólares pra ir à festa de aniversário de Javi, um fã bilionário na Espanha que descobrimos estar envolvido com traficantes, políticos corruptos, o que coloca Cage no meio de uma trama perigosa, reminiscente de seus filmes.

Há algo que me incomoda levemente nessa nova popularidade de Cage, pois muitas pessoas passaram a cultuá-lo como uma espécie de Chuck Norris moderno; não com uma atitude real de admiração, e sim com um misto de simpatia e deboche, baseado em guilty pleasure. Mas o filme tem uma atitude positiva, e consegue brincar com os aspectos duvidosos da carreira de Cage, sem diminuí-lo como personalidade.

Cage está tão bem e à vontade no papel que dá a impressão que sua fase decadente no cinema foi apenas um pequeno deslize, mas que ele nunca perdeu o potencial pra estrelar grandes filmes de sucesso. A história é divertida e Cage tem uma boa química com Pedro Pascal — mas toda a trama central envolvendo os traficantes é um pouco derivada, e não serve muito pra explorar a sacada principal do filme, que é a ideia de Nicolas Cage interpretando a si mesmo. A premissa de Cage vivendo uma aventura parecida com a de seus filmes antigos seria satisfatória caso o conflito inicial do personagem estivesse relacionado a isso — se a vida dele fosse monótona, sem empolgação, se seu trabalho como ator tivesse se tornado tedioso, ou se ele fosse inseguro por se sentir uma farsa (um herói corajoso no cinema, mas frágil e medroso na vida real), etc. Mas o conflito inicial de Cage não era esse, e sim o fato dele não ser mais valorizado na indústria. Então uma trama melhor seria provavelmente uma que o colocasse em confronto direto com essas questões — com atores mais jovens, por exemplo, que "tomaram" seu lugar, ou com outros astros em situações parecidas como Bruce Willis, etc.

Ainda assim o filme é uma boa diversão, especialmente pra cinéfilos que pegarão as diversas referências a filmes e piadas internas sobre a indústria.

The Unbearable Weight of Massive Talent / 2022 / Tom Gormican

Satisfação: 6

Categoria A/B: Idealismo com alguns toques de Idealismo Corrompido (um ponto positivo é que o filme é uma comédia de fato, não um filme de aventura que "ri de si mesmo" tipo Cidade Perdida, etc.).

Filmes Parecidos: A Espiã Que Sabia de Menos (2015) / A Entrevista (2014) / Zoolander (2001)

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo | Crítica

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo cartaz
Drama de ação/sci-fi misturado com comédia produzido pela A24 sobre uma imigrante chinesa (Michelle Yeoh), mãe de família e dona de uma lavanderia, que é jogada no meio de uma aventura insana através de universos paralelos, que unem o conceito de multiverso da Marvel a ideias derivadas de Matrix. Já se tornou um dos mais aclamados do ano, entrando rapidamente para o Top 250 do IMDb e batendo recordes de avaliação no Letterboxd.

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(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- O filme começa com temas Naturalistas: pessoas comuns com problemas financeiros, foco em questões sociais (dramas LGBTQ, etc.). Depois, quando há a reviravolta do multiverso, o filme ganha um ar mais escapista/comercial, mas fica claro que ainda não se trata de uma aventura que se leva a sério, tipo Matrix, e sim de um desses filmes que apresentam a aventura num tom irônico, feitos por pessoas que no fundo consideram filmes de ação banais, e estão mais interessadas no drama intimista, na mensagem social etc. Numa ficção-científica "pra valer", haveria uma tentativa bem maior de justificar cientificamente o multiverso, de convencer o espectador que aquilo está acontecendo. Aqui, a aventura é propositalmente surreal e cômica. (Idealismo Corrompido)

- Regras meio confusas: o que acontece a longo prazo com o corpo "deixado" pra trás num universo, ou com a consciência/memória do novo corpo possuído?

- As cenas de luta são muito bem coreografadas e filmadas — só não empolgam como num filme de ação tradicional pois não há heróis de verdade, uma situação crível, etc. Está mais pra um filme do Jackie Chan, mas que não se assume comédia também (essa linha borrada entre seriedade e autoparódia é típica do "Idealismo Corrompido").

- O filme tem dezenas de ideias por minuto, é super criativo, mas não pelo conceito do multiverso em si (essas distorções da realidade já são o feijão com arroz do cinema há 20 anos), mas sim pela maneira como ele explora a ideia, levando tudo ao extremo, e principalmente pelo estilo frenético de direção: pela edição acelerada, caótica, cheia de efeitos, pelo fluxo ininterrupto de ideias arbitrárias e surpreendentes, que te dão a sensação de estar vendo 2 horas de vídeos do TikTok sob o efeito de LSD (às vezes parece que o filme todo é um pretexto pra esse tipo de montagem).

- É interessante a ideia da Jobu Tupaki ter se tornado vilã por perder a noção de realidade objetiva, e o filme entender que niilismo e a relativização da realidade podem ser apenas racionalizações pra aliviar frustrações pessoais, sentimentos de culpa, etc. Só que o filme não é "pró-objetividade" como pode parecer: a narrativa é completamente anárquica e os diretores trabalham o tempo todo pra desintegrar o pensamento do espectador.

- Anti-heróis: a protagonista é a versão menos excepcional de Evelyn em todos os universos, a única que não é boa em nada, o que parece torná-la especial na trama (tipo a protagonista de Encanto).

- Como o filme é uma celebração do caos, da aleatoriedade, ele não precisa construir um universo coerente, ter preocupação com sentido, regras. Portanto é muito mais fácil do que escrever uma trama de ficção-científica de verdade, que requer uma integração inteligente de vários conceitos. Aqui vale tudo, e contradições são sempre bem vindas. Os diretores usam o mesmo truque do Christopher Nolan de certa forma — criam um universo paradoxal, desorientam a plateia, mas no meio do nonsense, inserem uma ou outra conexão lógica, detalhes mínimos que percebemos de relance e que têm algum sentido, criando a ilusão de que os cineastas pensaram em tudo meticulosamente, que o filme inteiro é feito de conexões geniais e simbologias que vão além do nosso QI. (Emoções Irracionais / Pseudo-Sofisticação)

- Com tanta coisa acontecendo, claro que de vez em quando acabam surgindo ideias engraçadas, boas sacadas (eu ri do plug anal, por exemplo). Mas assim como vídeos do TikTok, é tudo meio arbitrário e evapora em segundos.

- No começo dá a impressão que as viagens pelo multiverso serão apenas um trecho do filme, e que em algum momento ele voltará pra uma linha do tempo mais sólida (quando começa a Parte 2, por exemplo). Mas o caos nunca termina...

- O Senso de Vida negativo do filme é resumido bem na cena das pedras: o mundo é incompreensível, somos todos insignificantes, apenas pedaços de m****, portanto, resta sermos gentis uns com os outros.

- SPOILER: E tudo é sobre a "cura emocional" no fim (recomendo fortemente que leiam meu texto 1999 e o Declínio da Objetividade). A aventura, a ficção-científica, a salvação do mundo, tudo é apenas um pano de fundo, uma metáfora pra discutir o drama da garota lésbica que se sente mal pelo fato da mãe não aceitá-la 100%. E o conflito dessa vez nem é tão extremo, grandes traumas ou humilhações. Pelo que é mostrado, a filha até que se dá bem com a mãe, o avô não parece particularmente mau ou preconceituoso. É tudo baseado num certo incômodo; a mãe aceita a filha uns 80%, mas os 20% que faltam é o que provoca todo o caos. Em vez do "fim do mundo" ocorrer por causa de meteoros, tsunamis, invasões alienígenas como no cinema do passado, agora é um certo desconforto emocional que ameaça todo o tecido da realidade.

- Do lado positivo, o filme é incrivelmente bem realizado, feito com uma paixão e uma dedicação que são incomuns hoje. Não é um filme tão inovador quanto alguns podem pensar, porém ele sintetiza as tendências e o momento atual da cultura de forma memorável, e acaba se tornando um filme-referência, uma espécie de "clássico" instantâneo pro cinéfilo padrão.

- A performance de Michelle Yeoh é realmente estelar: ela consegue ser carismática como mãe, como heroína, como mulher comum, como estrela de Hollywood, convence em momentos dramáticos, cômicos, em cenas de ação etc. Adorei também ver o Ke Huy Quan, que faz o marido dela, e era o garotinho de Indiana Jones e o Templo da Perdição.

- A cena final é esperta, mas é um daqueles truques pra dar a impressão que estava tudo conectado, que tudo fazia sentido, quando na prática não havia essa racionalidade toda na construção da trama.

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Everything Everywhere All at Once / 2022 / Dan Kwan, Daniel Scheinert

Satisfação: 5

Categoria C: Idealismo Corrompido / toques de Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Corra, Lola, Corra (1998) / Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) / Quero Ser John Malkovich (1999) / Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) / Minari (2020) / Matrix (1999) / Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010)

terça-feira, 17 de maio de 2022

De Volta ao Baile | Crítica

De Volta ao Baile poster crítica
Comédia da Netflix onde Rebel Wilson interpreta uma cheerleader que sonha em se tornar a rainha do baile (isso em 2002), mas sofre um acidente durante uma apresentação e entra em coma. Vinte anos depois, ela acorda e decide voltar pra finalizar o high school, porém se depara com uma cultura totalmente diferente, onde cheerleaders não são mais populares e ninguém mais elege rainhas do baile.

O filme zomba da cultura woke com uma naturalidade que eu não tinha visto ainda no cinema, e tem algumas sacadas ótimas, ao mostrar por exemplo a hipocrisia de muitos dos "progressistas" de hoje, que no fundo são as mesmas mean girls do passado, apenas escondidas por trás de uma roupagem "socialmente consciente" (ter o visual certo pra ganhar poder e status sempre foi o dom dessas pessoas, e não faria sentido elas ficarem pra trás agora!). Outro toque interessante é a diretora do colégio, que tinha estudado com a protagonista no passado, porém não era popular como ela, e cresceu traumatizada. Agora ela é quem está no comando do colégio (assim como muitos líderes da cultura de hoje fazem parte dessa geração), e promove conscientemente um ambiente sem competições, um sistema onde não há vencedores — pois sem vencedores, não há perdedores também!

O filme parte de uma ótima premissa e tinha uma oportunidade incrível nas mãos, mas que infelizmente é desperdiçada. Primeiro porque a qualidade do roteiro e do humor em geral é baixa, mesmo quando comparada a de besteiróis dos anos 90/2000 (outro dia estava passando Garota Veneno com o Rob Schneider na televisão, um filme que era considerado totalmente trash na época, e revendo eu fiquei meio surpreso com a eficácia do humor, do roteiro, com o talento dos atores, que acabam fazendo filmes como Senior Year parecerem amadores — o que não é surpresa, afinal bons comediantes desse gênero não têm como florescer em uma cultura como a atual).

Mas o maior problema é que, apesar do filme ironizar a cultura woke, há vários toques de wokismo presentes no próprio filme, e ele não tem coragem/consistência o suficiente pra levar a mensagem até o fim — no terceiro ato, acaba cedendo ao discurso progressista.

Isso ocorre em partes porque o filme não tem clareza sobre as ideias/valores com os quais está lidando. Acaba caracterizando o passado (anos 90/2000) como uma época de pessoas promíscuas, irresponsáveis, que só pensavam em sexo e falavam coisas ofensivas, e os tempos atuais como tempos puritanos, onde as pessoas são mais limitadas, regradas, porém mais respeitosas e inclusivas. Ao entender o conflito desta forma superficial e equivocada, não há como o filme criticar a coisa certa, nem ter uma mensagem de impacto (daí a importância de uma base intelectual sólida).

Se De Volta ao Baile tivesse sido um filme do nível de um As Patricinhas de Beverly Hills ou de um Meninas Malvadas, e trazendo uma crítica consistente à cultura atual, teria sido um verdadeiro marco. Não foi o que aconteceu, mas quem sabe ele não ajude a abrir portas para produções que virão no futuro.

Senior Year / 2022 / Alex Hardcastle

Satisfação: 5

Categoria B/C: Idealismo mal realizado; toques Anti-Idealistas

Filmes Parecidos: Megarrromântico (2019) / A Festa de Formatura (2020) / Fora de Série (2019)

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Top Gun: Ases Indomáveis | Crítica

Top Gun Ases Indomáveis Crítica Poster
(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- As imagens iniciais no porta-aviões junto com a trilha sonora criam um dos momentos mais marcantes do filme. Há uma estética de videoclipe/propaganda que tem muito a ver com a tendência da época de diretores da publicidade (como Tony Scott, e seu irmão Ridley) migrarem para o cinema, levando junto esse visual mais estiloso e caprichado de comerciais, que davam a impressão de cada tomada ser um packshot cuidadosamente planejado.

- A ação inicial é um pouco confusa. Não sabemos direito quem são esses inimigos nos MiG-28, qual o propósito dessa batalha... Também não fica tão claro por que o Cougar passou mal, e por que o Tom Cruise (Maverick) voltar e simplesmente voar ao lado dele era a coisa necessária a ser feita.

- Maverick é um tipo de protagonista que vemos pouco hoje em dia. Ele é retratado como o melhor no que faz, é confiante, ambicioso, alegre, além de ser interpretado por um astro à altura do papel. Mas como discuto na postagem O Que Torna um Personagem Gostável?, é preciso que haja um certo equilíbrio entre virtudes/forças, e vulnerabilidades, características humanas que tornem o personagem real, dificuldades que ele precise superar (até pra trama ser interessante, não ser tudo muito fácil). No cinema de hoje, os heróis pecam sempre por não terem virtudes o suficiente, pelo foco ser todo nas fraquezas, etc. Já no caso de Top Gun, vejo um desequilíbrio pro outro lado: o personagem é tão bom em tudo, tão imbatível e convencido disso, que se torna uma figura distante, um ideal platônico.

- A cantada de Maverick pra Kelly McGillis (Charlie) no bar eu acho meio "cringe", em partes pelo excesso de confiança que discuti acima, mas também porque as falas são meio tolas.

- É divertida a reviravolta da Charlie ser a instrutora, alguém acima dele. Há algo de Randiano em Maverick e no tipo de romance apresentado aqui (a atração por habilidade, virtude, que é algo positivo), mas há também uma qualidade que acho questionável: Maverick parece mais motivado por derrotar os outros do que por conquistar algo positivo; ele parece adorar ver os outros se curvando diante de sua superioridade, não só como piloto, mas também nas relações pessoais. Reparem como no começo, a atitude entre Maverick e McGillis não é de atração/admiração mútua, e sim de rivalidade, como se um estivesse competindo pra ver quem é o mais poderoso, quem irá fazer o outro "ceder" primeiro; como se o primeiro a admitir algum sentimento no contexto romântico fosse o derrotado, e o outro fosse o vencedor.

- As cenas de ação são meio confusas. Raramente entendemos onde os aviões estão em relação aos outros, o que cada um está tentando fazer... O que vemos em geral são closes nos rostos dos pilotos (que estão semi-cobertos por máscaras de oxigênio, dificultando a identificação) intercalados por imagens dos aviões fazendo manobras, que apesar de bem filmadas, não criam sequências lógicas e contínuas de ação. Ficamos só com uma noção vaga e imprecisa do que está acontecendo.

- Essa falta de objetividade prejudica inclusive o herói, pois quase nunca vemos Maverick fazendo algo de fato impressionante. Só sabemos que ele é o melhor pois depois dos voos alguém sempre comenta: "esta foi a melhor manobra que já vi!" ou coisa do tipo.

- Alguns dos pontos fracos do filme têm muito a ver com essa influência da publicidade, que é uma mídia onde imagens contam mais que conteúdo, narrativa, etc. O roteiro de Top Gun foi baseado numa matéria de revista, e a trama é tão simples que poderia ser resumida num videoclipe. O filme se tornou icônico mais pelo visual, pela música, pela persona de Cruise, do que por ser um filme realmente incrível. Dá pra traçar alguns paralelos com Flashdance (também dirigido por um publicitário, com Giorgio Moroder na trilha, e algumas similaridades de trama). A diferença é que Flashdance tem sequências de música/dança realmente memoráveis, e num musical isso é o que realmente conta. Já Top Gun não tem o equivalente em termos de Set Pieces de ação.

- A cena do beijo é um dos pontos altos do filme (Charlie perseguindo Maverick de carro pelas ruas; depois a discussão ao som de "Take My Breath Away", que merecidamente levou o Oscar).

- Maverick tem poucos conflitos sérios no filme, o que torna a história menos envolvente. Desde o começo já sabemos que ele é o melhor; a única coisa que falta é o resto da equipe perceber e admitir isso. O maior drama que ele enfrenta é quando o amigo morre, e ele fica abalado emocionalmente por uns dias. Mas não é um desafio pessoal interessante, um grande conflito de valores.

- Outra questão de roteiro é que o treinamento todo dos pilotos no Top Gun não era um preparativo para alguma missão ou guerra importante no futuro que gerasse expectativa. A missão que surge no final vem do nada, como uma reviravolta totalmente acidental, desconectada do resto da história.

- Daí temos mais uma dessas sequências de ação vagas, confusas... Pra criar algum conflito, Maverick começa a ficar meio desacordado, sem muita explicação, e depois recupera a força olhando pra foto do amigo que morreu — um momento meio "Use the Force, Luke!" que mais uma vez não mostra direito uma real habilidade/superação da parte dele. A grande satisfação no fundo é depois no porta-aviões, quando o rival (Val Kilmer) dá o braço a torcer e aceita que Maverick é o melhor piloto.

CONCLUSÃO: Vale pela trilha sonora, pelo visual, e pra ver Cruise em plena forma, mas o filme em si não é tão sofisticado quanto outros sucessos deste período

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Top Gun / 1986 / Tony Scott

Satisfação: 7

Categoria A/B: Idealismo com roteiro regular e alguns detalhes questionáveis na caracterização do herói

O Homem do Norte | Crítica

O Homem do Norte Poster Crítica(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- Há um tom grave/sombrio forçado a todo momento (na fotografia, no tom de voz dos atores, etc.) me lembrando o caso do Batman (2022).

- O filme romantiza uma civilização horrível; personagens selvagens, uma cultura que gira ao redor de violência, guerra. E em vez de focar em uma exceção — em um personagem mais nobre no meio da barbárie — o protagonista é igualmente animalesco (ótimo pro roteirista, que assim precisa apenas escrever uns gritos de guerra e umas falas funcionais a cada tantas páginas, que é o máximo de caracterização que o personagem requer).

- Pelo menos não é um filme tão tedioso e sem trama quanto O Farol. Depois que o pai de Amleth é morto e ele escapa, fica claro qual o propósito do personagem e o direcionamento da história.

- O filme é claramente fundado num fascínio pelo primitivo, pelo homem em seu estado bruto, livre de civilidade, razão, que é típico da extrema-direita atual — que no fim lembra os hippies e a esquerda do passado; só que nos anos 60, eles pareciam querer voltar às "raízes" pra entrar em contato com a consciência, com um lado espiritual/transcendental, enquanto aqui, isso é um meio pra entrar em contato com a matéria, o lado físico/animal, uma espécie de instinto masculino perdido.

- A visão de mundo mística/determinista da história acaba tornando a narrativa meio tediosa, pois o protagonista não tem livre-arbítrio, não pode alterar seu destino. A profecia diz que ele só poderá matar o inimigo num dia e num local específico. Então até lá, ele não tem muito o que fazer. E as coisas que ele faz são movidas por forças sobrenaturais (como a escolha da espada), não por valores pessoais, escolhas inteligentes que tragam algum insight útil para o espectador.

- Não há nada de positivo pra aguardar na história, apenas um banho de sangue. Nem há conflitos morais envolventes (como em O Último Duelo), lições a serem tiradas, etc. É só uma história de vingança das mais básicas e previsíveis, cujo propósito final é mostrar violência.

- Se Amleth, disfarçado de escravo, começasse a ter uma relação mais próxima com o tio, haveria certo suspense, pois ficaríamos interessados em saber quando o tio descobriria a verdade, haveria um desenvolvimento melhor do vilão etc. Mas o tio é uma figura distante, mal aproveitada, que mal cria um senso de ameaça ou um desejo no público de vê-lo derrotado (longe de um Joaquin Phoenix em Gladiador). 

- SPOILERS: Quando Amleth revela sua identidade pra mãe (Nicole Kidman), as reações são totalmente artificiais. Robert Eggers é desses diretores que colocam estilo acima de conteúdo, de emoção — quer tanto parecer diferentão e autoral que destrói a credibilidade de certas cenas.

- Há um único momento onde o protagonista questiona seu estilo de vida, sua motivação por ódio/vingança, e considera um futuro melhor. Mas isso dura pouco: logo depois ele já volta pra batalha, pra cumprir seu "destino", "honrar seu sangue", etc.

- SPOILER: Outro momento artificial que prejudica o drama: quando Amleth mata a Nicole Kidman e o garotinho, e o tio mal expressa qualquer sentimento ao entrar no quarto. Combina calmamente um duelo pra mais tarde, à beira do vulcão (que não parece fazer muito sentido, mas pelo menos o filme termina numa locação estilosa).

- SPOILER: Apesar de Amleth morrer, o filme termina num tom positivo, pois a Anya Taylor-Joy se salva grávida de 2 filhos dele, e ele termina cavalgando para os céus de forma heroica. Um "final feliz" que só é possível através do misticismo/tribalismo dessa vertente da direita, que acredita no sacrifício e no sofrimento nesta vida para a salvação numa próxima, que se preocupa mais com linhagem, descendência, "sangue", do que com vidas individuais.

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The Northman / 2022 / Robert Eggers

Satisfação: 4

Categoria C: Entretenimento com valores negativos

Filmes Parecidos: O Cavaleiro Verde (2021) / Game of Thrones (2011) / O Regresso (2015) / 300 (2006) / Batman (2022)

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Diagramas complementares

Quando reflito sobre arte e cinema, é comum eu imaginar diagramas pra organizar certas ideias, e embora alguns não sejam centrais para minhas teorias, acho que eles servem como metáforas e ajudam a esclarecer certos pontos.

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Mapa de Valores

Este Mapa de Valores é um conceito que concebi há muitos anos, quando estava começando a decifrar os 4 Pilares do Idealismo. Se tornou uma ferramenta valiosa para eu refletir sobre os valores sendo projetados numa história e entender também a importância dos Contrastes. Antigamente me intrigava o fato de muitos de meus filmes favoritos terem sentimentos contrastantes na narrativa, e conseguirem fazer isto sem prejudicar a positividade geral da experiência: 2001 me parecia um dos filmes mais inteligentes e lógicos que já tinha visto, mas ao mesmo tempo era um dos mais complexos e difíceis de entender. E.T. era um dos mais esperançosos, mas lidava com temas de morte/perda de maneira incrivelmente intensa, etc. Não acho que todos os filmes precisem ter todos os valores positivos e todos os contrastes acentuados. Mas olhar para o gráfico me ajuda a entender o que pode estar faltando em uma história, dá ideias de como torná-la mais impactante, além de claro, de dar uma compreensão mais clara do que é o Idealismo e dos valores que estão em sua base.

(Pra visualizar em tamanho grande, em alguns navegadores você precisa clicar na imagem, e depois que ela abrir, clicar de novo sobre ela com o botão direito e pedir para abrí-la numa aba nova).


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Paradigma Idealista

Este gráfico reúne alguns dos princípios mais importantes discutidos aqui no blog em um único paradigma; desde o Princípio da Ascensão, até o conceito de Set Piece/Grandes Cenas, Motivação da Plateia, etc. Ele se aplica a todo entretenimento temporal planejado: artes como cinema, teatro, música, literatura, até shows/concertos e outras formas de espetáculo. Claro que o gráfico não é uma estrutura rígida; não precisa haver 3 instantes de "satisfação concentrada" especificamente (em alguns casos podem ser menos, em outros podem ser mais) e eles não precisam estar nessas posições. O "gancho" pode ocorrer junto com a apresentação, ou um pouco depois. Depois do clímax, a obra não precisa acabar imediatamente; é adequado que haja um trecho mais calmo após o clímax para concluir a experiência — mas a estrutura geral precisa ser respeitada para que ela seja satisfatória (tem que haver uma motivação inicial, assim como momentos de "satisfação concentrada", um final satisfatório, etc.). Cada arte/mídia proporcionará esta experiência de uma forma particular. Na música, a apresentação do "universo" consistirá de certas harmonias, padrões sonoros, instrumentos, e também da voz do artista (caso não seja música instrumental, e o universo tenha também um "personagem"); o gancho consistirá de alguma melodia particularmente interessante, os "picos de satisfação" serão os refrãos (a letra e a performance do artista podem gerar interesse e picos de satisfação também, desde que não estejam desconectadas da motivação principal, que deve ser musical/melódica). Já no cinema, precisa haver uma história, uma narrativa que engaje o espectador intelectualmente — o "gancho" será algum conflito/desequilíbrio surgindo no universo do personagem, que o fará partir em busca de alguma solução/resposta/conquista; os "picos de satisfação" serão grandes cenas, eventos memoráveis, etc. (elementos secundários como efeitos especiais ou aparições de atores famosos podem gerar picos de satisfação, mas, mais uma vez, a motivação fundamental deve surgir da narrativa, do interesse na história).



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Um esquema visual que acho interessante é este que mostra a diferença entre filmes que seguem a Primazia do Espectador, e filmes que sacrificam o prazer do espectador em nome da expressão do autor ou de outras "causas":


Na literatura objetivista, por exemplo, existe uma confusão comum que este mapa ajuda a esclarecer: a essência do Naturalismo, na visão de muitas pessoas, é o retrato do homem como um ser determinado, sem livre-arbítrio, vítima das circunstâncias. Porém isso nos levaria a colocar uma história como a de Anna Karenina na mesma categoria de uma história como a de filmes como Roma ou Nomadland, por exemplo — o que me parece um erro, e cria a impressão de que essas classificações não correspondem muito à realidade. Já com este diagrama, fica fácil de entender que Nomadland estaria no grupo inferior, junto com o cinema não comercial (o Naturalismo que retrata pessoas comuns, que não tem trama, que é motivado por mensagens sociais), e que Anna Karenina estaria no grupo de cima, como uma forma de Idealismo Crítico ou um entretenimento temperado com valores negativos (eu nunca li o livro Anna Karenina, então pode até ser que eu esteja enganado e na prática seja uma história tão Naturalista quanto Roma/Nomadland — mas duvido que seja o caso pelo que conheço das versões para o cinema, que têm sempre uma narrativa forte, focam em personagens glamourosos, eventos dramáticos, etc.).

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Outro diagrama interessante é este onde pegamos os conceitos de Aristóteles de Ethos, Logos e Pathos (usados na Retórica) e transpomos para o mundo da arte — afinal, o processo de impactar o ouvinte/espectador é similar nos dois universos: os melhores resultados ocorrem sempre quando um orador/artista respeitável consegue racionalmente provocar sentimentos positivos que motivam o espectador.



Nada disso é inédito aqui, e eu sempre enfatizei a importância do talento, da admiração pelo artista, etc. Mas esta é uma forma ligeiramente diferente de enxergar a relação entre esses elementos, pois ela separa de maneira mais clara os sentimentos que são voltados para o artista (Ethos) dos sentimentos que são voltados para o conteúdo da obra (Pathos). Ethos não seria um "5º Pilar do Idealismo", afinal, os critérios que teríamos que usar para avaliar o artista/orador ainda seriam derivados dos 4 Pilares (autoestima, benevolência, etc.). No fim, apenas os 4 elementos precisam ser estimulados na consciência do espectador para obtermos o efeito máximo. Nos melhores casos, os sentimentos terão sido estimulados tanto por nossa avaliação do artista quanto pela mensagem/história/personagens — mas em casos onde existe um desequilíbrio entre estilo e conteúdo, é útil ter um diagrama como este para identificarmos melhor onde está o problema.

Com base nessa organização, fica fácil entender também por que cada "inimigo" do entretenimento que discuto no blog (como o do "herói envergonhado", por exemplo) é um inimigo de fato — é porque são coisas que ferem diretamente alguma virtude ou princípio básico do Idealismo:




quinta-feira, 12 de maio de 2022

Podcast Objetivismo Brasil

Ontem bati um papo sobre cinema com o Matheus Pacini e o Ricardo Birck do canal Objetivismo Brasil. Ainda não consigo me expressar direito nesse formato de "live", e muitos dos exemplos / explicações acabam ficando incompletos, mas é um exercício legal que eu gostaria de fazer com mais frequência.


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura | Crítica

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura Poster Oficial(Os comentários a seguir foram baseados nas notas feitas durante a sessão.)

- Anticlimático (como sempre) o filme já começar no meio de uma cena de ação exagerada, entregando todos os efeitos especiais, atropelando o Princípio da Ascensão logo de cara.

- Elizabeth Olsen (Wanda) é uma presença interessante — a atuação dela parece mais viva, menos enlatada que o normal nesse tipo de filme. Mas é chato ela ser mais poderosa que o Doutor Estranho. Nunca entendo nos filmes da Marvel quem é de fato o mais poderoso. A cada filme eles parecem inventar que é um novo personagem (geralmente não o protagonista).

- O filme parece supor que o espectador assistiu Wandavision e entende toda a backstory da vilã; não se esforça pra estabelecer o contexto dramático.

- A história é apenas mais uma variação tediosa da busca pelo artefato mágico que irá destruir o vilão. E a trama é bagunçada... A cada 5 minutos eles vão apresentando novos poderes, feitiços, obstáculos, regras, mundos, soluções... Não há um conceito central claro, interessante.

- E o filme se passa num daqueles universos líquidos, flutuantes, onde nada é real, nada tem consequências irreversíveis, tudo é possível, e, portanto, ninguém na plateia liga pra nada que acontece.

- SPOILER: Quando apareceram os Illuminati, foi o momento em que a plateia mais vibrou o filme inteiro — mas vejam como isso nada tem a ver com méritos do roteiro, com a qualidade desta história em particular, e sim com táticas fáceis de fan service. (Eu só reconheci o Professor Xavier; no caso dos outros personagens, nem entendi qual foi a surpresa.)

- Como de costume, há uma relativização do caráter de heróis e vilões... Na conversa com os Illuminati, passamos a considerar que o Doutor Estranho é que é uma ameaça maior para o mundo, e não a vilã — que por sinal já não é uma vilã típica, e sim a Wanda, uma heroína transformada aqui em antagonista. (Como se não bastasse, mais pra frente temos um confronto entre Doutor Estranho e uma outra versão dele mesmo!)

- SPOILER: O filme fez o público vibrar na cena dos Illuminati, mas minutos depois mata todos eles! Tudo que acontece na história é fútil, efêmero... Ninguém nem lamenta as mortes, pois sabemos que com o Multiverso, daqui a pouco estarão todos vivos de novo. 

- O tal do Livro de Vishanti foi estabelecido com um dos elementos mais importantes da história — mas num piscar de olhos a Wanda destrói o livro, e o filme continua como se nada tivesse acontecido.

- 13 anos depois de A Origem, e 23 anos depois de Matrix, o filme ainda parece achar que essas distorções da realidade objetiva são originais, "mind bending". Mas é um conceito já desgastado, drenado de qualquer frescor. Bons roteiristas (como os de Black Mirror) ainda conseguem usar a ideia de formas surpreendentes. Mas aqui, quando você vê ideias tolas como a do Doutor Estranho extraindo notas musicais da partitura pra usá-las como armas, você sabe que a tendência já chegou no fim da linha.

- Não só Wanda é mais poderosa que o Doutor Estranho, como no fim parece que até a novata da Chavez é mais poderosa que ele. Tanto que ela é quem chega pra enfrentar Wanda na batalha final (claro, quem pode ser mais poderoso que a latina que tem cara de chinesa e é filha de um casal lésbico?). Doutor Estranho quase não é o protagonista do filme. Wanda tem mais presença que ele, e um arco dramático mais marcante.

- SPOILER: E lógico que o que derrota a Wanda não é um golpe habilidoso, uma estratégia inteligente no mundo externo, e sim a "cura emocional", o fato dela se encontrar com os filhos. (No texto 1999 e o Declínio da Objetividade eu discuto a ligação entre todos esses pontos; desde a liquidez do universo até este foco em soluções emocionais).

- No último Batman, falei da atual tendência de heróis celibatários, que sacrificam a vida romântica e decidem se afastar da pessoa amada no fim... Temos mais um exemplo aqui.

- SPOILER: Há quase um final feliz, a sensação de que o universo voltou à ordem (Benedict caminhando na calçada com trajes normais). Mas é tudo uma ilusão — logo voltamos ao caos, ao universo líquido etc.

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Doctor Strange in the Multiverse of Madness / 2022 / Sam Raimi

Satisfação: 5

Categoria C: Idealismo Corrompido (mistura de Idealismo com diversas más tendências)

Filmes Parecidos: Doutor Estranho (2016) / Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (2021) / Vingadores: Ultimato (2019)

terça-feira, 3 de maio de 2022

Jackass Para Sempre | Crítica

Jackass Para Sempre poster oficial
Mais uma compilação de sketches e pegadinhas da turma do Jackass, que apesar de mais velhos, continuam conseguindo "elevar" o nível das brincadeiras, algumas pra mim inassistíveis, como a do pula-pula ou a da aranha no tubo (não sei dizer ao certo se esse filme foi o "pior" de todos nesse sentido, ou se eu que me tornei mais sensível desde que o último saiu em 2010).

Falando em sensibilidade, pra mim foi interessante assistir ao filme no mesmo dia em que terminei de ler o livro Pessoas Altamente Sensíveis da Elaine N. Aron (que fala sobre pessoas que absorvem estímulos externos e internos com mais intensidade que a maioria). Entendi por que em algum nível me "fascina" esse tipo de pessoa que se submete a dores e situações horríveis, e sai rindo do outro lado — pois elas são meu exato oposto (um barulho desagradável às vezes já é o bastante pra arruinar meu humor).

Ao entender que existem diferenças biológicas que determinam nossas respostas a estímulos, a dor, e que a evolução "de propósito" programou algumas pessoas para serem altamente sensíveis, e outras pra serem brutamontes, os "dons" de pessoas como Johnny Knoxville e Steve-O se tornam menos incompreensíveis; consegui ver o filme até refletindo sobre as vantagens de existirem pessoas assim na sociedade.

Sobre o filme em si, pra mim é difícil fazer uma crítica, pois tudo depende da graça das brincadeiras e dos skits individuais, e eu tenho dificuldade de distinguir um filme do outro (no caso dos 3 primeiros, que vi faz tempo), mas o padrão criativo continua bom, considerando o gênero (achei divertidas algumas referências cinematográficas sutis, como o Buffalo Bill ao fundo no momento "O Silêncio dos Inocentes") e a crítica em geral tem considerado este o melhor da franquia.

Jackass Forever / 2022 / Jeff Tremaine

Satisfação: 7

Categoria B/C: É um caso difícil de avaliar. Não vejo como romantização da burrice, do niilismo, pois não há dúvidas que o filme concorda que essas pessoas são idiotas, e as coloca ali como objetos de riso. Ao mesmo tempo, acho difícil chamar de "Idealista" um filme onde pessoas bebem sêmen de porco etc., mesmo se tratando de uma comédia (o que vale pra filmes do John Waters também). Talvez o problema seja mais a violência explícita, o desejo de causar aflição, nojo, que tem seus limites mesmo num contexto cômico (principalmente quando são imagens reais).

Filmes Parecidos: Jackass 3D (2010) / Bad Trip (2021) / Anjos da Lei (2012) / Brüno (2019)

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Reflexões sobre o BBB 22

Nunca tinha visto um BBB, mas acabei acompanhando essa última edição, e pra minha surpresa fiquei bastante envolvido (percebi que assistir ao 1º episódio — a apresentação de cada participante e as primeiras interações entre eles — realmente faz toda a diferença, pois quando você pega o bonde andando, vê tudo de longe sem saber o que cada "peça" do jogo simboliza, sem entender o código oculto que existe por trás de cada movimentação, parece de fato um monte de gente vazia discutindo por motivos ridículos). Deixo abaixo algumas observações sobre a edição que têm a ver com Idealismo e as análises culturais do blog:

Analise BBB 22 mosaico


- Talvez pelo fato das últimas edições terem sido marcadas por figuras tóxicas, discussões ideológicas pesadas, participantes que saíram "cancelados" como a Karol Conká; ou talvez pelo fato da pandemia ter deixado as pessoas mais reflexivas, cuidadosas em relação à saúde mental, essa edição foi marcada inicialmente por uma positividade atípica; por um clima de harmonia, amizade, pela intenção consciente de certos participantes (como Tiago Abravanel) de evitar desentendimentos graves, de mostrar que era possível criar entretenimento sem ser na base de inimizades etc. Essa foi a primeira coisa que me surpreendeu (pois sempre associei BBB a um monte de gente brigando) e me fez querer continuar a ver o programa... Mas pra minha "surpresa", foi justamente esse fator que levou o grande público a começar a atacar a edição, chamar de "flopada", usar termos irônicos como "colônia de férias", "High School Musical", levando a Globo a forçar algumas dinâmicas pra balançar as amizades e criar desarmonia na casa. Ou seja, o insight aqui foi que não foi a Globo necessariamente que quis tornar o entretenimento mais negativo, e sim o público que exigiu isso. Da mesma forma, às vezes podemos achar que os grandes estúdios de Hollywood é que estão promovendo valores Anti-Idealistas nos filmes pra manipular a cultura, quando na verdade eles estão apenas se ajustando aos valores do público pra buscar audiência.

- O segundo grande choque (e que depois percebi que era totalmente coerente com o que observo no cinema) foi ver a enorme rejeição do público em relação a certos participantes, como a Bárbara Heck, que pra mim só tinham demonstrado qualidades admiráveis até então (ou cujos defeitos eram insignificantes perto das qualidades). Quase todo paredão, em vez de sair o participante mais fraco, o mais desinteressante, o que acrescentava menos em termos de entretenimento, acontecia justamente o oposto. Fui quase enxergando o programa como uma espécie de inversão da "seleção natural" de Darwin, onde em vez de resistirem os que tinham mais qualidades, o público se satisfazia promovendo a "sobrevivência do MENOS apto". Refletindo sobre esses padrões, conclui que o problema não era necessariamente o participante ter alguma força especial, superioridade em algo, e sim ele demonstrar isso na ausência de algum defeito ou desvantagem social que compensasse a força. Uma participante como a Natália Deodato, por exemplo, fez coisas muito mais condenáveis, injustas e agressivas do que alguém como a Bárbara. Mas como a Natália se enquadrava num estereótipo de vítima, de mulher negra, com vitiligo, desequilíbrios emocionais evidentes — isso criava um certo escudo pra ela, uma certa "honra" pros seus erros. O apelido de "Bad Naty" que ela recebeu não era negativo, e sim algo que amenizava e tornava mais aceitáveis seus comportamentos. Já a Bárbara se enquadrava num estereótipo de Barbie, de patricinha (mas ao mesmo tempo de mulher inteligente, disciplinada) algo que o público realmente rejeita. Então projetaram nela uma imagem de "cobra", de pessoa "tóxica", acusaram ela de racismo, distúrbios alimentares e de coisas que não faziam o menor sentido. Bárbara foi rotulada como uma Mean Girl, e isso jogava uma luz negativa sobre tudo o que ela fazia, ao contrário do caso da "Bad Naty".

- Da mesma forma, o favoritismo do vencedor Arthur Aguiar parecia ligado diretamente ao fato do público saber que ele tinha certos problemas de caráter fora da casa. Ele entrou no BBB com o estigma de ter traído a esposa 16 vezes — algo que ele mesmo admite e a esposa também (ela na verdade diz que foram muito mais que 16). Assim como a Bárbara, Arthur poderia muito bem ter caído num desses estereótipos de privilégio que o público rejeita. Mas o estigma do "traiu 16 vezes" parecia de alguma forma ajudá-lo, e trazê-lo pra perto do público (que adora a ideia de redenção). Com isso (e algumas outras manobras), ele conseguiu construir uma imagem de vítima — uma narrativa meio messiânica / cristã, onde ele era o underdog incompreendido por todos, um ser puro, iluminado, mas traídos por diversos "judas" (ironicamente, a pessoa mais famosa por trair, conseguiu se vender como a mais traída da casa), que inclusive chegou a "morrer" e a ressuscitar na Páscoa (paredão falso), pra no fim alcançar a glória máxima. Eu ficava me perguntando o tempo todo como teria sido a trajetória de Arthur, se além de famoso, atraente, ex-Rebelde, ele tivesse entrado na casa com um histórico positivo: como a fama de um homem honesto, íntegro, de caráter exemplar. Teria ele despertado tantas paixões? Pelo que conheço da psicologia do público atual, diria que não; ele teria sido apenas mais um, eliminado no meio da edição, como um Rodrigo Mussi — pois, como já discuti várias vezes, o espectador hoje se conecta com "personagens" muito mais com base em seus defeitos, desvantagens e "dores" em comum, do que com base em suas virtudes. Eu, como espectador de perfil "Idealista", sempre segui o processo inverso: primeiro me conecto com base nas qualidades e nas virtudes das pessoas. Depois, se ela demonstra limitações e desvantagens com as quais eu me identifico, posso criar um vínculo ainda maior. Mas não deixo de admirar as virtudes caso não exista essa identificação, e também não consigo me conectar com base em problemas de caráter, defeitos sérios que comprometam as virtudes. Já pra muita gente, a conexão só começa quando há primeiro a identificação de falhas e dores em comum. Este é o fator essencial. Depois disso, se o personagem demonstrar certas forças e qualidades superiores, o espectador poderá até admirá-lo mais. Mas desde que essas forças não anulem as falhas. Isso explica a predominância dos anti-heróis e dos heróis falhos no cinema das últimas décadas, como discuto aqui em muitos posts.

(Algo particularmente perturbador de se refletir é o fato da maior parte dos votantes do BBB serem mulheres. O que será que isso diz sobre o fato de Arthur, com fama de traidor compulsivo, ter gerado tantas paixões? E o que isso diz sobre a enorme rejeição a mulheres atraentes e fortes como Bárbara ou Jade Picon, ou sobre o fato da mulher que chegou mais longe ter sido a Jessilane, que era vista como "planta", "fraca", "muito simples" no começo? Não teria o sentimento de ameaça social, ligado a memórias traumáticas de colégio, comandado o julgamento do público?)

- O caso de Pedro Scooby e Paulo André é interessante. Embora eles não tivessem um fã clube tão dedicado e fanático, ambos foram longe e se tornaram muito queridos do público (estavam entre meus favoritos também no final). Porém eles caem numa categoria especial: a do atleta habilidoso e de postura humilde, que é universalmente querida, mesmo em tempos Anti-Idealistas (vejam que Neymar é o brasileiro mais popular do Instagram). Há algo a respeito das habilidades de um atleta, que por serem bem concretas e delimitadas, geram admiração mas sem provocar grande ameaça (especialmente se o atleta for dócil e não se vangloriar).

Dito tudo isso, é importante considerar que o BBB talvez não reflita a visão exata da população, até pelo fato de uma pessoa poder votar infinitas vezes nos paredões, o que favorece perfis fanáticos. Se fôssemos contar 1 voto por CPF, talvez descobririamos que o público é um pouco melhor do que aparenta, e que é uma minoria desequilibrada que provoca certas distorções e eliminações injustas. (Se bem que outras votações que funcionam na base de 1 voto por CPF também costumam ter resultados bizarros, então não daria tanto peso a este ponto.)

Acompanhar o Big Brother 22 acabou me trazendo uma série de surpresas, até por eu sempre ter tido preconceito contra o programa e reality shows em geral (pra maior parte deles vou continuar tendo). Minha diversão como espectador sempre veio mais da ficção, da arte, pois a arte serve pra nos mostrar riquezas e maravilhas que vão além da vida real. Mas numa época onde a arte anda tão pobre, tão vazia, a "vida real" do BBB é que pra mim foi a maior fonte de entretenimento e aprendizados dos últimos meses.

Termino com um texto que postei no meu Instagram algumas semanas antes do programa acabar, quando realmente entendi que não fazia sentido se prender a votações e resultados, pois eles não significavam muita coisa, e que eu deveria ver o programa apenas curtindo o dia a dia e aquilo que cada pessoa tinha de bom a oferecer.

"Uma coisa que aprendi há um tempo: se há uma multidão votando, não espere coisa boa. E quanto pior o estado da cultura em geral, mais isso é verdade. Hoje em dia eu acompanho o resultado de coisas como o Oscar, as eleições, o BBB, rankings, números de bilheteria, apenas com uma leve curiosidade antropológica, pra saber pra que direção o público resolveu caminhar desta vez… Mas daí a torcer, ficar indignado, isso acho cada vez mais inútil. Até quando o meu favorito ganha algo, já não consigo vibrar tanto, pois sei que a aprovação da maioria não prova nada — nem que a escolha foi certa, e nem que a maioria concorda comigo, afinal podemos ter tido as mesmas escolhas, mas por razões totalmente diferentes. Então aprendi a ficar com minha opinião, com a opinião de uma pessoa ou outra que respeito, e quem sabe a de alguns especialistas. A voz do povo não é a voz de Deus (ainda mais hoje que comunidades fanáticas com as piores mentalidades se organizam facilmente na internet e conseguem fazer qualquer coisa chegar ao número 1). As multidões costumam estar certas apenas em questões muito práticas e superficiais (se você quer desentupir um ralo e vai atrás de um tutorial no YouTube, o que tiver mais likes provavelmente será muito bom mesmo). De resto, é apenas a média da opinião de um monte de gente que você não conhece e que você provavelmente não daria ouvidos na vida real… Se você não gostaria de ter os mesmos hábitos da maioria das pessoas, os mesmos valores, a mesma inteligência, o mesmo estilo de vida, não faz muito sentido ficar torcendo pra que o voto de uma multidão reflita as suas preferências."