quarta-feira, 8 de maio de 2024

Filmes Favoritos de Ayn Rand

Como há vários paralelos entre minha visão de cinema (Idealismo) e a filosofia de literatura da Ayn Rand (Romantismo), já pensei várias em vezes em criar uma lista de filmes alinhados com o Romantismo para dar um senso melhor das semelhanças e diferenças entre as duas abordagens. Mas como Rand escrevia principalmente sobre literatura e não deu tantos exemplos assim de filmes Românticos, tal lista teria sempre um componente de subjetividade (quando fãs de Rand tentam adivinhar que tipo de arte ela aprovaria, o resultado normalmente é desastroso).

Então, para criar uma base para discussões futuras, vou reunir abaixo os principais filmes, séries de TV, cineastas e atores sobre os quais Ayn Rand deu alguma opinião, além de algumas de suas reflexões sobre o cinema em enquanto arte:


A VISÃO DE AYN RAND SOBRE O CINEMA


"Potencialmente, o cinema é uma grande arte, mas este potencial ainda não foi realizado, exceto em casos singulares e momentos aleatórios. Uma arte que requer a sincronização de tantos elementos estéticos e tantos talentos diferentes não pode se desenvolver em uma época de desintegração filosófica/cultural como a atual. Seu desenvolvimento requer a cooperação criativa de homens que estejam unidos, não necessariamente por convicções filosóficas formais, mas por uma visão fundamental do homem; por um Senso de Vida." — "Art and Cognition", 1971

"No que diz respeito aos seus aspectos ficcionais, cinema e televisão, por sua natureza, são mídias adequadas exclusivamente ao Romantismo (às abstrações, ao essencial e ao drama). Infelizmente, ambas as mídias chegaram tarde demais: o grande dia do Romantismo havia passado, e apenas seus últimos ecos alcançaram alguns filmes excepcionais. (Siegfried de Fritz Lang é o melhor entre eles.)" — "What Is Romanticism", 1969

"A música e/ou a literatura são a base das artes performáticas e das combinações em grande escala de todas as artes, como a ópera ou o cinema. No cinema ou na televisão, a literatura é a regente e a definidora de termos. Roteiros para cinema e televisão são subcategorias do drama e, nas artes dramáticas, "a peça é o que importa". A peça é aquilo que a torna arte; a peça fornece o objetivo, para o qual todo o resto é o meio." — "Art and Cognition", 1971

Este último ponto é relevante pois indica que muitos dos princípios que Ayn Rand estabeleceu para a literatura também valem para os filmes — por exemplo, a importância fundamental da trama — ainda que ela vá destacar também a importância da direção e da linguagem visual para o cinema.


PARTE 1: APROVADOS POR AYN RAND




O FILME FAVORITO


Os Nibelungos - A Morte de Siegfried (Die Nibelungen: Siegfried / 1924 / Fritz Lang)

Até onde sei, este é o único filme que Rand afirmou ser uma grande obra de arte, e seu diretor, Fritz Lang, é também o único cineasta que ela exaltou como um grande artista.

"Como exemplo de direção cinematográfica no seu melhor, mencionarei Fritz Lang, particularmente em seus primeiros trabalhos; o seu filme mudo Siegfried é o mais próximo de uma grande obra de arte que o cinema já teve. Embora outros diretores captem isso ocasionalmente, Fritz Lang é o único que realmente compreendeu que a arte visual é uma parte muito mais fundamental do cinema do que a mera seleção de cenários e ângulos de câmera — que o cinema deve ser uma composição visual em movimento. Já foi dito que se parássemos a projeção de Siegfried e cortássemos um fotograma do filme ao acaso, a sua composição seria tão perfeita quanto a de uma grande pintura. Todas as ações, gestos e movimentos deste filme são calculados para conseguir esse efeito. Cada centímetro do filme é estilizado, ou seja, condensado naqueles elementos essenciais que transmitem a natureza e o espírito da história, dos seus acontecimentos, do seu local. Todo o filme foi filmado em interiores, incluindo as magníficas florestas lendárias cujos ramos são cenográficos (mas não o parecem na tela). Segundo consta, enquanto Lang estava filmando Siegfried, um cartaz ficava pendurado na parede do seu escritório: 'Nada neste filme é acidental'. Este é o lema da grande arte. Pouquíssimos artistas, em qualquer área, foram capazes de o cumprir. Fritz Lang foi. Há certas falhas em Siegfried, particularmente a natureza da história, que é uma lenda trágica, "universo malevolente" — mas esta é uma questão metafísica, não estética. Do ponto de vista do trabalho criativo do diretor, este filme é um exemplo do tipo de estilização visual que difere uma obra de arte de um noticiário glorificado." — "Art and Cognition", 1971


OUTROS FILMES QUE AYN RAND ELOGIOU


007 Contra o Satânico Dr. No (Dr. No / 1962 / Terence Young)

"Ao contrário das afirmações de alguns, não havia nada de irônico ('tongue-in-cheek') sobre o primeiro desses filmes, 007 Contra o Satânico Dr. No. Foi um exemplo brilhante de arte Romântica na tela — na produção, direção, roteiro, fotografia e, especialmente, na atuação de Sean Connery. Sua primeira aparição na tela foi uma joia de técnica dramática, elegância, inteligência e sutileza: quando, em resposta a uma pergunta sobre seu nome, vimos seu primeiro close-up e ele respondeu calmamente: 'Bond. James Bond' — a plateia, na noite em que assisti, explodiu em aplausos." — "Bootleg Romanticism", 1965



Ninotchka (1939 / Ernst Lubitsch)

Ayn Rand tinha uma opinião mista sobre Ninotchka. Em 1958, em uma discussão sobre humor, ela citou o filme como um exemplo de humor benevolente. Porém, anos depois, ela apontou que o filme, apesar de excelente artisticamente, era problemático pois o comunismo, assim como o nazismo, era um assunto grave demais pra ser tratado com leveza.

"Ernst Lubitsch foi o único diretor de cinema famoso por comédias românticas. Ninotchka, o filme estrelado por Greta Garbo que ele dirigiu, é um bom exemplo: é comédia, mas também um romance elevado. O que é motivo de riso são os aspectos sórdidos e indesejáveis da vida — e o que transparece por meio do humor é o glamour, o romance e os aspectos positivos. No tipo benevolente de humor, sempre há algo de bom envolvido, como em Ninotchka, onde o herói e a heroína são bastante glamourosos. Eles não são engraçados — algumas de suas aventuras são; ou eles estão agindo de forma humorística em relação a certas coisas, mas não de uma maneira que subestime sua própria dignidade, valor ou autoestima." — The Art of Fiction, 1958

"Ninotchka é um excelente filme. É brilhantemente realizado, e ainda assim, quando o vi pela primeira vez, embora pudesse admirá-lo tecnicamente, ele me deprimiu enormemente. A razão é que o tema não é engraçado. Lembre-se de que quando Ninotchka retorna à Rússia de Paris e descreve seu lindo chapéu, sua colega de quarto pergunta: "Por que você não o trouxe?", e Ninotchka responde: "Eu teria vergonha de usá-lo aqui." A colega responde: "Era tão bonito assim?" A plateia ri, mas isso não é engraçado. É muito eloquente e típico da atmosfera russa. É uma frase boa e realista, e por isso não é assunto para humor. Além disso, suponho que o criador do filme seja anticomunista, porque ideologicamente o filme é anticomunista. No entanto, observe: ao tratar o assunto humoristicamente, ele deixa você com um elemento de simpatia — com a ideia de que o mal é irreal. Ninotchka foge da Rússia, assim como os três comissários engraçados. E num toque inteligente, o filme termina com um dos três iniciando confusão com os outros dois novamente. O que essa cena faz com a realidade dos males que eles devem simbolizar? Faz você sentir, "Ah, sim, Rússia; isso é Ninotchka" — uma desaprovação bem-humorada. Faz você sentir que esses russos são travessos quando na verdade são maus. Nesse sentido, Ninotchka é um filme moralmente inadequado. Artisticamente, Ninotchka é bem feito. Mas para apreciá-lo, você deve ignorar (pelo menos durante a duração do filme) a natureza de seu contexto. O mesmo seria verdadeiro se você transpusesse Ninotchka para a Alemanha nazista. Como você se sentiria sobre um filme que brincasse com os campos de concentração, e no qual algum guarda ou torturador bem-humorado de um campo finalmente escapasse da Alemanha. Não seria engraçado ou apropriado." — Ayn Rand Answers, 1969



O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker / 1962 / Arthur Penn)

Rand era uma grande admiradora da peça de William Gibson que, até onde ela sabia, era a única "peça epistemológica" já escrita: "Ela prende o espectador com um suspense tenso e crescente, não sobre uma perseguição ou um assalto a banco, mas sobre a questão de saber se uma mente humana irá ganhar vida". A avaliação que Rand faz é da peça, não do filme, mas como ela comenta no texto que Patty Duke teve um "desempenho superlativo" tanto no teatro quanto na versão para o cinema, sabemos que ela viu o filme, e podemos supor que gostava de ambas as versões. — "Kant Versus Sullivan", 1970




No Calor da Noite (In the Heat of the Night / 1967 / Norman Jewison)
&
Inferno na Torre (The Towering Inferno / 1974 / John Guillermin)

"Li o livro original 'No Calor da Noite', e era uma ficção leve e ruim. Tudo de bom sobre o filme — os toques sérios — foi adicionado a ele, e é por isso que gosto muito de Stirling Silliphant. Ele também foi o roteirista de alguns desses grandes filmes de terror, um dos quais vi outro dia na TV, Inferno na Torre, que foi muito bem feito para o que é. Mas No Calor da Noite é sua obra-prima. Ele nunca o igualou." — Ayn Rand Answers, 1980



A Letra Escarlate (The Scarlet Letter / 1926 / Victor Sjöström)

"Muitos romances do século 19, como 'Quo Vadis' e 'A Letra Escarlate', são excessivamente escritos em narrativa direta. (Este é um defeito pequeno em comparação com os valores literários dessas duas obras.) Um aspecto positivo do antigo filme mudo A Letra Escarlate, estrelado por Lillian Gish, foi que ele dramatizou (na maioria dos casos muito bem) eventos importantes que no romance são apenas relatados." — The Art of Fiction, 1958



Que Espere o Céu (Here Comes Mr. Jordan / 1941 / Alexander Hall)

Rand citou o filme no contexto de uma discussão sobre fantasia na literatura:

"O filme Que Espere o Céu (1941) foi uma história psicológica fascinante sobre um pugilista falecido cuja alma retorna à Terra. Ele não deveria estar morto — houve algum erro na contabilidade celestial, então ele é enviado de volta no corpo de um milionário que acabou de morrer. Ao assumir a existência desse milionário, ele aprende um modo de vida diferente. Como havia uma questão humana racional envolvida, a história foi muito interessante." — The Art of Fiction, 1958




Dança: Musicais com Fred Astaire / Bill Robinson — Rand não citou filmes específicos, mas podemos supor que ela gostava de alguns musicais do Fred Astaire ou do Bill Robinson, pois escreveu em "Art and Cognition" que sapateado era sua forma de dança favorita, e que Astaire e Robinson eram seus maiores expoentes.



Além dos filmes que Rand comentou pessoalmente em seus textos e entrevistas, sabemos sobre alguns de seus favoritos através de biografias e depoimentos de amigos pessoais.

Na biografia "The Passion of Ayn Rand" e no documentário de 1996 Ayn Rand: A Sense of Life (indicado ao Oscar!), os seguintes filmes aparecem entre os favoritos da juventude de Rand na Rússia (juntos com Os Nibelungos - A Morte de Siegfried):


A Marca do Zorro (The Mark of Zorro / 1920 / Fred Niblo)

A Princesa das Ostras (The Oyster Princess / 1919 / Ernst Lubitsch)

The Indian Tomb (1921 / Joe May)

A Ilha dos Navios Perdidos (The Isle of Lost Ships / 1923 / Maurice Tourneur)



Sobre este último, Rand comentou em uma carta para Henry Blanke (produtor da versão para o cinema de The Fountainhead):

"Acredito que A Ilha dos Navios Perdidos, que pertence à Warner Bros., seja uma das melhores histórias para o cinema de todos os tempos, e quero encorajá-lo entusiasticamente a fazer uma versão moderna dela. Esta história tem um conflito central extremamente dramático — o tipo de ideia que contém todos os elementos de uma verdadeira trama." — Letters of Ayn Rand, 1949


Mary Ann Sures, que foi amiga de Rand por muitos anos, confirma no livro Facets of Ayn Rand que Os Nibelungos - A Morte de Siegfried era seu filme favorito, e lista alguns outros que ela gostava:


Casablanca (1942 / Michael Curtiz)

De acordo com Mary Ann Sures, Rand achava que Casablanca tinha uma ótima trama e "nenhuma palavra de diálogo desnecessário". Ela gostava da cena final, em que a câmera se afasta para revelar Rick e Louis caminhando no aeroporto à noite, "em direção ao futuro". Rand não achava inapropriado o final "triste", pois apesar do romance entre Rick e Ilsa ser um elemento grande da trama, o foco do filme estava no personagem do Rick e sua redenção. No começo do filme, Rick é um homem cínico, bêbado, amargurado, e ao longo da história, entendemos o motivo disso, e vemos ele se transformar em um homem decidido, pronto para lutar pela liberdade de novo.



Como Possuir Lissu (Gambit / 1966 / Ronald Neame)

Mary Ann Sures disse que Ayn Rand achava o filme "um romance encantador, com uma trama inventiva".








We The Living (Noi vivi / 1942 / Goffredo Alessandrini)

Durante a 2ª Guerra, o livro de Rand "We The Living" foi adaptado para o cinema na Itália sem seu conhecimento. Quando Rand finalmente viu uma cópia do filme em 1948 ela se surpreendeu positivamente com a produção, embora tenha reclamado do final e de algumas alterações no texto: "O filme é muito bom, e a performance da garota no papel principal [Alida Valli] é magnífica. Mas eles deturparam o final da história de forma que perdeu um pouco o fervor." — Letters of Ayn Rand, 1948

DIRETORES ELOGIADOS


Fritz Lang

Como já citado, Rand considerava Fritz Lang o melhor diretor de cinema:

"Fritz Lang é o único diretor que realmente compreendeu que a arte visual é uma parte muito mais fundamental do cinema do que a mera seleção de cenários e ângulos de câmera — que o cinema deve ser uma composição visual em movimento." — "Art and Cognition", 1971


Cecil B. DeMille

Especialmente em sua juventude na Rússia, o diretor favorito de Ayn Rand era Cecil B. DeMille, com quem ela viria trabalhar mais tarde ao se mudar para Los Angeles:

"Ele fazia filmes com tramas, e a maioria deles eram glamourosos e românticos. Seus filmes religiosos não eram exibidos na Rússia, então eu não sabia sobre eles; mas ele era famoso na Rússia por glamour, sexo e aventura. Ele era meu ideal particular da tela americana. Meus parentes podiam ter me dado uma carta de recomendação para qualquer um dos estúdios, mas eu escolhi DeMille." — "The Passion of Ayn Rand"


Alfred Hitchcock

Sobre Hitchcock, Rand expressou um misto de admiração e ressalvas:

"Alfred Hitchcock, o último cineasta que conseguiu preservar sua estatura e sua audiência, consegue se safar com Romantismo através de uma ênfase excessiva na malevolência ou no puro horror."  — "What is Romanticism?", 1969



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PARTE 2: REPROVADOS POR AYN RAND




FILMES QUE AYN RAND CRITICOU


Moscou Contra 007 (From Russia with Love / 1963 / Terence Young)

"Não houve muitos aplausos na noite em que vi o segundo filme, Moscou Contra 007. Aqui, Bond foi introduzido dando beijinhos escolares no rosto de uma garota insípida de maiô. A história era confusa, às vezes incompreensível. O suspense construído de forma habilidosa e dramática por Fleming foi substituído por coisas convencionais, como perseguições comuns envolvendo apenas perigo físico. Ainda irei assistir ao terceiro filme, 007 Contra Goldfinger, mas com sérias desconfianças." — "Bootleg Romanticism", 1965



O Destino do Poseidon (The Poseidon Adventure / 1972 / Ronald Neame)

"[Stirling Silliphant] também escreveu O Destino do Poseidon, que foi horrível e chato." — Ayn Rand Answers, 1980



Gênero: Terror e filmes do Boris Karloff — Embora em 1958, no curso The Art of Fiction, Rand tenha falado positivamente de livros como Frankenstein e O Médico e o Monstro, por serem histórias de fantasia com mensagens racionais, em 1969, no artigo "What Is Romanticism", ela caracterizou a literatura de horror como o "fim da linha" no processo de desintegração do Romantismo:

"A História de Terror, em qualquer variante, representa a projeção metafísica de uma única emoção humana: o terror cego, cru, primitivo. Aqueles que vivem nesse terror parecem encontrar um momento de alívio ou controle ao reproduzir aquilo que temem — assim como os selvagens encontram uma sensação de domínio sobre seus inimigos ao reproduzi-los na forma de bonecos. Em suas motivações básicas, essa escola pertence mais à psicopatologia do que à estética... O ancestral moderno desse fenômeno é Edgar Allan Poe; sua expressão estética arquetípica ou mais pura são os filmes de Boris Karloff." — "What Is Romanticism", 1969


Gênero: Musicais com Jeanette MacDonald e Nelson Eddy — Rand expressou certo desprezo pela dupla no artigo "Art and Cognition" quando disse: "Gosto de música de opereta de um certo tipo, mas eu preferiria ouvir uma marcha fúnebre ao 'Danúbio Azul' ou ao tipo de música de Nelson Eddy e Jeanette MacDonald."



Matar ou Morrer (High Noon / 1952 / Fred Zinnemann)

Embora ela não tenha avaliado o filme como um todo, quando lhe perguntaram se Matar ou Morrer tinha uma trama, Rand respondeu que não; que o filme dramatizava a psicologia do xerife, mas que não havia um real conflito entre ele e o vilão, nem uma progressão de eventos: "O xerife precisa enfrentar certos bandidos, o povo da cidade não se mostra disposto a ajudar, então ele os enfrenta sozinho. Onde está a trama?"




Marty (1955 / Delbert Mann)

"Considere uma das melhores obras do Naturalismo moderno — Marty, de Paddy Chayefsky. É uma representação extremamente sensível, perspicaz e comovente de um homem humilde tentando se autoafirmar. Pode-se sentir simpatia por Marty e uma prazer meio triste com seu sucesso final. Mas é altamente duvidoso que alguém — incluindo os milhares de Martys da vida real — se sentiria inspirado por seu exemplo. Ninguém poderia sentir: 'Eu quero ser como Marty.' Mas todos (exceto os mais corruptos) podem sentir: 'Eu quero ser como James Bond.'" — "Bootleg Romanticism", 1965



Uma Aventura na África (The African Queen / 1951 / John Huston)

Segundo Mary Ann Sures, Ayn Rand (que gostava muito da Katharine Hepburn), reprovou os toques Naturalistas do filme, que pareciam desglamourizar os protagonistas desnecessariamente — durante a sessão, ela reagiu negativamente à cena do chá em que o estômago de Humphrey Bogart começa a roncar e gorgolejar, ao visual sujo e despenteado Bogart e à aparência simples de "solteirona" que deram para Hepburn.


Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives / 1946 / William Wyler)
&
Canção da Rússia (Song of Russia / 1944 / Gregory Ratoff, Laslo Benedek)

Em 1947, Ayn Rand concordou em testemunhar contra estes dois filmes perante o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas, que investigava a infiltração comunista em Hollywood. Inicialmente, Rand iria discutir ambos os filmes. No fim, ela só foi autorizada a falar sobre Canção da Rússia, que ela considerava um filme "desimportante e antigo". Ela achava mais urgente discutir a propaganda política embutida em filmes mais populares daquele momento, como Os Melhores Anos de Nossas Vidas. Como não foi Rand quem fez a seleção dos filmes, não dá pra saber se esses dois entrariam em sua lista dos piores da época em termos de ideologia. Mas sem dúvida, eram filmes com os quais ela não simpatizava no aspecto político.


Fúria da Carne (Wild Is the Wind / 1957 / George Cukor)

Leonard Peikoff recomendou Fúria da Carne para Ayn Rand dizendo que era um grande filme (ele tinha se encantado com a personagem da Anna Magnani, que para Peikoff, lembrava muito a Ayn Rand em temperamento e aparência). Uns dias depois, Rand foi ver o filme e ligou para Leonard indignada: "Qual o filme que você me indicou? É esse sobre as ovelhas?!". O filme se passa num ambiente rural e inclui uma cena em que uma ovelha dá à luz em frente às câmeras; foi provavelmente Naturalista demais para Ayn. — Centenary Reminiscences of Ayn Rand by Leonard Peikoff


Vontade Indômita (The Fountainhead / 1949 / King Vidor)

Rand se orgulhava do roteiro que escreveu para o filme (adaptado de seu próprio livro), mas teve reações mistas ao resultado final. Inicialmente, a produção parecia um sonho: Gary Cooper era um dos atores favoritos de sua juventude, durante a pré-produção, ela chegou a dizer que King Vidor era um dos melhores diretores na indústria (Letters of Ayn Rand), e todos estavam comprometidos a filmar seu roteiro sem alterações. Porém, durante as filmagens, ela começou a ter diferenças criativas com Vidor, se frustrou com uma frase crucial que foi cortada do discurso final sem sua autorização, e achou a performance de Cooper engessada, sem a intensidade adequada. De acordo com a biografia "The Passion of Ayn Rand", ela teria dito ainda que King Vidor era "o pior homem que podiam ter encontrado para The Fountainhead. Ele era um Naturalista, então não tinha mente nem imaginação para o livro."


DIRETORES CRITICADOS:


Ingmar Bergman

"Deixe-me dizer enfaticamente que eu não sou uma admiradora de Ingmar Bergman, nem em seu papel como diretor, nem em relação aos temas que ele seleciona para seus filmes. Seu trabalho, para mim, é um exemplo de mediocridade pretensiosa, subjetivista e guiada por misticismo." — "The Moral Factor", 1976 (palestra)



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OUTROS


SÉRIES DE TV QUE AYN RAND GOSTAVA

Perry Mason (1957–1966)

As Panteras (Charlie's Angels / 1976—1981) — "É a única série de TV Romântica hoje. Ela não é realista. Não é sobre a sarjeta ou sobre crianças retardadas como as outras séries de hoje. É sobre três garotas atraentes fazendo coisas impossíveis. E o fato de serem impossíveis é o que a torna interessante. A série mostra três garotas que são melhores que a chamada 'vida real'".  — entrevista com Phil Donahue, 1980

Os Intocáveis (The Untouchables / 1959—1963)

Além da Imaginação (The Twilight Zone / 1959–1964) — em particular o episódio "Eye of the Beholder"

Dragnet (1951–1959)

Kojak (1973–1978)

Raízes (Roots / 1977)



ATORES DOS QUAIS AYN RAND GOSTAVA: Gary Cooper, Robert Stack, Conrad Veidt, Sean Connery.


ATRIZES DAS QUAIS AYN RAND GOSTAVA: Greta Garbo, Marlene Dietrich, Katharine Hepburn (particularmente em seu primeiro filme, Vítimas do Divórcio), Marilyn Monroe, Barbara Stanwyck, Farrah Fawcett.


NBI — "THE ROMANTIC SCREEN"

Na segunda metade dos anos 60, o Nathaniel Branden Institute (NBI) começou a fazer exibições de filmes para estudantes do Objetivismo. Como tudo que o NBI fazia na época era aprovado por Ayn Rand, podemos assumir que os filmes exibidos tinham relevância para o Objetivismo, ainda que não saibamos o contexto exato (alguns filmes podem ter sido exibidos simplesmente por terem sido baseados em obras literárias que Rand admirava).

De acordo com Barbara Branden em "The Passion of Ayn Rand", entre os filmes exibidos no "The Romantic Screen" estavam:


Os Irmãos Karamazov (The Brothers Karamazov / 1958 / Richard Brooks)

Os Brutos Também Amam (Shane / 1953 / George Stevens)

Quo Vadis (1951 / Mervyn LeRoy, Anthony Mann)

Vitória Amarga (Dark Victory / 1939 / Edmund Goulding)





Quem souber de outros filmes avaliados por Rand, comente que posso ir acrescentando à lista no futuro.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Cultura - Maio 2024

7/5 - Pedro Costa

Às vezes as discussões sobre cinema aqui podem parecer um pouco abstratas, distantes da realidade — então pra quem questiona se existem de fato "Anti-Idealistas" no mundo, deixo aqui como registro uma entrevista com o cineasta português Pedro Costa (que eu não fazia ideia de quem era), que é praticamente uma caricatura desse tipo de mentalidade, e uma ilustração fascinante de como a falta de objetividade (reparem a maneira turva e imprecisa dele se expressar), a visão frágil do ser humano, o senso de vida malevolente e o ódio do entretenimento (especialmente de Ridley Scott!) estão interconectados: https://othoncinema.com/interview-with-pedro-costa/

Alguns destaques:

Quando a aparência reflete o espírito.
"Para cada cineasta, é diferente. Se você entrevistar Ridley Scott, ele é um homem que não tem medo, como todos os homens grandes. Eu sei que não sou um homem; sou uma criança, sou uma mulher. Sabe, há cada vez mais desse tipo de cineastas. Eles têm que conquistar algo; estão fazendo filmes apenas para conquistar, para ganhar. Eu estou fazendo esses filmes para esquecer e perder."

"Alguns filmes também têm a função de nos fazer esquecer. Lembre-se de que às vezes é bom esquecer algumas coisas. É sua única chance de sobreviver. Eu tenho que esquecer muitas coisas todos os dias, e cada vez mais nesta sociedade. É uma forma de se armar, de se proteger. Eu quero esquecer, por exemplo, com o meu filme, que existe outro tipo de cinema. É essa noção. Eu não consigo explicar para você; é apenas um sentimento."

"A vida é algo muito violento. O cinema não deve esquecer disso, mas deve ser algo quase como remédio. Eu sei que quando assisto a um filme do Straub, eu melhoro. Imediatamente, é como tomar um comprimido. Não estou dizendo drogas, mas como Aspirina."

"Claro, Ridley Scott é fascismo absoluto. Porque é um populismo real, como você diz na política. Ele é um cara populista. Ele vai abusar de você, prometer te dar tudo, que você será feliz e livre, etc."

"Você encontra as melhores coisas quando se limita. Não é uma coisa de Ridley Scott; é o oposto, então você deve fazer o oposto de Ridley Scott, sempre em cada segundo."

"'Cinema lento' não significa muito. Dá uma ideia realmente falsa do que é. Os filmes que gostamos, Straub e Mizoguchi, são os filmes que estão mais próximos da vida. Os filmes que estão longe da vida, digamos novamente, são os do Ridley Scott. Ele vive em outro mundo, Hollywood, Los Angeles, dinheiro, ouro. Ele vive em champanhe e coisas assim."

"Quando coisas sombrias começam a aparecer, Ridley Scott começa a aparecer."

domingo, 5 de maio de 2024

O fim do Espaço Itaú de Cinema

Um dia que sempre temi chegou... ou quase. Minha rede de cinema favorita, o Espaço Itaú de Cinema, não existe mais. Eu frequentava o Espaço Itaú/Unibanco desde a metade dos anos 2000 mais ou menos, e com o tempo foi se tornando minha 1ª opção de sala por diversos motivos: a programação era a mais completa, você sabia que eles sempre passariam as principais estreias, tanto para o público mainstream quanto para os cinéfilos. No caso de animações, era frequentemente a única rede com sessões legendadas. A bomboniere tinha preços bem mais razoáveis que de costume (sem aquelas promoções manipulativas que discuti no YouTube), opções melhores, e o atendimento era o mais ágil entre todas as redes (eles não tinham o método ineficiente do Cinemark, por exemplo, que põe 1 pessoa pra cobrar, servir a pipoca e fazer tudo sozinha). 

Felizmente, as salas não fecharam de fato — foram assumidas pela rede Cinesystem. O luto é menor, pois pelo menos o "corpo" do cinema ainda está lá. Só resta saber se sobrará alguma alma. O discurso da Cinesystem no momento é que eles irão manter o mesmo estilo de programação. Porém, na minha primeira ida ao cinema após a mudança na administração, alguns sinais me deram a impressão de que esse discurso não se sustentará por muito tempo: as primeiras mudanças na decoração já trouxeram uma estética "fast food" pro ambiente que não cabia antes no Espaço Itaú — funcionários de uniformes coloridos, com logotipos gigantes; a bomboniere decorada com vários baldes promocionais do filme do Garfield etc. Nos telões acima da bilheteria, o marketing super woke/Gen Z divulgava a "Sessão Beijo" com várias pessoas "diversas" se beijando (a promoção dá desconto para casais que se beijarem ao comprar o ingresso), também a "Sessão Pets" que convida o público a ir ao cinema com o cachorro, Sessões Inclusivas especiais para autistas etc. No Instagram da Cinesystem, TikTokers faziam "publis" das novas salas no dia da inauguração... Ou seja, não dou muito tempo até que a Cinesystem esteja totalmente focada nas franquias, nas animações dubladas, e se desvincule da proposta do Itaú.

Condenaria a Cinesystem por isso, ou o Itaú por ter vendido os cinemas? Não. Ao contrário daqueles que estão xingando o Itaú e o capitalismo nas redes sociais, entendo que não há como uma empresa se sustentar por muito tempo se ela não dá lucro; que a culpa no fim é do público, do declínio da qualidade/relevância dos filmes de Hollywood etc. Fico até feliz de ver que alguém ainda viu potencial no negócio e que o espaço continuará sendo um cinema.

O que acho triste é que o Espaço Itaú era uma das únicas redes que ao mesmo tempo em que mirava em um público que leva filmes a sério (o que se refletia não só na programação e nos frequentadores, mas também na estrutura e na estética do ambiente), não deixava de passar os blockbusters, de valorizar o entretenimento e ter um padrão técnico tão bom quanto o dos grandes multiplexes. Era um "multiplex para cinéfilos", o que tornava melhor tanto a experiência de ver os filmes comerciais na rede quanto a de ver os filmes de "arte" — você via filmes alternativos em um ambiente confortável, em salas "stadium" com imagem e som de ótimo nível (em contraste com os cinemas de rua, geralmente mais capengas), e via blockbusters em um ambiente mais tranquilo, com um público mais civilizado (longe dos grupos de adolescentes barulhentos de shopping etc.). Ou seja, o Espaço Itaú pra mim representava, no universo das salas de cinema, aquela união entre arte e entretenimento que eu defendo tanto nos filmes. Mas como essa união é cada vez mais rara na cultura e na sociedade, faz sentido que o mercado exibidor também reflita isso. 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Bebê Rena

Foi a primeira vez que pratiquei o famoso "binge-watching" e vi uma série inteira em um dia só. Estava esperando algo formulaico seguindo a linha Louca Obsessão, mas já nos 2 primeiros minutos, quando Donny oferece o chá de cortesia para Martha, eu me vi fisgado pois percebi que a série estava inovando em cima da fórmula e trazendo uma discussão ética/psicológica que eu pessoalmente nunca tinha visto bem explorada antes — a relação problemática entre os "vampiros psíquicos" e os "empatas"; pessoas que sobrevivem com base no altruísmo dos outros e pessoas com uma tendência a sacrificar as próprias necessidades diante da vontade alheia. Há muitos filmes sobre stalkers e pessoas obsessivas, mas poucos que falam dos perigos desse tipo de auto-abnegação. Bebê Rena é praticamente um filme de terror pra quem tem dificuldade de dizer não e impor limites; a série combina o tipo de suspense presente em filmes como Louca Obsessão e Mulher Solteira Procura com um "cautionary tale" (História Idealista #5) igualmente envolvente sobre um jovem artista que se afunda cada vez mais em problemas por conta de sua própria falta de auto-respeito e sua "síndrome de bom garoto". É uma das poucas minisséries que achei interessantes do começo ao fim, que não me deram a sensação de estar sendo enrolado com episódios e subtramas desnecessárias só para preencher o tempo. Alguns dos motivos são a duração relativamente curta da série, a sutileza e a autenticidade do texto do Richard Gadd, que baseou muita coisa em experiências pessoais, além também do fato do material ter sido testado e lapidado no palco antes de chegar à TV.

Em relação ao conteúdo, a única coisa que não achei 100% satisfatória é algo que me parece até injusto cobrar de Gadd: em algum nível, eu estava esperando que a série fosse fornecer uma explicação fundamental para os problemas emocionais que transformaram Donny em alguém tão vulnerável a pessoas como Martha (um pouco por eu ter me identificado com as experiências dele e já ter sofrido com as "Marthas" do mundo, ainda que com mais cautela e autoconsciência). No 4º episódio, há um aprofundamento psicológico interessante que alguns críticos parecem achar que explica tudo. O episódio é ótimo, porém o que ele revela é que Donny já era suscetível aos "vampiros psíquicos" antes mesmo de conhecer Martha. Então "a conta não fecha" — coisas cruciais sobre o passado de Donny ainda parecem ter ficado de fora. Mas como Richard Gadd baseou a história em eventos que ele viveu há relativamente pouco tempo (entre 2015 e 2017), não dá pra esperar que ele já tenha amadurecido tanto a ponto de conseguir fazer uma auto-análise com esse grau de distanciamento e objetividade. De qualquer forma, isso não diminui aquilo que ele já foi capaz de explorar na série, a qualidade geral do roteiro, e outros méritos da produção, como as performances inesquecíveis de Gadd e Jessica Gunning.

Baby Reindeer / 2024 / Richard Gadd

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo Crítico

Filmes Parecidos: Louca Obsessão (1990) / O Talentoso Ripley (1999) / Atração Fatal (1989) / O Estado das Coisas (2017) / Dogville (2003)

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Rivais

ANOTAÇÕES:

- O filme abre com um uso interessante de edição, música, fotografia, e tem uma estética atraente — porém a ausência de propósito narrativo nessas cenas iniciais já indica que o filme será do tipo "estilo acima de conteúdo". A ênfase está mais no apelo sexual dos atores e na estética "trendy" do que em fazer o espectador entender o que está acontecendo.

- Na primeira meia hora, você só entende que os dois amigos (Art e Patrick) brigaram em algum momento do passado por causa da personagem da Zendaya (Tashi), e que há algo simbólico agora no fato deles estarem disputando uma partida de tênis. Mas você ainda não sabe o significado do conflito, que valores estão em jogo, por que você deveria se importar por um ou por outro. (O filme tem um tipo de narrativa "retroativa" que eu não gosto muito, pois quase nada relevante acontece no tempo presente da história, e esse formato também te distancia dos personagens; o espectador pega a história já com o bonde já andando, e o filme se torna uma grande exposição de fatos via flashbacks, pra que só no fim a gente entenda a situação e quem são realmente os personagens.)

- Há um deslumbramento com o estilo de vida das elites que soa meio materialista e provinciano, como se fosse um olhar platônico de um outsider. Me lembra um pouco os filmes mais recentes do Woody Allen, desses que jovens atraentes viajam pela Europa e só fazem coisas estereotipadas de pessoas ricas, deixando tudo meio posado e artificial.

- Os atores estão bem, especialmente Josh O'Connor e Mike Faist. Já a Zendaya continua não me convencendo muito — alguém inventou que ela precisa sempre interpretar essa mulher de atitude, confiante, calejada, que não aceita papo furado de ninguém, só que pra mim o rosto dela não projeta nada disso.

- SPOILERS: O homoerotismo às vezes beira a paródia. Há aquela teoria na internet que Top Gun (1986) seria uma história gay, que dá toda uma leitura alternativa pras cenas de vestiário etc. É como se o Luca Guadagnino tivesse ouvido essa teoria e pensado: que tal fazer um filme, mas que seja realmente sobre isso?! Aí criou uma história em que amigos supostamente heterossexuais conversam nus em saunas, têm uma intimidade mais que suspeita, estão sempre se entreolhando enquanto comem bananas e outras coisas de formato fálico etc. Até a câmera consegue tornar homoeróticos certos momentos que não seriam caso fossem filmados por outro ângulo — um plano, por exemplo, destaca desnecessariamente a proximidade do pé de um amigo em relação ao rosto do outro; o cúmulo é a cena em que o Art está conversando com a Tashi no quarto, e quando ele se debruça sobre a cama, a câmera faz um movimento inexplicável que dá a impressão que o cinegrafista queria voar direto pro traseiro dele mas no meio do caminho resistiu à tentação. E todo esse homoerotismo no fim parece gratuito, algo que existe só pro deleite do cineasta, já que Art e Patrick não parecem ser de fato bissexuais, e essa suposta atração não tem consequência narrativa.

- As caracterizações e os conflitos são mal elaborados, confusos. Pra começar, não dá pra acreditar que a Tashi decidiu namorar o Patrick só com base em quem venceu aquela partida de tênis (se ela fez isso e eles aceitaram, então estamos falando de pessoas malucas, fúteis, e não há por que levar a sério os dramas que eles vivem). Não dá também para entender a briga geral quando ela machuca o joelho: por que ela fica revoltada quando Patrick aparece na enfermaria, e por que isso leva ao fim do namoro dos dois e ao fim da amizade entre Patrick e Art? Teria que ter acontecido algo muito mais grave e imperdoável pra gente acreditar que dez anos depois eles ainda estão se tratando de maneira ríspida pelo que houve.

- Graças aos cabelos, a não-linearidade da história não chega a confundir totalmente. Mas os saltos no tempo são excessivos e às vezes parecem um experimentalismo gratuito só para quebrar as regras.

- Como já sabemos qual é a situação dos personagens no futuro (no tempo presente do filme), as "reviravoltas" que ocorrem nos flashbacks (traições, acidentes etc.) não geram a mesma preocupação e interesse que gerariam numa narrativa linear, onde o espectador não sabe ainda as consequências daquilo. Os flashbacks servem mais para dar um contexto maior pra partida final, e fazê-la parecer mais dramática. A ideia do filme até que é interessante: pegar um jogo de tênis que inicialmente não parece ter maiores significados, e aos poucos transformá-lo num duelo épico conforme o espectador aprende mais sobre o passado dos personagens. O problema é que como as caracterizações e os conflitos são superficiais, mal elaborados, a disputa nunca ganha essa dimensão toda. Que valores estão em jogo? A disputa entre Art e Patrick é um duelo entre o que? Bem vs. mal? Lealdade vs. deslealdade? Disciplina vs. talento inato? Se um ganhar ou o outro ganhar, qual a mensagem?

- A ideia de Art nunca ter ganhado de Patrick é meio forçada. Serve para passar essa ideia que Art é o que tem a disciplina mas Patrick é quem tem a "raça", o talento bruto pro tênis. Mas se Patrick pudesse consistentemente vencer de um dos tenistas mais prestigiados do mundo, faria sentido ele ser um jogador tão desconhecido e fracassado?

- As tomadas da arquibancada com as cabeças acompanhando a bola e só a da Zendaya fixa num ponto seriam mais memoráveis se não fossem tiradas diretamente de Pacto Sinistro (1951).

- SPOILERS: A Tashi pedir pro Patrick perder o jogo de propósito não faz muito sentido, vai contra a treinadora intransigente que ela se mostrou o filme todo, sem falar que isso, junto com o fato dela trair o Art, torna ela detestável. A partir disso, não dá mais para desejar que Patrick e Art voltem a ser amigos, ou que Art e Tashi permaneçam juntos.

- O filme tem várias cenas longas em que você não entende por que a edição é tão espaçada, frouxa. O ápice disso são os últimos momentos do jogo, que é editado de uma das maneiras mais anti-naturais possíveis (mais toques de experimentalismo). 

- SPOILER: O sinal que o Patrick manda para Art através da raquete para desestabilizá-lo é um momento "Arma de Tchekhov" interessante, mas não tão satisfatório. O melhor uso desse recurso narrativo é quando a ideia plantada no 1º ato é distinta o bastante para ser lembrada, mas é tão bem costurada na trama que passa quase despercebida; parece só um detalhe que estava ali por necessidade. Assim, quando a ideia surge de novo no 3º ato se revelando crucial pra trama, é um momento surpreendente e satisfatório, pois revela uma lógica interna irresistível. Woody Allen fez um bom uso disso no contexto do tênis em Match Point. Mas aqui, a maneira como o sinal é introduzido no 1º ato já parece meio forçada (não havia razão para dois amigos íntimos, sozinhos, estarem falando em códigos); então quando a ideia é reutilizada no fim, o efeito não é tão eficaz.

- SPOILER: O final é cheio daquelas ambiguidades e paradoxos que querem se passar por "profundidade", "complexidade". Art ganhou a partida? Parece que sim, mas não fica totalmente claro. Se sim, Patrick perdeu de propósito ou deu o seu máximo? Se Art acabou de descobrir que Tashi o traiu, por que o abraço e o clima de comemoração? Qual será o futuro da amizade dos dois? Do relacionamento entre Art e Tashi? Não sabemos. A mensagem parece ser que o amor é confuso, o ser humano é contraditório, falho, tóxico, mas no fim precisamos uns dos outros. Fica tudo meio no ar, e o filme acaba em um frame particularmente estranho.

CONCLUSÃO: Bons atores, produção bonita, mas sex appeal e estilo não compensam a base fraca da história.

Challengers / 2024 / Luca Guadagnino

Satisfação: 4

Categorias: Idealismo Corrompido (Pseudo-sofisticação / estilo acima de conteúdo)

Filmes Parecidos: Os Sonhadores (2003) / Me Chame pelo Seu Nome (2017) / E Sua Mãe Também (2001) / Três Formas de Amar (1994) / Saltburn (2023)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Cultura: "O cinema acabou"

Esta fala do Jerry Seinfeld em uma entrevista recente repercutiu bastante, talvez por refletir o sentimento de muitos espectadores hoje:

"A indústria do cinema acabou... O filme não ocupa mais o topo da hierarquia social e cultural que ocupou durante a maior parte de nossas vidas. Quando saía um filme, se fosse bom, íamos todos ver. Todos nós discutíamos sobre ele. Citávamos falas e cenas que gostamos. Agora estamos andando por uma mangueira de incêndio com água, apenas tentando enxergar."

Quando lhe perguntaram o que havia substituído o cinema, ele disse:

"Depressão? Mal-estar? Eu diria confusão. A desorientação substituiu o negócio do cinema. Todo mundo que conheço no show business, todos os dias, pergunta: O que está acontecendo? Como você faz isso? O que devemos fazer agora?"

Demorei um pouco para entender o que Seinfeld quis dizer com "mangueira de incêndio", mas daí me lembrei de uma analogia feita pelo Jonathan Haidt (autor do best-seller The Anxious Generation) no programa do Bill Maher mês passado que talvez seja a origem desta comparação: Haidt disse que a vida hoje com celulares e redes sociais é como viver com "uma mangueira de incêndio gigante acoplada aos seus olhos e ouvidos, bombeando lixo o tempo todo".

Considerando o que discuti na postagem Smartphones, Redes Sociais e o Declínio Cultural, não é difícil imaginar como a tecnologia pode ter promovido este colapso do entretenimento. Embora Seinfeld esteja falando de cinema e Haidt de celulares, quando falam em "mangueira de incêndio", ambos estão reclamando da mesma coisa: que somos expostos hoje a um excesso de conteúdo, e a um conteúdo sem valor.

Tudo isso me parece uma consequência natural do fato de estarmos conectados à internet o tempo todo, da produção de conteúdo ter barateado muito nas últimas décadas, e da nossa atenção ser sinônimo de dinheiro para empresas e anunciantes (o que inclui artistas, produtores de entretenimento e de "conteúdo"). 

Todo mundo sempre desejou ter a atenção do público, isso não é novidade. O que mudou é que antes havia barreiras naturais que dificultavam não só a produção de conteúdo, mas também a distribuição/exibição dele. Não havia como acoplar a tal mangueira de incêndio ao espectador.

A "mangueira" antes era mais fina, a substância que passava por ela era mais rara, tinha mais valor (por ser difícil e cara de se produzir), e a mangueira também era curta — tinha que atrair o espectador por não poder se esticar infinitamente até chegar na cara dele.

A tecnologia removeu todas essas barreiras. Agora conteúdo pode ser produzido em abundância, por qualquer um, e alcançar o público onde quer que ele esteja. O resultado é a sensação de caos que as analogias de Haidt e Seinfeld tentam capturar.

Como é improvável que a tecnologia regrida, a solução me parece ser a mesma que discuti no caso da Inteligência Artificial: a sociedade se auto-disciplinar quando entender os efeitos nocivos dessas facilidades tecnológicas. A internet é como se fosse o cigarro dos Millennials e da Geração Z; o "sexo livre" da atualidade. Assim como o sexo desprotegido e o consumo indiscriminado de tabaco/açúcar hoje já são evitados por pessoas que querem ter uma vida saudável, o consumo indiscriminado de conteúdo também deverá ser no futuro.

O que me lembra de um texto que postei há alguns meses nas minhas redes sociais:

Há uma razão pela qual, numa casa, colocamos vidro nas janelas, mas o encanamento fica escondido dentro de paredes opacas. Talvez no passado, quando ainda se estava experimentando com planejamento urbano, alguém tenha tido a ideia de construir um sistema de esgoto totalmente exposto, passando pelo meio das casas e das ruas - mas ao longo dos séculos, a humanidade teve que aprender na prática que nem tudo que faz parte dela deve ficar à vista pra ser contemplado o tempo todo. Talvez um processo similar de aprendizado tenha que ocorrer num futuro próximo, só que em relação à informação. Pois é como se a internet e as redes sociais tivessem padronizado um sistema de esgoto na cultura que usa canos de vidro, por onde passa não o lixo físico, mas o lixo espiritual da população. Ou pior: um sistema no qual esgoto e água limpa fluem juntos pelos mesmos canos. Esse tipo de exposição criará suas próprias categorias de doenças, pestes, infecções, pras quais ainda não temos todas as vacinas inventadas.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Ibsen, Rand e Tubarão

A peça Um Inimigo do Povo de Henrik Ibsen, escrita em 1882, é provavelmente a obra mais "randiana" não escrita por Ayn Rand que eu já li, e parece até ter sido o protótipo do tipo de história que Rand viria elaborar depois em A Nascente e A Revolta de Atlas, que apesar de serem muito mais complexas e profundas filosoficamente, lembram muito Um Inimigo do Povo em intenção e estrutura.

A trama da peça gira ao redor de um cientista que descobre que um balneário de importância crucial para a cultura e economia da cidade está com suas águas contaminadas e precisa ser fechado para reforma, o que desagrada aqueles que contam financeiramente com o balneário. A partir disso, a peça vai elaborar seu tema central: o conflito entre o homem racional, honesto, íntegro, e os homens guiados por convenções sociais, emoções cegas e ignorância, que acabam comandando a sociedade por estarem em maioria.

Como a peça de Ibsen é crítica em relação a valores importantes da sociedade como religião e altruísmo, imaginei que, assim como no caso das obras da Rand, adaptações de Um Inimigo do Povo para o cinema seriam difíceis de serem feitas. Por curiosidade, acabei assistindo às duas adaptações mais relevantes:

O Inimigo do Povo de 1989, dirigido por Satyajit Ray (o cultuado cineasta indiano da Trilogia de Apu) transporta a história de seu ambiente original para a Índia contemporânea, e não só é um filme bastante medíocre em estilo, lembrando produções baratas de TV, como também deturpa toda a filosofia da história — transforma o herói num homem mais convencional, moderado, que não faz jus ao título da peça, e reduz tudo a um debate sobre ciência vs. misticismo (fazer uma crítica à religião pelo visto era aceitável na Índia em 1989, mas a crítica que Ibsen faz às massas, à "maioria coesa", esta é totalmente abafada).

O Inimigo do Povo de 1978, com o Steve McQueen no papel de Stockmann, já é bem superior tanto em estilo quanto em conteúdo. Visualmente, a produção te transporta muito melhor para o universo da peça, e as mensagens também são bem mais próximas do texto original. Porém, as passagens que criticam a religião e a "maioria coesa" de forma mais aberta foram amenizadas, especialmente durante o discurso de Stockmann, que não chega nem perto do original em impacto, ainda que não subverta sua intenção básica.

Se a intenção dessas amenizações era tornar a história mais palatável pro grande público, isso não foi o bastante. Ambos os filmes foram fracassos de público e crítica.

Rand é uma figura controversa por inúmeros motivos, então às vezes fica difícil entender o real motivo de suas obras terem dificuldade de serem adaptadas para o cinema e de penetrarem a cultura mainstream. Por isso, Um Inimigo do Povo acaba sendo um bom estudo de caso. Ibsen é um dos dramaturgos mais importantes de todos os tempos, uma figura bem aceita no meio artístico, e a peça defende uma série de valores compatíveis com os de Rand, mas em uma linguagem menos desafiadora, mais acessível, e sem ir a fundo em tópicos como política etc. Se o problema fosse apenas a figura pessoal de Rand e a maneira provocativa com que ela expressava suas ideias, Um Inimigo do Povo estaria livre de qualquer controvérsia. Mas pelo que observei, este não é o caso. Questionar valores como religião e especialmente a "santidade" do povo parece ser sempre um tabu, independentemente de quem você é e da maneira como você o faz.

O enredo de Um Inimigo do Povo só conseguiu encontrar seu caminho para o sucesso no cinema quando passou por uma série de metamorfoses, foi despido de seus elementos mais socialmente incômodos, e teve o antagonista modificado — em vez da "maioria coesa", passou a ser as "elites corruptas": o resultado foi Tubarão (1975), um filme que não é uma adaptação direta, mas que é frequentemente citado como uma modernização da peça de Ibsen.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guerra Civil

Vi diversas críticas dizendo que Guerra Civil era um filme neutro politicamente, que seu foco estava mais nos personagens, na homenagem ao jornalismo — a grande divisão parecia ser que alguns críticos achavam isso bom e outros achavam essa neutralidade ruim, covarde. Mas pra minha surpresa, logo na primeira cena, o filme deixa bem claro seu posicionamento ao estabelecer o "vilão" como um presidente de direita estilo Trump, que se recusou a deixar a Casa Branca após o fim de seus dois mandatos. Em inúmeras cenas, pela maneira como o filme caracteriza o conflito, fica óbvio que o inimigo aqui se trata de um governo de direita levado ao extremo, de acordo com a ótica da esquerda.

Exemplos:

- No discurso inicial, o presidente golpista fala em Deus, pátria, exalta a América, os Founding Fathers, os americanos "de bem" — um discurso totalmente conservador.

- O presidente é um tipo vaidoso, que tende a se auto engrandecer, e não aceita resultados de eleições — uma comparação clara com Trump.

- A bomba que explode no primeiro combate matando várias pessoas é detonada por um extremista que chega segurando uma bandeira americana (assim como no Brasil, a bandeira nacional foi capturada pela direita nos EUA e transformada em símbolo partidário).

- As personagens da Kirsten Dunst e da Cailee Spaeny se referem aos seus pais como pessoas alienadas, que vivem em fazendas nos estados do interior dos EUA — estão falando de Republicanos.

- Quando há conflitos nas ruas com policiais e o filme quer ilustrar quem é o lado oprimido, em mais de uma cena ele destaca uma mãe negra na multidão como representante das vítimas — nunca alguém com um perfil típico de eleitor Republicano.

- Quando os protagonistas passam por uma cidadezinha que parece estar vivendo uma rotina normal, ignorando o caos no país (ninguém está em festa exatamente, mas alguns moradores estão caminhando na calçada, e há uma loja de roupas aberta tocando música pop) isso é mostrado como um absurdo, um exemplo de alienação, como se o correto fosse o país inteiro estar em modo "lockdown" em respeito às regiões que estão em conflito — um posicionamento que reflete muito o da esquerda durante a pandemia de COVID. 

- A figura mais vilanesca do filme é o soldado interpretado pelo Jesse Plemons — um extremista loiro, racista, com uma metralhadora na mão, que protege pessoas nascidas em estados do interior dos EUA, mas executa um homem que se revela um imigrante chinês — ódio à China é algo associado a Trump.

- O local mais seguro e benevolente do filme é uma espécie de acampamento da ONU que oferece ajuda humanitária (organização que é associadas a políticas Democratas).

- As mortes ao longo do filme são mostradas em tom trágico, como coisas cruéis, injustas. O filme só se permite ter certo prazer com a violência no caso das cenas em que os tais "Republicanos" são mortos. Essas parecem vinganças justas, apoiadas pelos protagonistas.

Não estou dizendo que o fato do filme ter um lado o torna bom ou ruim. Mas me intriga o fato de tanta gente ter achado o filme neutro, apesar de todos esses elementos. É como se para boa parte do público, só valesse como posicionamento aquilo que é comunicado num nível verbal, explícito. Mas é óbvio que o poder do cinema vai muito além disso, e que sua influência maior ocorre no nível não-verbal. Se o governo autoritário mostrado no filme tivesse similaridades com uma ditadura comunista, e o presidente tivesse características e políticas que remetessem às do Biden, duvido que a esquerda chamaria o filme de neutro — considerando que ela não perde a chance de taxar um filme de racista, por exemplo, se ele mostrar personagens negros sob uma luz pejorativa, mesmo que ele não faça nenhuma afirmação preconceituosa.

Isso acontece porque a esquerda é bem melhor que a direita no que diz respeito às entrelinhas, à comunicação indireta — por isso ela domina as artes, a mídia. Já a direita precisa de palavras, formulações "oficiais" pra entender algo, por isso ela fica perdida diante de um filme como Guerra Civil, que transmite suas mensagens todas por baixo do radar, sem oferecer essas formulações. (E por isso a direita ficava irritada com quem dizia que Som da Liberdade era um filme conservador, não um thriller neutro sobre tráfico de menores.) De fato, Guerra Civil não apresenta nenhum argumento intelectual contra os Republicanos, não diz o que exatamente causou a guerra, quais políticas ele acha que deveriam ser implementadas etc. Ainda assim, cena após cena, o filme está associando a imagem dos Republicanos aos agressores, autoritários, desumanos, alienados, ao lado que representa uma ameaça existencial para a América (lembrando que este é ano de eleição nos EUA).

Para ser realmente neutro, o filme teria que ter atribuído aos "monstros" do filme características que fossem estranhas a ambos os partidos, ou então características de ambos os partidos, criando uma salada para realmente confundir. Por exemplo: além de patriota e religioso, o presidente golpista poderia também ser um ambientalista radical, alguém que pretende taxar os ricos; entre as vítimas, poderíamos ver, além de mães negras, um empresário que teve seus bens confiscados pelo governo; quando a Cailee Spaeny cita um certo "massacre da ANTIFA", em vez de deixar a fala vaga, o filme poderia dizer que a ANTIFA foi quem cometeu o massacre etc. Não precisaria de muito — bastaria 1 única cena em que alguém com características ou pautas Democratas fizesse algo maligno para essa neutralidade do filme se tornar crível. Eu não vi nenhuma. O grande álibi do filme é o fato dele dizer que o Texas e a Califórnia estão lutando juntos contra o governo. Mas por tudo que ele mostra na prática, fica mais fácil você concluir que o Texas virou Democrata no universo alternativo do filme do que achar que Republicanos e Democratas estão realmente lutando lado a lado contra uma 3ª força.

Falando da qualidade do filme em si, a decisão de situar a história no meio de uma guerra civil americana acho que acabou sendo prejudicial e se tornando uma distração, já que o filme não pretende engajar realmente com ideias políticas; apenas usar isso como pano de fundo para um road movie cujo foco está mais nos personagens e nos desafios da profissão. O verdadeiro tema de um filme é aquele que emerge das ações e dos conflitos vividos pelos protagonistas. Nesse sentido, o tema de Guerra Civil seria os desafios do jornalismo de guerra, e também o "mal da guerra" de forma geral. Mas esse tema não requer que a história se passe especificamente numa guerra civil americana fictícia, resultante da atual polarização política. Se a ação se passasse no Iraque ou na Ucrânia, o conteúdo não mudaria muito. Então há uma falta de integração entre essas duas intenções do roteiro. Fica a impressão que Alex Garland se encantou com sua ideia original de mostrar uma guerra civil nos EUA atual, mas não tinha coragem de escrever um roteiro que expressasse suas opiniões sobre o assunto abertamente. Então ele inventou uma historinha qualquer que se passa no meio de uma guerra civil moderna, e dá a ele a oportunidade de explorar este cenário, fazer uma série de insinuações pelas entrelinhas, mas sem ter que realmente se comprometer.

Ou seja, o filme é dissimulado ao estruturar sua história ao redor do jornalismo, de relações humanas, quando fica claro que é sobre o "pano de fundo" mesmo que Garland queria discutir (Zona de Interesse pelo menos foi mais honesto, deixando óbvio que o filme não era sobre nada além do pano de fundo). Um sinal óbvio é que o título do filme é "Guerra Civil", não algo que enfatiza o jornalismo ou o conflito pessoal das protagonistas. E o pôster, que deve resumir visualmente a essência de um filme, mostra dois atiradores em cima da Estátua da Liberdade — uma cena que nem existe no filme, mas que é extremamente simbólica e política. Por causa dessa desonestidade quanto ao verdadeiro tema que quer discutir, o filme acaba não dando atenção o bastante aos personagens e à suposta narrativa central, a ponto da história funcionar independentemente do interesse ideológico. Como road movie intimista, o filme é superficial, episódico, tem personagens mal desenvolvidos, e os poucos momentos em que ele flerta com uma trama revelam o roteirista frágil que Garland se mostrou em Men (2022) — como na reviravolta forçada na estrada onde a personagem sai pela janela do carro.

Guerra Civil é bem produzido, tem um bom elenco, algumas cenas tensas de combate (introduzindo o "tiro jump-scare"), e em termos de construção de universo, há ideias interessantes, detalhes que dão realismo à situação. Mas, como de costume, Alex Garland pegou um tema que parece ambicioso demais pra sua profundidade como escritor. O filme acaba parecendo o equivalente cinematográfico do "postei e saí correndo" — a pessoa que joga uma frase polêmica nas redes sociais só pra causar, se divertir com a confusão, mas que não pretende de fato elaborar suas ideias.

Satisfação: 4 (Idealismo Corrompido)