terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A Noite que Mudou o Pop

Michael Jackson uma vez disse: "a melhor educação do mundo é ver os mestres trabalhando", e acho que poucos registros em vídeo podem te dar uma visão tão memorável de "mestres trabalhando" quanto o making of de We Are The World. Já tinha visto muitos trechos dessa gravação, mas me surpreendi com as coisas que estão no documentário que eu nunca tinha visto antes. Pra mim essa produção é um dos eventos canônicos do Idealismo americano dos anos 70-90; é uma demonstração impressionante do profissionalismo dos artistas envolvidos, e um alinhamento de talentos que parece quase impossível de se repetir. 

Há uma motivação altruísta por trás do projeto como um todo que eu não aprovo necessariamente, mas isso não afeta os méritos da música e dos artistas. Teoricamente falando, é um dos melhores exemplos de como uma mensagem semi-altruísta e uma função prática/social podem estar associadas a um trabalho artístico sem torná-lo Anti-Idealista. (Como discuto no texto A intenção de um filme, essas mensagens se tornam destrutivas só quando aparecem em oposição aos valores positivos — quando vão contra a intenção de entreter, de inspirar, demonstrar talento — algo que We Are the World não faz.)

Um relato pessoal interessante: uma das memórias mais remotas da minha infância, que talvez tenha sido a primeira vez que algo artístico me provocou um sentimento profundo, uma sensação indescritível pra mim na época (que futuramente eu viria a associar ao Idealismo) é a de ter ouvido We Are the World tocando no rádio do carro dos meus pais em algum ponto dos anos 80 (eu devia ter uns 5 anos, era noite, e o carro estava estacionado em um ambiente distante da cidade, onde acontecia uma festa junina). Eu não sabia as palavras que eles estavam cantando, nem quem eram aqueles artistas, mas só pelos elementos sonoros eu sabia que era algo grandioso; algo naquelas vozes e naquela melodia dava a sensação que algo incrivelmente importante estava acontecendo no mundo, e que aquelas eram pessoas especiais, vivendo numa realidade mais elevada que não era como aquela ao meu redor, quase como vozes vindo de um Monte Olimpo moderno através do rádio. Experiências como essa, que ficam como uma tatuagem na sua alma pra vida toda, é o que eu lamento que as pessoas talvez não tenham na juventude quando a cultura se torna cínica. Quando não há nada de realmente inspirador na cultura popular, eu me pergunto se esse espaço da alma permanece vazio (se a pessoa passa a vida sem nenhum "Monte Olimpo" servindo de inspiração) ou se o espaço acaba sendo ocupado por religião, ou por qualquer coisa que seja o "ápice" do momento, mesmo que seja algo menor em estatura ou de mensagem duvidosa (como uma Elsa cantando Let It Go).

Recomendo fortemente, um dos documentários mais inspiradores que vi desde Arremesso Final (2020).

The Greatest Night in Pop / 2024 / Bao Nguyen

Anatomia de uma Queda

Por ter ganhado a Palma de Ouro, tinha me preparado para o pior, mas acabou sendo um dos exemplos mais respeitáveis de filme quase-Naturalista que vi nos últimos anos. "Quase" porque há uma história bem sólida aqui, um roteiro bem estruturado que ganha novos temas, novas dimensões a cada ato, e se transforma quase num suspense de tribunal à moda antiga. Mas Justine Triet aborda o gênero de maneira diferente, evitando o "sensacionalismo" e os contornos morais claros que haveria num filme hollywoodiano. A ênfase aqui está nas entrelinhas, nas sutilezas que tornam o caso ambíguo, complexo — o tipo de subjetivismo que crítico adora e que eu costumo condenar. Mas nesse caso, há na base de tudo um drama de relacionamento cheio de mistério, tensão, riqueza psicológica, que mantém o filme envolvente mesmo na ausência desses artifícios de thriller. Há uma racionalidade inesperada também na personagem da Sandra Hüller (que está excelente e merece todo o reconhecimento). O contraste entre o pensamento sutil e ponderado dela e a sensibilidade grosseira, enviesada e burocrática da justiça é uma fonte recorrente de satisfação ao longo da narrativa. Há algo de memorável também na própria ideia de se explorar um relacionamento íntimo no contexto de um tribunal de justiça; de levar pra um ambiente que exige fatos concretos, culpados e vítimas claras, um caso que depende de tantos elementos intangíveis. Já que a intenção do filme é argumentar que seres humanos são terrivelmente complexos, que nunca se pode conhecer alguém de fato em sua intimidade, fazer isso num tribunal de justiça torna a mensagem mais eloquente do que ela seria em qualquer outro lugar. Posso discordar da mensagem do filme e da atitude Não Idealista de querer complicar a realidade, em vez de torná-la mais clara pro espectador, mas admiro a forma inteligente e original que o filme explora o tema.

Anatomie d'une chute / 2023 / Justine Triet

Satisfação: 8

Categoria: Não Idealismo (Naturalismo) / Idealismo Diminuto

Filmes Parecidos: A Caça (2012) / A Separação (2011)

Meu Amigo Robô

Animação espanhola que não sei o que está fazendo entre as indicadas ao Oscar (até porque a "cota" de animações estrangeiras/indie já tinha sido preenchida). SPOILERS!!! A ideia do filme é contar uma história de amor/amizade por uma ótica Malevolente estilo La La Land, mostrando como eventos arbitrários da vida levam duas pessoas que se gostam a se distanciarem, até se tornarem estranhas completas e serem forçadas a olhar pro passado com aquele saudosismo melancólico de quem diz "nada é para sempre". Só que o filme constrói essa ideia em cima de uma história tediosa, sem pé nem cabeça — a separação entre o robô e o cachorro ocorre porque o robô sofre um acidente numa praia, e no pequeno espaço de tempo que o cachorro sai da praia pra buscar ajuda, a praia "fecha", o robô acidentado fica lá sozinho por diversos meses, forçando o cachorro a tocar sua vida até que a praia reabra no ano seguinte (!). É aquele caso do artista que quer que o universo seja malevolente, mas não é criativo o bastante pra bolar uma situação plausível pra sustentar seu pessimismo.

O próprio conceito da amizade entre um animal e um robô é mal elaborado. Não há discussões interessantes como em Ela (2013), que envolvam a natureza artificial do robô. Ele no fim acaba representando inocência, amor puro — o robô traz alegria pra vida do cachorro por saber olhar pra tudo com um olhar ingênuo, colorido, como uma criança (a música September do Earth, Wind & Fire é usada pra simbolizar essa alegria), mas o que essas coisas todas têm a ver com um robô? Se o cachorro criasse uma amizade com outro animal ou com um humano, o conflito básico da história permaneceria o mesmo.

Me pareceu algo que enganaria melhor se fosse um curta-metragem. Mas como longa, a pobreza do roteiro tem oportunidades demais pra se revelar (mesmo o filme não contendo diálogos!).

Robot Dreams / 2023 / Pablo Berger

Satisfação: 2

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: A Tartaruga Vermelha (2016) / Perdi Meu Corpo (2019)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guia: Críticos de Cinema

Não conheço nenhum crítico hoje que eu consiga recomendar sem grandes ressalvas. Até porque aqueles que eu conheço são os que já têm um público considerável, e ter um público considerável significa que você reflete em um bom grau os valores predominantes na cultura, o que hoje particularmente não é uma vantagem. Então praticamente todos os críticos desta lista vão cair num espectro que só vai de "totalmente detestável" a "não tão mau" na minha perspectiva.

Há os que eu sigo pra me manter informado, e os que eu sigo pra entender melhor o gosto de determinado público, mas nenhum eu sigo por de fato refletir a minha visão de cinema.

De qualquer forma, queria abrir esta postagem aqui pra avaliar alguns dos críticos/comunicadores de cinema que acho relevantes hoje. Afinal, críticos às vezes têm tanto impacto no público e na indústria quanto os filmes em si, então acho importante indicar o quão próximos ou distantes eles estão da visão Idealista. Vou começar pelos que eu sigo ou já segui com alguma consistência — que não são tantos assim — e ao longo do tempo posso ir acrescentando outros nomes e recebendo sugestões de vocês.

Hoje em dia eu prefiro críticos de YouTube e de mídias mais informais aos críticos "sérios" de jornal como os que aparecem no Metacritic/Rotten Tomatoes, pois estes parecem sempre mais preocupados em se provarem escritores eruditos, sofisticados, merecedores de seus empregos, do que intelectuais interessados em ideias, princípios, em serem honestos em suas opiniões.

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* Alguns desses críticos eu não conheço a fundo, não acompanhei por tanto tempo, então pode ser que eu cometa alguma injustiça, esteja julgando com base numa amostragem muito pequena de seus trabalhos. Se este for o caso, estou aberto a reconsiderar minha opinião (diante de evidências!).

NACIONAIS:

Waldemar Dalenogare: De todos, é o que eu mais acompanho hoje. Nem tanto pelas críticas em si, que tendem a ficar na superfície, mas pelas informações que ele traz. O gosto dele pra filmes é bem diferente do meu; ele costuma ter mais respeito pelo Não Idealismo do que pelo Idealismo (os filmes europeus/latinos que falam sobre fatos históricos, que têm relevância política/social etc.) embora ele não pareça ter nada contra o cinema tradicional de Hollywood. Mas isso não importa tanto, pois eu vejo o Dalenogare primeiramente como um jornalista do cinema. E como jornalista (ele na verdade é historiador, professor universitário — o que talvez explique a preferência por filmes históricos/políticos) acho o trabalho dele excepcional, até pela vantagem dele morar nos EUA, poder ver filmes antes de todo mundo, e ser um insider da indústria (é membro da Critics Choice Association, vota em algumas premiações). Como quase nenhum crítico hoje eu consigo apreciar pelas opiniões, pelas análises, o Dalenogare pra mim tem essa vantagem de oferecer um "serviço" útil que vai além de sua perspectiva pessoal sobre os filmes. É um ótimo guia pra se ficar por dentro das notícias da indústria, tendências de mercado, temporada de prêmios, bilheterias etc. Politicamente, ele é inclinado à esquerda (embora não seja muito militante, nem "woke"), então quando as notícias envolvem coisas como greves, cotas de tela, tem que ficar atento a este viés. Recomendo muito as lives que ele faz de Sábado no YouTube com as notícias da semana.


Pablo Villaça: Se comunica muito bem, tem um conhecimento de cinema enorme e uma grande capacidade analítica, mas assim como todo intelectual de esquerda, seu poder de manipular ideias e sustentar racionalizações é tão grande quanto sua inteligência. Então ele representa aquele mesmo tipo de ameaça do professor universitário carismático, que tem autoridade sobre um tema, um poder de influência grande sobre os alunos, mas que é capaz das distorções intelectuais mais hediondas pra promover sua ideologia política, que é sua verdadeira paixão. Já vi algumas análises muito interessantes dele, principalmente quando ele foca em técnicas de direção, aspectos mais delimitados de um filme (fala bem até de E.T.), mas quando ele fala dos filmes que realmente representam seus valores, ele se prova o mais perigoso e "Anti-Idealista" de todos os críticos desta lista (recentemente ele postou uma análise de 1h argumentando que Star Wars: Os Últimos Jedi é o melhor filme de toda a saga Star Wars — o que me fez enxergá-lo quase como um arqui-inimigo, uma espécie de antítese de tudo o que eu defendo aqui). 


Isabela Boscov: Apesar da cultura, do profissionalismo, ela parece manter uma superficialidade estratégica em suas críticas pra se comunicar com um público mais amplo. Ela só detona filmes, por exemplo, quando é extremamente seguro fazê-lo; quando a opinião pública já deu permissão. Por isso, às vezes ela me parece mais uma comunicadora/guia de cinema do que uma crítica que coloca avaliação e análise em primeiro lugar. Ela evita posicionamentos que possam soar ideológicos (nunca fala mal da "agenda woke", até quando esta passa dos limites), foca muito em atores, personagens, nas sutilezas dos relacionamentos da história, buscando sempre elogiar as pessoas envolvidas na produção. Então vejo os vídeos dela mais pela personalidade carismática, por achar agradável ver pessoas mais cultas e maduras falando sobre cinema (um pouco como era o Rubens Ewald Filho antes) em vez desses YouTubers jovens que só falam de cultura pop e não ligam para cinema de verdade. Ela parece se guiar pelo "bom senso", pelo "equilíbrio", dificilmente fala coisas totalmente absurdas — mas nem sempre o bom senso dela bate com o meu (ela é bem adepta do Não Idealismo), e temo que se ela fosse um pouco mais assertiva e aberta em suas opiniões, ela se provaria não muito diferente de um Pablo Villaça.


Tiago Belotti (Meus 2 Centavos): Acompanhava o Tiago mais há uns 3, 4 anos, antes dele ter as crises de depressão e ficar menos consistente no canal. Nunca concordei muito com ele, mas achava interessante acompanhar o Meus 2 Centavos não só pelo humor (acho que ele tem carisma e sabe se expressar muito bem em vídeo), mas também porque ele representava o gosto de uma fatia relevante do público (o típico jovem-adulto masculino votante do IMDb), então era uma forma de eu ficar mais em contato com esse tipo de espectador, entender melhor o "Senso de Vida Malevolente", o "Idealismo Corrompido" que define muitos dos cinéfilos. Mas de uns anos pra cá, comecei a me irritar com ele e deixei de acompanhar o canal. Não sei se ele que ficou mais "corrompido" ou eu que estou com menos paciência.



Max Valarezo (Entre Planos)
: Tem tudo pra virar um Pablo Villaça quando ficar mais velho. É culto, se comunica de forma inteligente, tem uma postura profissional — e está totalmente comprometido com políticas de esquerda e com o Anti-Idealismo no cinema.




Alexandre Linck (Quadrinhos na Sarjeta): É mais focado em quadrinhos, mas discute alguns filmes também, geralmente por uma ótica política/ideológica. Me deparei com uma análise interessante dele no YouTube sobre a "estética totalitária" na cultura pop (filmes do Zack Snyder etc.) e apesar do viés claro de esquerda, achei o conteúdo inteligente e interessante do ponto de vista educativo. Resolvi assistir a mais alguns vídeos, mas depois do terceiro já estava com dor de cabeça. Não só dá a impressão que para ele tudo é política — que as mensagens explícitas ou implícitas da história importam mais que qualquer questão artística — como ele é um dos esquerdistas mais radicais que já vi na área. Pegando a crítica de Ficção Americana e a análise do quadrinho Confinada como base, fiquei com a impressão que o prazer dele é pegar obras que estão se esforçando para parecerem progressistas, e mostrar que elas são hipócritas, que não foram longe o bastante no progressismo. Confinada (que felizmente nunca li no Instagram) me parece superar Bacurau em seu ódio explícito dos "privilegiados". Mas para Linck, o fato da personagem branca ser detestável e mau caráter acaba fazendo ela roubar a cena e se tornar mais memorável do que a personagem negra, que é boa. O senso de vida malevolente de Linck o faz achar que personagens maus são sempre mais fascinantes que personagens bons, portanto, ainda seria uma forma de racismo dar aos brancos a "honra" de serem os mais detestáveis! E assim chegamos ao fim da linha do altruísmo e da virtofobia. Qual seria a solução ideal para Linck? Que a negra fosse má e a branca fosse boa? Que todos fossem maus? Que os personagens fossem todos negros? A resposta provavelmente é: a opção que não permita que a história sirva, em nenhum nível, os interesses dos "privilegiados"; que represente um sacrifício total e autêntico da "classe opressora" em nome da "classe oprimida".




INTERNACIONAIS:

The Critical Drinker: Este já é um que me interessa pelas análises. Em certos casos me surpreendo com a similaridade entre as observações dele e as minhas. A grande diferença é que ele é conservador e parece falar de cinema apenas na medida em que isso apela pro público geek de direita, agrada os algoritmos do YouTube, e serve pra atacar a esquerda woke. É mais um comentarista cultural do que um crítico de fato, e ele raramente vai falar de filmes menos comerciais, do cinema de forma mais ampla; apenas sobre tópicos quentes e controversos como Disney, Marvel, Star Wars etc. Ele representa aquele perfil atual de conservador que só se interessa por questões sociais, e que não condenaria um filme ideologicamente "só" por ser anticapitalista, por promover a destruição dos EUA (afinal, ele divide com a esquerda muitos dos mesmos princípios éticos; está sempre falando em altruísmo, tem auto-sacrifício como sinônimo de virtude etc.). Então apesar de muitas vezes apontarmos "negativos" similares nos filmes atuais, não acho que a visão positiva dele de arte se assemelharia muito à minha. Ainda assim, acho as observações dele sobre a decadência de Hollywood frequentemente perspicazes. Ele parece coletar todos os argumentos do seu público-alvo na internet antes de fazer uma análise, o que faz seus vídeos parecerem a "voz" de um público, mais até do que uma opinião pessoal (o personagem rabugento que ele encarna reforça essa ideia). As discussões acabam sendo repetitivas e limitadas muitas vezes, mas ele tem inteligência e respeito por qualidade cinematográfica o bastante pra promover alguns valores positivos no meio de todo o "hate".


Dan Murrell: Talvez o meu predileto hoje. Ele tem uma habilidade com palavras que admiro (fala de um jeito que parece ao mesmo tempo espontâneo e bem escrito), e diferentemente do Dalenogare, as críticas dele têm uma objetividade que me faz entender a experiência que ele teve, o que há de essencial e distintivo em cada filme, que elementos o levaram a ter certas reações — então concordando ou não com a avaliação final dele, eu sempre sinto que pelo menos ele viu o mesmo filme que eu. Ele é fã do Spielberg, cresceu com referências cinematográficas similares às minhas, só que ele é muito mais adaptado à cultura atual do que eu; está mais inserido no gosto mainstream, gosta de muitas coisas modernas, de filmes de arte Não Idealistas etc. Como o Dalenogare, ele também é uma boa fonte de notícias da indústria, e também tende à esquerda (ele, no entanto, costuma fazer um esforço maior pra justificar suas posições e reconhecer a existência de outros pontos de vista pra soar menos enviesado).


Patrick (H) Willems: Comecei a acompanhá-lo há pouco tempo. Ele não faz críticas de filmes individuais, mas as "video essays" dele sobre a indústria do cinema costumam ser bem interessantes, ricas em informações, e os vídeos são bem produzidos e divertidos em si — embora eu nunca ache que ele chegue no X da questão, na raíz do problema que está discutindo. É o outro lado da moeda do The Critical Drinker. Ambos acham que o cinema decaiu nas últimas décadas e estão atrás de um culpado, mas ambos parecem parcialmente cegos pois se recusam a olhar para os próprios valores e reconhecer que eles também contribuem para o estado atual do entretenimento. Pro Critical Drinker, é tudo culpa da esquerda. Não conheço o Patrick Willems o bastante pra saber o quanto ele culpa a direita. Mas certamente ele se recusa a ver qualquer problema na influência da esquerda em Hollywood (inclusive tem orgulho de bloquear comentários no canal que incluam o termo "woke"). Em vídeos como Who Is Killing Cinema? – A Murder Mystery ele parece um Sherlock Holmes usando lupas e instrumentos sofisticados pra encontrar pistas invisíveis, e até chegando a conclusões interessantes, mas ignorando o elefante branco na sala que qualquer míope consegue ver. Ainda estou coletando impressões. Em alguns vídeos achei ele bem sensato, já em outros, ele me pareceu completamente perdido e sem princípios (como no vídeo sobre Tenet e os "Vibes Movies" no qual ele celebra a Não-Objetividade e tudo aquilo que eu condeno em textos como Emoções Irracionais e 1999 e o Declínio da Objetividade). Talvez seja mais um desses críticos cujo valor está mais nas informações brutas, no trabalho de pesquisa, do que nos julgamentos e opiniões.


Mark Kermode: Pelo conhecimento, pela experiência na área, e pela atitude "apertei o botão do fo*****" (que parece vir da idade) às vezes tiro uns insights interessantes dos vídeos dele (e quem sabe umas risadas). Mas é a velha maldição: quanto maior a cultura e o potencial intelectual do crítico, piores parecem ser seus valores. Em gosto e princípios estéticos, não temos muito em comum.



Chris Gore e Alan Ng (Film Threat): O Film Threat tem cumprido um pouco a função que o Tiago Belotti cumpria pra mim no passado. Frequentemente discordo das avaliações dos dois, mas além da dinâmica entre Chris e Alan ser sempre divertida, eles são um ótimo termômetro do público mainstream — especialmente o público masculino, inclinado à direita (mas sem cair naquela bolha revoltada do Critical Drinker). É um canal descontraído, que não busca análises tão profundas sobre os filmes, mas que foge da banalidade por ser comandado por insiders com conhecimento real sobre a indústria, e que frequentemente surgem com informações/notícias de primeira mão.


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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Segredos de um Escândalo

Se destaca pelas caracterizações, pelas performances (lembra um pouco Tár pelo retrato sutil de uma mulher madura, misteriosa, envolvida em um escândalo sexual). A história tem um ponto de partida interessante com a chegada da personagem da Natalie Portman (uma atriz que vai interpretar a personagem da Julianne Moore num filme e precisa conviver com ela como preparação para o papel), mas nunca se torna o drama trágico, cheio de revelações bombásticas que a premissa e a direção sugerem (Todd Haynes cria uma tensão constante e uma atmosfera macabra que não são totalmente justificadas pelo conteúdo — eu pelo menos não consegui ficar horrorizado com o caso só por envolver um menor). Nunca surge também um conflito real entre as duas protagonistas. Há um incômodo no ar, mas não um conflito de interesses que dê uma direção pra história, faça você se perguntar o que irá acontecer. Só lá pela 1h20 de filme a Natalie Portman faz algo que poderia levar o filme nesse caminho, mas a ação não tem consequências tão grandes. A "razão de ser" do filme acaba sendo o estudo de personagem mesmo, as atuações (Julianne Moore pra mim está melhor que pelo menos 3 das atrizes coadjuvantes que foram indicadas ao Oscar). Só não achei tão interessante quanto Tár pois não vi aqui a mesma inteligência no roteiro e o mesmo propósito por trás dos toques experimentais da direção, que nesse caso soam mais como Pseudo-Sofisticação  mesmo (um uso de mistério e ambiguidade pro filme parecer mais profundo do que é).

May December / 2023 / Todd Haynes

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo (Crítico) Imperfeito / Não Idealismo

Filmes Parecidos: Notas Sobre um Escândalo (2006) / Animais Noturnos (2016) / O Leitor (2008) / Pecados Íntimos (2006) / Big Little Lies (2017—) / Persona (1966)

Twitter

Sinto falta de um lugar pra fazer comentários mais casuais sobre atualidades, comentar ao vivo premiações e coisas do tipo. No momento tenho zero seguidores no Twitter/X, mas se alguns dos que me acompanham aqui me seguirem lá também, pode se tornar uma boa plataforma — até porque as postagens mensais que eu fazia no formato "Cultura"/"Diário" eram praticamente um Twitter dentro do blog.


domingo, 21 de janeiro de 2024

Meninas Malvadas (2024)

Mean Girls / 2024 / Samantha Jayne, Arturo Perez Jr.

Satisfação: 0

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Os Rejeitados

Assim como Folhas de Outono, Os Rejeitados tenta adquirir certo valor e se distanciar da mediocridade do cinema atual reproduzindo fielmente a estética do cinema de uma outra época (neste caso, estudos de personagem semi Naturalistas da Nova Hollywood dos anos 70/80). Mas é um caso mais bem-sucedido que Folhas, não só por se inspirar num tipo menos cru de Naturalismo, mas também por não parar só no estilo, e ter de fato personagens bem construídos, bons atores e diálogos inteligentes pra oferecer.

Não diria, no entanto, que é um grande roteiro. O filme é quase uma história estilo Sociedade dos Poetas Mortos sobre um professor inspirando seus alunos a levarem a vida mais a sério. E é quase uma comédia estilo Melhor É Impossível sobre um senhor amargo e antissocial que aprende a ser mais positivo com a chegada de uma pessoa mais jovem e descontraída em sua vida. Mas nenhuma das duas narrativas é desenvolvida o bastante pra criar um gancho envolvente e um desfecho satisfatório. 

O personagem do Paul Giamatti começa como um professor amargurado, de meia-idade, alcoólatra, fumante, vesgo, fora de forma, sem amigos, frustrado amorosamente, que fede a peixe por causa de uma condição rara de saúde (li em algum lugar que ele teria hemorroidas também), e no fim, ele está desempregado, um pouco mais otimista, querendo largar a bebida — o tipo de arco dramático que é tão sutil você precisa forçar um pouco a vista pra perceber que não é uma linha reta. Outro problema é que nunca fica claro o que havia de tão especial no aluno interpretado pelo Dominic Sessa pra desencadear essa transformação, considerando que o Paul trabalhou a vida inteira naquela escola e convive o tempo todo com jovens que são o oposto dele em personalidade (Angus teria sido o primeiro a mostrar qualquer potencial esse tempo todo?). Ter explicações claras pra questões emocionais é visto como "simplista" por naturalistas, que preferem deixar as relações entre causas e efeitos meio vagas, acidentais, e evitar qualquer coisa que possa soar como uma mensagem para o espectador.

Minha impressão é que o que desperta o interesse de Paul não é o potencial para o sucesso que ele vê em Angus, mas o potencial para o fracasso. Paul vê em Angus seu "eu" mais jovem, e o que ele tem de valioso a ensinar não são dicas de como superar essas inaptidões (afinal, o próprio Paul não as superou), mas de como lidar melhor com as "porradas" da vida, pra quem sabe Angus poder fracassar de maneira um pouco mais digna que Paul no futuro. A história é basicamente sobre pessoas fracassadas encontrando conforto na companhia de outras pessoas fracassadas, e descobrindo que é melhor fracassar em grupo, ao lado de pessoas que possam ouvir suas dores, perdoar seus defeitos, encobrir suas trapaças, do que fracassar sozinho. Quando os críticos dizem que Os Rejeitados é "humano", "tocante", é deste sentimento de compaixão pelo fracasso que eles estão falando.

Paul Giamatti está bem e super convincente no papel (o que é triste de certa forma), mas Da'Vine Joy Randolph ser considerada a grande atriz coadjuvante da temporada só faz sentido sob essa lógica de prêmios que não vão pros melhores de fato, mas pros "mais desavantajados que fizeram um trabalho de destaque" (Viola Davis está muito melhor em Air, mas é uma atriz já consagrada, interpretando uma mulher forte, o que parece tirar "momentum" dela em premiações).

The Holdovers / 2023 / Alexander Payne

Satisfação: 4

Categoria: IC / NI

Filmes Parecidos: Armageddon Time (2022) / As Confissões de Schmidt (2002) / Sideways: Entre Umas e Outras (2004)

sábado, 13 de janeiro de 2024

Folhas de Outono

Quando críticos que não gostam do Naturalismo tentam descrever este tipo de cinema, às vezes parece que eles estão exagerando e que na prática não existem filmes literalmente assim, onde nada acontece, e que focam em pessoas totalmente desinteressantes — como Hitchcock, quando inventou o termo "sink to sink pictures" e imaginou a situação cômica da dona de casa que passa o dia lavando louça, e quando finalmente pode descansar e ir com o marido ao cinema, chega lá e se depara na tela com uma mulher lavando louça. A maioria dos filmes Naturalistas são casos mistos, mas Folhas de Outono é um filme conceitual que parece ter consciência das linhas que dividem essas diversas teorias do cinema e se esforça para ser um representante puro dessa tradição.

Só que em vez de algo autêntico, com um mínimo de conteúdo e caracterizações convincentes, o filme é um exercício vazio de estilo que parece mais um cosplay de um filme de arte antigo, que está na dúvida se quer se fantasiar de algo da Nova Hollywood dos anos 70, ou de um filme europeu neorrealista dos anos 40/50. Parece algo feito por alguém que passou a vida toda lendo livros de história do cinema, desses que colocam cineastas como Bresson, Visconti, Godard e Ozu no topo da pirâmide, e agora está tentando capturar o espírito desses filmes puramente através da estética, criando uma série de imagens que remetam às ilustrações que aparecem nesses livros, que parecem sempre achar que há algo "poético" na imagem de um personagem de meia-idade, de aparência cansada, num local comum, olhando para o vazio.

E se alguns dos clássicos que o filme tenta imitar já eram "pseudo-sofisticados" na época, este aqui seria a versão wannabe de 2023, que reflete a mesma queda em substância e originalidade do cinema atual que vemos em filmes de Hollywood que tentam imitar blockbusters lançados há 40 anos. Há uma breve cena no filme em que a protagonista sai para comprar um prato extra para seu convidado (sugerindo que ela é tão solitária que só tem 1 prato em casa), e depois do encontro malsucedido, joga o prato sujo inteiro no lixo. Achei um ótimo toque de caracterização — só que isso representa uns 10 segundos de um filme de 81 minutos. Um filme sem trama que queira se sustentar apenas em caracterizações deveria ter algo assim em toda cena, mas eu não consigo pensar em três ou quatro outros momentos de Folhas de Outono que sejam igualmente interessantes. O filme é tão vazio que, com alguns exageros e uma trilha de risadas, certas cenas poderiam facilmente virar o sketch do Monty Python "French Subtitled Film" (que explica esse tipo de cinema melhor que qualquer texto teórico).

É curioso, no entanto, que no meio desse vazio o filme esteja sempre alfinetando o entretenimento americano (nas cenas do karaokê ou do cinema, por exemplo), tentando denunciar os "males do capitalismo" em cenas como as dos patrões sendo hostis com os empregados (apenas por "bobagens" como o homem ser alcoólatra e beber escondido no trabalho, e a mulher ser pega roubando da empresa!). Isso me fez pensar, saindo da sessão, em algo que para mim sempre foi uma suspeita: que talvez não exista Não Idealismo de fato. Que no fundo, todo filme Naturalista ou Experimental é apenas um filme Anti-Idealista que ainda não saiu do armário.

Kuolleet lehdet (Fallen Leaves) / 2023 / Aki Kaurismäki

Satisfação: 0

Categoria: NI / AI

Filmes Parecidos: Jeanne Dielman (1975)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Analise Idealista da Coca-Cola

Vamos à requisitada análise Idealista da Coca-Cola!

A ideia aqui é dar um exemplo de como valores podem se manifestar no mundo concreto/material pra quem sabe ajudar pessoas que tenham um estilo cognitivo mais verbal a enxergar com mais facilidade valores e "mensagens" em situações que não envolvem palavras.

Emoções estão sempre conectadas a valores. Numa pessoa saudável e racional, valores positivos estarão associados ao prazer, e valores negativos ao sofrimento. Aquilo que provoca indiferença seria um não-valor, pelo menos naquele momento.

Se você for uma pessoa com bons hábitos epistemológicos, com mente e emoções razoavelmente alinhadas, e além disso for bom em introspecção, será possível muitas vezes inverter o processo normal de cognição e, ao observar suas emoções em qualquer experiência, conseguir decifrar qual o valor abstrato que um objeto externo representa.

Claro que é sempre necessário fazer uma "dupla verificação" usando a lógica pra checar se sua conclusão faz sentido. Mas este é muitas vezes o melhor método pra descobrir os valores abstratos por trás das coisas do dia a dia, como os que revelarei abaixo na análise da Coca-Cola.

Coca-Cola: A Bebida

(Lembrando que estou me baseando aqui nos valores dos 4 Pilares do Idealismo ilustrados no Mapa de Valores). 

No caso de comidas e bebidas, não vou falar tanto em Objetividade, que é um valor mais ligado à comunicação, a coisas que exigem um intermediário traduzindo fielmente a mensagem pra que ela chegue ao interlocutor. Em experiências sensoriais, a "mensagem" já está nas próprias sensações, então não há como a comunicação ser falha no mesmo sentido (embora dê pra ser criativo e imaginar formas de tornar um alimento "não-objetivo" também).

Pra começar, vamos pegar como base uma bebida neutra que não provoque sentimentos positivos ou negativos na maioria das pessoas: a água em temperatura ambiente, talvez não tão perfeitamente limpa e purificada (pois a pureza absoluta poderia já levar a uma emoção positiva ligada à Benevolência).

Este seria o Não-Idealismo. O Naturalismo em forma de bebida. Uma água nesta condição teria uma função prática de nos manter hidratados, mas não é algo que consumiríamos por prazer, pra buscar satisfação, exceto talvez no caso de uma pessoa doente, morrendo de sede, que não tenha outra opção no momento (que é o equivalente à situação espiritual dos que priorizam o Naturalismo na arte).

A partir desta base, tudo que tornar uma bebida mais prazerosa e interessante para o consumidor, representará um valor positivo — um movimento do centro do Mapa de Valores em direção a algum valor específico.



Benevolência

Como já mencionei, a própria limpeza do líquido e o senso de que estamos bebendo algo puro, seguro, livre de bactérias, já envolve uma experiência básica de Benevolência. Mas isto ainda é muito elementar pra se destacar aqui.

Na Coca-Cola, assim como em todos os refrigerantes, o principal gerador de Benevolência é a doçura do açúcar ou do adoçante, que não existe na água. 

Neste ponto, poderíamos encontrar um valor equivalente em outros líquidos como sucos de fruta, por exemplo. Nenhum valor que vou citar aqui é exclusivo de refrigerantes. O que torna a Coca-Cola mais "Idealista" que outras bebidas é o fato dela reunir uma série de valores positivos no líquido, que foram combinados intencionalmente por um criador com o objetivo de proporcionar uma experiência prazerosa para o consumidor.

Outros refrigerantes da mesma categoria buscam fazer a mesma coisa. A diferença entre a Coca-Cola, a Pepsi, e o Dolly Cola, seria principalmente uma diferença em nível estético. A Coca-Cola teria uma "nota" mais alta que o Dolly Cola por ter uma fórmula melhor, um sabor mais "redondo", atemporal, menos enjoativo, etc.

Excitação

Além de Benevolência, o Valor mais fundamental presente no refrigerante que precisa ser destacado é o da Excitação. Parte da Excitação está em coisas que vão além do líquido em si, mas que costumam fazer parte da experiência: o fato da Coca-Cola ser frequentemente servida gelada (extremos / emoções intensas), com gelo (que além de gelado, é um objeto "mágico" que passa por uma transformação de estado). Mas em termos de Excitação, a grande "estrela" do refrigerante é o gás e as bolhas criadas por ele. As esferas brilhantes, espelhadas, que parecem se materializar magicamente dentro do copo, ascender em uma direção contrária à gravidade, que às vezes grudam por razões desconhecidas na parede do copo, e depois estouram na superfície numa grande celebração, fazendo um chiado (água com efeitos sonoros!), provocando cócegas no nariz e fervilhando na boca... Tudo isso representa estímulo, movimento, brilho, surpresa — o que torna o gás do refrigerante um agente perfeito pro valor da Excitação.

(Água com gás seria uma água com mais Excitação apenas, mas não com outros valores que seriam necessários pra torná-la de fato um produto "Idealista"). 

Autoestima

Autoestima, por ser um valor mais ligado à indivíduos, não é tão detectável numa bebida. Mas diria que o fato da Coca-Cola ser preta carrega em si um elemento de seriedade, força — qualidades que um refrigerante amarelo ou cor-de-rosa não teriam, por exemplo. Também daria pra associar a cor escura, assim como ao ardido do gás, a um valor negativo como Malevolência (escuridão / dor). Mas como esses são valores secundários na bebida que não chegam nem perto de tornar a experiência desagradável, eles acabam funcionando mais como um Contraste para os valores positivos, servindo pra realçar o prazer do doce, que seria o valor principal (se coisas como o gelado ou a acidez do refrigerante fossem realmente incômodas, crianças não gostariam tanto de Coca-Cola). 

Ou seja, através de estímulos puramente sensoriais como estes, que envolvem a visão, o tato, o paladar, a audição, a Coca-Cola te dá a experiência de sair da monotonia do dia a dia e entrar em mundo excitante, cheio de movimento, magia, estímulos, emoções intensas; em uma narrativa Benevolente que exige uma certa dose de coragem no início pra que você encare a "escuridão", dê um passo em direção ao desconhecido, mas que eventualmente te leva a um lugar doce, refrescante, prazeroso e livre de qualquer ameaça.

Coca-Cola: A Marca

Claro que há mais do que isso na experiência, pois a Coca-Cola enquanto marca acrescenta às emoções já presentes na bebida uma outra camada de significados que chegam ao consumidor por uma via mais intelectual (neste estágio sim a Objetividade pode se tornar um fator relevante).

A Coca-Cola enquanto marca reforça valores como Benevolência e Excitação através de suas propagandas, que têm sempre músicas alegres, jovens se divertindo, famílias reunidas no Natal, ursos fofos, crianças etc. O próprio nome "Coca-Cola" é feito de sons, rimas e ritmos que remetem a brincadeira, felicidade, inocência ("Jägermeister" não teria o mesmo efeito). E nesse nível a Coca-Cola tem uma grande vantagem sobre os outros refrigerantes por ser a marca número 1 do ramo; o refrigerante mais vendido, o mais bem sucedido, o mais clássico, o original, o que tem mais história, mais status etc. É aqui, mais até do que na bebida em si, que o valor da Autoestima se manifesta na experiência da Coca-Cola. Diante de uma geladeira onde há uma Coca-Cola e um refrigerante de Cola regional (vamos supor que este tenha um sabor similar e seja igualmente seguro de beber), a única coisa que faria uma pessoa escolher o refrigerante regional em vez da Coca-Cola seria algo no espírito da "padrãofobia"; um problema com o valor da Autoestima.

Críticas: Anti-Idealismo e Universo Malevolente

Muitos condenam a Coca-Cola e refrigerantes por acharem que eles são nocivos para a saúde. Se isso fosse uma verdade óbvia, eu não classificaria a Coca-Cola como "Idealista". Ela estaria mais na categoria de uma droga que te dá prazer a curto prazo, mas representa um impulso autodestrutivo. Mas refrigerantes estão naquela categoria de coisas como carne vermelha e café, que ninguém parece saber ao certo o quanto fazem de bem, mal, e em que quantidade. Eu nunca vi, como no caso do cigarro, pessoas morrendo claramente por causa do consumo de refrigerantes. Eu bebo Coca-Cola regularmente há mais de 35 anos, e meus exames de sangue sempre foram perfeitos. O açúcar da Coca-Cola normal sem dúvida pode engordar, provocar problemas de saúde se consumido em excesso, ou por pessoas com certas condições. Mas daí o problema seria o excesso, a irresponsabilidade do consumidor. A Coca-Cola em si não deixaria de ser Idealista (assim como um bolo de chocolate não deixaria).

Mas mesmo que algo nocivo fosse descoberto no refrigerante, nada impediria este ingrediente de ser removido da fórmula, e a Coca-Cola continuar proporcionando o mesmo prazer pro consumidor, assim como cocaína um dia já foi um ingrediente da Coca-Cola e eventualmente foi removida quando todos perceberam que era uma substância perigosa.

A noção de que existe algo indispensável na Coca-Cola que não pode ser removido, e que é letal, é puro Senso de Vida Malevolente: a ideia de que o universo por alguma razão é inimigo da vida humana. Frequentemente, esta crença é reflexo também de Anti-Idealismo e de um ódio do capitalismo e da cultura ocidental (pessoas assim estão sempre tentando de qualquer jeito associar marcas americanas de sucesso ligadas à diversão — como McDonald's e Disney — à morte, corrupção moral, intenções maléficas, conspirações etc.).

Branding: Pepsi & Michael Jackson

Entender como valores se manifestam nesses níveis "subverbais" pode ter grandes benefícios pra nossas vidas pessoais, pra apreciação da arte, e até pros negócios. O mundo do Branding, por exemplo, depende muito desse tipo de leitura. Se você entende os valores "ocultos" por trás das coisas, você pode se expressar e se comunicar muito melhor.

Não é arbitrário, por exemplo, que o Michael Jackson foi escolhido pra fazer propaganda pra Pepsi nos anos 80.

Não vou fazer uma diferenciação aqui entre Pepsi e Coca-Cola. Talvez haja uma diferença em "nível estético" entre as duas, mas ambas buscam transmitir valores bem parecidos. E talvez, a Pepsi ter se associado ao artista número 1 da época tenha sido uma estratégia pra compensar sua desvantagem em "Autoestima" em relação à Coca-Cola, e deixar de ser vista como a número 2. Mas acho que o Michael seria igualmente adequado em um comercial da Coca. Por quê:

Assim como a Coca-Cola adiciona valores ligados a Benevolência, Excitação e Autoestima à bebida neutra que seria a água pura, um astro com características como as do Michael faz algo parecido em relação ao ser humano médio. A intensidade, o espírito de diversão, os movimentos que desafiam as leis da gravidade, a metamorfose e capacidade de mudar de "estados", as roupas extravagantes (a jaqueta preta com pontinhos brilhantes na propaganda abaixo te remetem a alguma coisa?) — são todas coisas estimulantes ligadas a Excitação que o Michael incorpora, e que não são encontradas em um indivíduo típico (ou em um artista Naturalista).




O fato do Michael se apresentar de maneira agressiva por fora, passar um ar de "durão" (as roupas e timbres com influência do rock) mas na prática oferecer uma música alegre, inocente, não-ameaçadora, cria através do Contraste uma narrativa Benevolente análoga à do refrigerante "sombrio", levemente ácido, que no fim se revela doce e amigável.

Coca-Cola e Pepsi combinam com artistas pop dessa tradição. Não combinariam muito com uma Adele, por exemplo, que não se associa tanto ao valor da Excitação. Adele ficaria melhor num comercial de vinho. Já astros do rock não costumam ter a doçura necessária pra combinar com refrigerante, e seriam mais adequados ao lado de bebidas alcoólicas como cerveja, whisky, tequila, que representam uma diversão mais rebelde e perigosa.

_____

Espero que a análise tenha feito jus à expectativa que sem querer acabei criando, e que vocês vejam agora a Coca-Cola como um entretenimento líquido na tradição do Idealismo!

Pra finalizar, um registro do início de uma relação especial com o refrigerante: eu com 3 anos de idade (aos 0:34 min) num comercial da Coca-Cola de 1986 que meu pai dirigiu:

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

A Sociedade da Neve

Ótimo drama de sobrevivência que poderia facilmente ter virado uma glorificação do sofrimento como O Impossível (2012), também do diretor J.A. Bayona, mas que consegue usar os horrores do acidente de maneira mais interessante — não pra incomodar o público gratuitamente, mas pra enfatizar a resiliência daqueles que sobreviveram. A cena da queda do avião e a ilustração do que ocorre fisicamente dentro da cabine torna a cena uma das mais marcantes que já vi envolvendo acidentes aéreos. Mas este é o momento em que o filme precisa ser gráfico pra passar a dimensão da tragédia. Depois, a violência nunca precisa chegar no mesmo nível pra deixar o espectador apreensivo (como em Psicose ou O Resgate do Soldado Ryan). Inclusive me surpreendi quando, aos 40 minutos de filme, os personagens já estavam apelando pro canibalismo (algo esperado pra quem conhece a história ou já assistiu Vivos de 1993). Me perguntei como o filme preencheria os 100 minutos seguintes, pois num filme só focado no sofrimento (achei que o filme poderia seguir por este caminho por causa de alguns temas cristãos/altruístas), o canibalismo teria que estar mais próximo do "ápice" final. Porém o filme continuou interessante na segunda metade (especialmente no ato final) pois seu foco maior está na sobrevivência. Não se trata de uma história sobre vítimas passivas apenas resistindo enquanto aguardam um resgate emocionante. São as ações e as decisões inteligentes dos sobreviventes ligadas à comida, aos ferimentos, à locomoção, à proteção contra o clima hostil, que determinam o destino deles e tornam a narrativa dinâmica e envolvente.

A ausência de um protagonista talvez torne o filme um pouco vago e impessoal, mas há diálogos ricos o suficiente ao longo do roteiro (como o monólogo comovente do homem cuja esposa foi soterrada no avião) que dão uma dimensão humana à história, e compensam parcialmente a ausência de um personagem individual mais aprofundado.

Um pouco como Godzilla Minus One, é mais um exemplo de filme "estrangeiro" em 2023 que consegue fazer um filme hollywoodiano melhor que Hollywood.

La sociedad de la nieve / 2023 / J.A. Bayona

Satisfação: 8

Categoria: I-

Filmes Parecidos: Caminho da Liberdade (2010) / Ártico (2018) / Livre (2014)

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Padrãofobia e Virtofobia

No mundo do cinema, costumo discutir como o Anti-Idealismo na cultura faz artistas sem talento receberem mais oportunidades que artistas de real mérito, como personagens de mau caráter se tornam mais populares que personagens heroicos, etc. Mas o "ódio do bom" e o ressentimento contra virtude ocorrem em diversas áreas e se manifestam em contextos mais cotidianos também. Assim como um objeto trivial como um canudo de plástico pode se tornar um símbolo pra uma discussão mais ampla sobre valores (prazer vs. autossacrifício, individualismo vs. coletivismo, capitalismo vs. socialismo — como discuti no texto sobre a Pandemia), a aparência das pessoas carrega em si uma série de significados também, e a beleza daqueles considerados "padrões" passou a carregar um significado negativo na cultura atual. 

Beleza em si não prova virtude de caráter, mas tampouco prova falta de caráter. Na ausência de qualquer outro fator, uma pessoa saudável deveria responder positivamente à beleza, nem que fosse por pura associação subconsciente entre estímulos sensoriais e valores (como um pôr do sol bonito criar a impressão de que seu dia em si está mais agradável). Além disso, um adulto é sempre parcialmente responsável por sua aparência. Uma pessoa que nasce bonita pode se tornar pouco atraente dependendo do que ela faz ao longo dos anos — e genética não garante coisas como músculos definidos, senso estético pra se vestir etc. Então neste nível básico, não há razão alguma pra reagir negativamente à beleza — pelo contrário, pois existe uma associação legítima entre beleza e valores desejáveis como vitalidade, saúde, força. Mas não é assim que grande parte da população parece pensar. E ontem, na estreia do BBB 24 na Globo, houve uma ilustração curiosa disso pra qualquer um que duvide que a "padrãofobia" é uma realidade e que ela afeta decisões práticas das pessoas no dia a dia.

O programa começou com 18 pessoas na casa que receberam a incumbência de selecionar, entre um grupo de 12 novos candidatos, mais 6 pessoas pra entrarem pro programa. Os 12 candidatos tiveram a chance de se apresentar brevemente, dizer suas idades, de onde eram, o que faziam da vida, e responder a uma pergunta simples sobre suas personalidades. E se você sabe qualquer coisa sobre a cultura atual, não era difícil prever o que aconteceria: todos aqueles que pareciam "humildes" ou ter algum tipo de desvantagem social, seriam selecionados (os que eram menos atraentes, o cara que disse ter vindo da favela, o outro que revelou ser gay etc.) Entre os 12, tinham uns 4 que pareciam modelos e nitidamente se destacavam pela beleza, lembrando típicos participantes do programa do passado. Nenhum foi escolhido.

Daria pra argumentar que os participantes eliminaram os "padrões" porque não queriam concorrentes fortes na casa; ou que eles selecionaram os "humildes" pra sinalizar de virtude — por saber que o ato altruísta pegaria melhor com o público (aposto mais nessa segunda opção). Mas a festa que estourou no Instagram e no Twitter imediatamente após a eliminação dos "padrões" não pode ser explicada por nada além de inveja e "ódio do bom".

Alguns comentários online ainda tentavam fornecer alguma racionalização pra essa felicidade deturpada, dizendo que "beleza não é o bastante se a pessoa não tem carisma, história de vida, conteúdo" (como se os escolhidos tivessem mostrado algo notável nesse aspecto).

A verdade é que desvantagem social em si se tornou um sinônimo de "carisma", "história de vida" e "conteúdo" no cérebro de muita gente, o que torna a racionalização acima tão lógica quanto dizer "beleza não é o suficiente se a pessoa não tem a não-beleza também".

Mas os que tentavam racionalizar eram a minoria. Os comentários com mais curtidas eram aqueles que expressavam orgulhosamente ódio pelos "padrões" pelo simples fato deles serem mais bonitos. E quem ousasse expor, ainda que de maneira tímida, o preconceito óbvio na situação, era imediatamente confrontado com "argumentos de intimidação" — comentários cheios de confiança moral, mas completamente vazios em conteúdo, como os que são usados pra tentar ridicularizar o conceito de "racismo reverso". É tão proibido hoje dizer que um "padrão" pode sofrer preconceito quanto é proibido sugerir que um não-padrão nem sempre sofre tanto preconceito quanto dizem, ou pode até ter alguma vantagem competitiva na sociedade atual.



É esse tipo de negação óbvia de fatos, facilitada pelas narrativas fortalecidas pela cultura e pela mídia, que torna possível pessoas saírem nas ruas, como fizeram recentemente, celebrando abertamente o massacre de cidadãos inocentes e crianças em Israel, já que um país rico como Israel jamais poderia ser visto como vítima. A cultura hoje protege apenas a reputação dos "fracos". Se você é visto como o forte/privilegiado, não há limite pros ataques que podem ser perpetrados contra você.

Periodicamente, vejo nas redes sociais posts de páginas de fofoca que ridicularizam falas de famosos que dizem já ter sofrido preconceito por conta de suas belezas. Outro dia vi um post desses que reuniu dezenas de frases de profissionais experientes, celebridades renomadas, o que me fez inicialmente achar que o propósito da postagem era dar visibilidade pro drama deles! Mas não, as queixas eram completamente desconsideradas pelo post como algo intrinsecamente ridículo.

Em parte isso ocorre porque essas pessoas de espírito invejoso têm razão em pelo menos 1 sentido: na intimidade, entre quatro paredes, poucas pessoas de fato têm preconceito contra beleza — pelo menos quando elas acham que podem usufruir dela. Num aplicativo de relacionamento, por exemplo, os "padrões" vão ser sempre mais procurados que os menos atraentes.

O preconceito contra o "superior" tem uma natureza diferente do preconceito contra o "inferior". Como o "bom" é aquilo que representa algo de valor real pra vida e pra felicidade humana, não é possível uma pessoa que deseja viver desprezar totamente o bom. O "ódio do bom" requer algum nível de racionalização, e é baseado em contradições internas. Num nível consciente, explícito, a pessoa pode até se comportar como se odiasse o "bom", mas subconscientemente, ela sentirá que está sendo hipócrita. Já o desprezo pelo "ruim" não requer racionalizações. A pessoa pode, em todos os níveis de consciência, desprezar sem hipocrisia aquilo que não representa nenhum valor pra vida dela.

Portanto, não estou querendo igualar a "padrãofobia" às formas mais clássicas de preconceito. Ser desprezado por suas virtudes com base na irracionalidade de pessoas invejosas é menos humilhante de certa forma do que ser desprezado honestamente por aqueles que não veem nada de desejável em você. Claro, odiar uma pessoa por suas virtudes é muito mais imoral e perverso do que desprezar alguém por sua falta de virtudes. Mas como o critério pra "empatia" na ética altruísta é o grau de vulnerabilidade, o nível de humilhação sofrido pelo alvo do preconceito, dá pra imaginar por que muitos acham que a "padrãofobia" é um preconceito leve.

Isso não quer dizer que o desprezo hipócrita dos padrãofóbicos não cause danos reais e não deva ser combatido. Embora em suas vidas privadas, fora dos holofotes, os "padrões" possam continuar usufruindo de várias vantagens, em áreas que são movidas pelas narrativas dominantes da cultura, onde decisões são tomadas em público, por comitês, por voto popular, onde as impressões sociais contam mais (e na era das redes sociais muitas áreas funcionam assim) as pessoas que passam uma imagem de privilégio e superioridade sofrerão preconceito, enquanto aquelas que fazem os tomadores de decisão se sentirem "bons altruístas" serão favorecidas. O mesmo fenômeno que levou os não-padrões a serem escolhidos no caso do BBB, se manifesta também em entrevistas de emprego, processos de casting, premiações, etc. Dar vantagens a um não-padrão faz com que as pessoas se sintam bem diante da sociedade, enquanto dar vantagens a um padrão gera insegurança e desconforto moral — independentemente dos méritos e competências das pessoas envolvidas.

A primeira vez que me conscientizei deste fenômeno foi em 2017 quando eu gravava um vídeo com uma atriz muito bonita, que tinha uma ar de namoradinha da América de filmes hollywoodianos dos anos 80. Numa conversa, ela revelou que não estava mais conseguindo trabalhos na publicidade, pois ninguém mais queria atrizes com a aparência dela em comerciais (estavam priorizando tipos mais "brasileiros"). Isso revela uma inversão curiosa de valores que ocorreu no mundo de umas décadas para cá, que transformou vulnerabilidades — não mais virtudes — em um passaporte para o sucesso. Em uma cultura orientada para o sucesso, como era a dos anos 80 e 90 nos EUA, por exemplo, a pior coisa que alguém poderia ser era alguém fraco, pobre, feio e além disso incapaz, burro, sem caráter e talento. Este era o tipo de pessoa que não era favorecida pela cultura, e que precisava fazer um esforço extra pra provar seu valor. Se estes indivíduos cometessem deslizes, eles tinham pouca tolerância dos outros; estavam sempre a um passo de serem "cancelados". Porém pessoas que vinham "de baixo" e eventualmente se elevavam aos padrões de excelência admirados pela cultura, eram aplaudidas de pé e ganhavam uma aura especial de honra por terem transcendido suas condições (pense numa Oprah Winfrey, por exemplo). Pessoas atraentes, que pareciam fortes, capazes, essas já representavam o padrão desejado pela sociedade e tinham a cultura funcionando ao seu favor (pelo menos num nível superficial). Se além dessa vantagem inicial elas se provassem de fato virtuosas, talentosas, excepcionais, aí elas seriam a melhor coisa que alguém poderia ser naqueles tempos.

Hoje a situação é outra. Se você é visto como alguém que veio "de baixo", você não precisa mais se provar excepcional, virtuoso, pra ser visto como alguém moralmente superior. Você já tem a cultura trabalhando ao seu favor só por causa de suas desvantagens. Claro, como não é possível ser totalmente consistente com essas inversões de valores, não diria que a melhor coisa que alguém poderia ser hoje seria uma vítima oprimida, incapaz e sem talento algum... Ainda é necessário demonstrar algumas virtudes pra você ter vantagens na cultura atual, mas virtude agora é apenas uma fachada, um pretexto para que se possa premiar as fragilidades — este seria o valor mais fundamental. Muitos prêmios hoje não vão para o melhor absoluto, mas para o "mais desavantajado que fez um trabalho de destaque". Já o "privilegiado" está em desvantagem hoje em diversas situações, e terá que fazer um esforço extra pra ganhar respeito na cultura (se ele não quiser se contentar em fazer sucesso apenas em privacidade, quando ninguém está olhando). Um "padrão" não tem os pré-requisitos mais pra se tornar a melhor coisa que alguém poderia ser na cultura atual. Seus deslizes são recebidos com pouca tolerância. Ele é quem está sempre a um passo de ser cancelado, e tem que trabalhar o tempo todo pra provar sua humildade, não soar elitista, encontrar desvantagens em sua biografia (traumas, abusos, doenças) que possam ser usadas ao seu favor, reconhecer publicamente a superioridade moral dos mais fracos, e eliminar qualquer traço de autoconfiança, alegria e ambição de sua personalidade. Pois se além de "padrão" ele tiver autoestima, não se mostrar disposto a se diminuir, a se "enfeiar", a rir de si mesmo, a assumir papeis de vilão, a sofrer e expor seus defeitos o tempo todo, a aplaudir a mediocridade, ele será visto como arrogante e se tornará a pior coisa que alguém poderia ser hoje — um status que uma "vítima" não pode alcançar no contexto atual (pense em astros do cinema ou da música que eram "padrões" há uma ou duas décadas, como Leonardo DiCaprio, Zac Efron, Justin Bieber, e como eles tiveram que se degradar visualmente pra serem respeitados como artistas). Alguém que vem "de cima" e abre mão de seus privilégios pra lutar pelos "de baixo", se torna agora aquela figura honrada que é aplaudida de pé por transcender sua condição, equivalente à pessoa que começava na pobreza e conseguia provar sua excelência nos anos 80/90. O estereótipo do "Conde Vermelho" — o aristocrata de berço que se faz comunista por opção ideológica, como era apelidado o cineasta Luchino Visconti — é um perfil sempre popular nesse tipo de cultura.

Talvez você nunca tenha sido vítima de "padrãofobia" e possa estar se perguntando por que você deveria se preocupar com isso. O importante é entender que a aversão à beleza é apenas a inveja em um estágio elementar, primário. Os "padrões" sentirão primeiro os efeitos de uma cultura dominada por inveja, pois a aparência deles é como um outdoor que divulga por onde eles passam uma versão simplificada dos ideais que a sociedade rejeita moralmente (força, privilégio, riqueza). Mas qualquer pessoa honesta, ambiciosa, que deseja ter sucesso e ser reconhecida por suas realizações, eventualmente se tornará vítima deste mesmo mal, que em sua essência, podemos batizar de "virtofobia":

Virtofobia seria o ódio, ressentimento, aversão ou preconceito contra pessoas virtuosas; contra indivíduos, grupos ou criações que apresentam qualidades como força, beleza, habilidade, inteligência e nobreza de caráter. É o mesmo que Ayn Rand chamava de "ódio do bom por ser bom".

Não incluo "sucesso", "riqueza", "fama" nessa lista pois é importante notar que essas coisas não são virtudes em si, apenas consequências de certas ações, que dependem em grande parte da subjetividade da população. Numa sociedade saudável, uma pessoa se tornará rica, famosa ou bem sucedida por causa de ações virtuosas. Porém numa cultura decadente, a mediocridade também terá um amplo mercado, e uma pessoa poderá se tornar rica e famosa por ações não-virtuosas. Portanto, uma pessoa virtofóbica não será sempre contra o sucesso — apenas quando ele for merecido. Mas quando o sucesso tiver sido conquistado através da mediocridade, a pessoa virtofóbica poderá até reagir positivamente a pessoas ricas e bem sucedidas.

Ou seja, o que torna uma pessoa virtofóbica é sua atitude em relação às virtudes em si, e não simplesmente a pessoas ricas, famosas ou bem sucedidas. Da mesma forma, uma pessoa que admira virtude irá reagir positivamente apenas ao sucesso de pessoas virtuosas. Quando o dinheiro, a fama e o sucesso tiverem sido conquistados via mediocridade, tal pessoa irá reagir negativamente a esses resultados.

Resumindo, a padrãofobia seria um vício mais estreito, enquanto a virtofobia é o fenômeno mais fundamental. A pessoa vista como bonita irá se sentir julgada já por sua aparência; ela terá crises de identidade e autoestima por não entender os sinais paradoxais que vêm da sociedade, as atitudes passivo-agressivas (que refletem os conflitos internos dos outros em relação à força), e o senso de que ela está sempre fazendo algo errado, devendo desculpas por um pecado que não lembra de ter cometido. Mas num nível menos concreto/imediato, uma pessoa de aparência comum porém ambiciosa, agindo pra se tornar bem-sucedida, irá vivenciar o mesmo preconceito na medida em que ela se aproximar de seus objetivos. Se ela não tiver consciência deste fenômeno, ela ficará igualmente confusa em sua jornada, cheia de dilemas, se perguntando por que é que quanto mais ela desenvolve suas habilidades, quanto mais ela se livra de suas desvantagens e se distancia da posição de vítima, menos os outros parecem interessados em seu sucesso. Seu instinto saudável faz com que ela aja de acordo com a lógica de uma cultura orientada para o sucesso, e tente se destacar mostrando suas forças, se tornando melhor a cada dia. Só que ela não percebe que está agora em uma cultura virtofóbica, que se mobiliza mais diante de fraqueza, desvantagens, em que sua lógica não funciona mais, e que agora talvez ela fizesse "sucesso" mais rápido explorando suas fragilidades (coloco "sucesso" entre aspas pois conseguir trabalhos, dinheiro, fama e prêmios com base em suas fragilidades, sem de fato desenvolver suas forças, produzir algo de real valor no processo, não te trará autoestima nem um senso legítimo de realização a longo prazo).

Leia também: Casting Naturalista

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Wish: O Poder dos Desejos

2023 não foi o ano ideal pra Disney celebrar seu centenário, que tomou forma neste projeto medíocre que parece uma amálgama de todos os problemas que levaram o estúdio a perder seu prestígio na última década. É tudo um enorme clichê cheio de ideias de má qualidade, canções terríveis (mas que não são genéricas e esquecíveis; elas até têm mais personalidade do que o esperado, o que neste caso não sei se é uma vantagem). A trama não se manifesta através de ações físicas lógicas, envolventes, mas em uma luta direta entre abstrações: as emoções de um grupo versus as emoções do outro, representadas por raios mágicos e bolhas flutuantes. A "princesa" é uma típica Heroína Envergonhada, com a mesma personalidade da Rapunzel e de tantas outras protagonistas do gênero — a linguagem corporal desajeitada que transmite insegurança, humildade, neuroticismo (o constante "sorriso invertido" que ilustro no vídeo Idealismo Corrompido). O filme inclui frases do tipo "nunca confie em um rosto bonito" e uma cena em que a mocinha é perseguida por um "príncipe do cavalo branco" que agora deseja matá-la. Ao mesmo tempo em que Asha é modesta, desajeitada, ela é uma revolucionária corajosa, que luta contra um sistema opressor pra fazer o povo voltar a sonhar. Até tentei ler a história como uma possível crítica ao estatismo, mas no fim fica claro que não é liberdade e individualismo que ele defende, apenas uma forma mais "feminina" e "gentil" de opressão. E a noção de "sonho" do filme é representada por aquele ideal altruísta tedioso que vemos em filmes como Coco, que envolve um velhinho humilde, um vilarejo e um violão. 

Wish não chega a estilhaçar a estrela dos desejos do Walt Disney como fez Gato de Botas 2, apenas a reduz a um sidekick frágil, genérico e sem graça.

Wish / 2023 / Chris Buck, Fawn Veerasunthorn

Satisfação: 3

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Encanto (2023) / Enrolados (2010)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Feriados e Datas Comemorativas

Eu sempre tive conflitos com datas comemorativas, aniversários, rituais como formaturas, casamentos, amigos secretos... Quando criança, lembro que todo Réveillon na hora dos fogos eu ficava mal-humorado e não entendia o porquê. Queria muito estar curtindo a noite como todo mundo, mas me parecia faltar um "chip" que todos os adultos tinham que permitia que eles ficassem magicamente felizes com o fato de números em relógios e calendários estarem prestes a mudar.

Eu nunca adquiri tal chip, e continuei me incomodando com esse tipo de evento na vida adulta. Um lado meu sempre quis abolir essas convenções de uma vez por todas, mas outro não queria ser radical demais e criar conflitos desnecessários com os outros.

Hoje, tendo mais consciência dos meus valores, eu consigo lidar melhor com essas situações, e enxergar caminhos alternativos que me permitem até participar de algumas dessas comemorações, mas sem agir contra meus valores nem deixar que os outros invadam meus limites.

Vou listar abaixo algumas armadilhas e irracionalidades comuns nesses eventos pra ficarmos atento (julgando por uma perspectiva Objetivista):

Calendário e Misticismo
O calendário é apenas um sistema criado pelo homem pra organizar os dias e a passagem do tempo. Nenhuma data é existencialmente mais relevante que outra, e o tempo poderia ter sido organizado de inúmeras outras formas. Achar que o calendário tem importância metafísica ou que a posição relativa dos astros tem qualquer impacto sobre sua felicidade é irracional. Além disso, a ideia de "ciclo" criada por ele é ilusória. O tempo só se move em uma direção, e o fato do calendário ter sido organizado de tal forma que permite que dias e meses se repitam, não quer dizer que, na realidade, qualquer coisa esteja se repetindo, nem que qualquer evento do passado esteja se aproximando do presente. Usar o calendário por questões práticas, entender padrões climáticos e se organizar com o resto da sociedade, tudo bem, mas atribuir um valor metafísico a datas e se sentir emocionado com esses "ciclos" não faz sentido. O Sol não está parado num mesmo lugar — ele está se movendo dentro da galáxia, e a galáxia em si também está se movendo — então não dá nem pra se iludir que em determinada data o planeta e os corpos celestes estão na mesma posição em que estavam num outro momento importante do passado (e mesmo que estivessem, que diferença isso faria?). Se proximidade física ao local em que um evento importante ocorreu fosse um bom motivo pra celebrações, faria mais sentido você comemorar seu aniversário toda vez que você passasse perto do hospital onde você nasceu. Datas comemorativas, portanto, são puramente simbólicas, invenções humanas. Só a conquista de um valor pessoal é uma boa justificativa pra uma celebração. Se você tem um filho, conhece o amor da sua vida, tem uma grande realização profissional, tudo bem celebrar isto na hora em que o evento ocorre ou em alguma data próxima. Agora celebrar esta conquista toda vez que o dia e mês se "repetem" no Calendário Gregoriano, é algo puramente simbólico, existencialmente desconectado do evento original, e não é algo que você deve se sentir forçado a fazer a não ser que você seja uma pessoa que goste de simbolismos, rituais, ache importante relembrar certos acontecimentos regularmente, e o ciclo particular do Calendário Gregoriano seja conveniente pra você usar como base.

Papai Noel: Misticismo, Desonestidade e Senso de Vida Malevolente
Feriados religiosos vêm com um outro agravante, pois eles não marcam apenas datas e ciclos que podem representar algo de valor objetivo pra você, mas são baseados em fé e misticismo. Alguns objetivistas gostam de pegar leve com o Natal dizendo que ele se tornou um evento totalmente secular, mas eu vejo valores cristãos penetrando o evento até em lares onde a família não é cristã, e tenta fazer a festa ignorando o aspecto religioso da data.

Um dos problemas, por exemplo, é a figura do Papai Noel. Mentir pra crianças quanto à existência do Papai Noel é uma violência epistemológica que vai além de uma brincadeira inofensiva. É um verdadeiro gaslighting que é sustentado por anos, no período mais importante de formação do cérebro da criança, e que além de normalizar a mentira, e sugerir que mentir pode ser uma boa base pra diversão, o conceito do Papai Noel promove uma separação mental entre o mundo real que a criança enxerga, e o mundo que ela é capaz de acreditar em sua mente — o que pode se tornar um "preparo de terreno" pra que ela aceite noções sobrenaturais na vida adulta.

Além disso, a ideia de presentes gratuitos que caem do céu, não parecem depender de seus pais terem dinheiro ou não para comprá-los, nem de você ter feito algo para merecê-los, cria uma espécie de pensamento mágico no campo da economia.

Mas pra mim, a maior crueldade ligada ao mito do Papai Noel é que, ao descobrir que o Papai Noel não existe, a criança acaba absorvendo a noção malevolente de que a "verdade machuca", que o mundo real é tedioso, menos perfeito do que deveria ser, e que nossos sonhos mais elevados são ilusórios, inatingíveis, ingênuos, e existem apenas no pensamento ou além desta realidade.

Trocas de Presentes: Altruísmo e Culpa
Há quem veja trocas de presentes como um ato genuíno de benevolência, uma celebração da prosperidade material do ocidente etc., mas pra mim, este ritual parece mais o resultado de uma tática barata de mercado, que usa altruísmo e culpa como formas de alavancar vendas (como ocorre também no dia das mães, dos pais, dos namorados etc.). A maioria das pessoas não compra presentes nessas datas por um desejo autêntico, e sim porque, se elas não comprarem presentes, isso poderá ser visto como egoísta e insensível — especialmente se elas ganharem um do outro. Então, por receio de receberem presentes e não terem nada pra dar em troca, todo mundo acaba se sentindo compelido a comprar uma "lembrancinha" pelo menos, e muitos desses presentes terminam não tendo utilidade alguma, afinal, poucas pessoas sabem de fato o que você gostaria de ganhar.

Mas não acho que esta tradição seja culpa exclusiva dos comerciantes. Alguns minimalistas rejeitam a troca de presentes porque não querem estimular o consumismo, mas pra mim, o maior incômodo nem é tanto a movimentação artificial de dinheiro e de bens materiais envolvida nessas convenções, e sim a movimentação artificial de afeto — a pressão pra expressar afeto ou receber afeto em situações onde você não gostaria (essa redistribuição artificial de afeto explica boa parte da pressão social pra se submeter às tradições e às datas comemorativas).

Festas e Viagens: Dever, Culpa, Tradição e Conformismo Social
Muitas pessoas aproveitam "datas" pra fazer festas, reunir a família, cozinhar pratos específicos, usar certas roupas, viajar etc. É importante ficar atento pois muitas dessas ações podem estar sendo motivadas por valores destrutivos:

Você pode estar indo a uma festa de família só pelo senso de dever, pelo receio de ser taxado de "egoísta" se não for. As razões autênticas pra ir a uma festa seriam coisas como você gostar das pessoas que estarão na festa, você estar livre no dia, e o evento ser algo que te agradaria até se ele estivesse ocorrendo numa data aleatória, não simbólica.

Tem gente que prepara comidas, usa certas roupas, diz frases, escuta músicas, coloca decorações na casa nessas datas, puramente pela tradição; por achar que haveria algo terrível em quebrar com um ritual que sempre foi praticado da mesma forma pelos outros, ainda que a pessoa em si não veja valor algum naquilo. Algumas comidas típicas de festas de fim de ano estão longe de ser as comidas mais deliciosas que a pessoa vai comer no ano (ou até na semana), mas o tradicionalismo lança um efeito quase hipnótico sobre ela, e de repente ela se vê na mesa discursando de forma grandiloquente sobre a farofa feita por uma tia avó, que ela não fará esforço algum pra comer de novo o resto do ano.

Muitas pessoas também viajam no Carnaval, no Réveillon, gastam um dinheiro que não têm com passagens, hotéis, roupas, passam um desconforto terrível (calor, horas de estrada), só por medo de ficarem de fora ("F.O.M.O."). Parte disso pode ser uma crença mística na importância de "datas", mas geralmente isso é puro conformismo social: uma preocupação excessiva com imagem, status, com manter as aparências ("keeping up with the Joneses"), e uma tentativa irracional de ficar feliz por osmose — não fazendo as coisas que de fato te deixam feliz, mas estando perto de pessoas que parecem felizes e imitando o que elas estão fazendo.

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Nós vivemos em sociedade, e o fato de muitas pessoas seguirem certas tradições acaba transformando de forma real a rotina ao nosso redor. Então pode ser válido você fazer certas coisas em datas comemorativas e feriados, mesmo não levando esses eventos a sério, já que muitas pessoas estão de férias nessas épocas, algumas coisas param de funcionar, opções de lazer raras se tornam disponíveis. E há um valor também no conceito de familiaridade, de viver num mundo com certas características conhecidas, estáveis; mas nada disso exige que você endosse valores negativos, ou aja com base em princípios que vão contra seu bem estar pessoal. Você pode estar presente em um ambiente onde as pessoas ao seu redor estão fazendo coisas que não fazem sentido pra você, e ainda assim ter um propósito racional ali, sem se tornar vítima de chantagens emocionais, pressões sociais, tradições místicas etc.