(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)
- O filme começa na infância de Natasha, mas em vez de revelar uma garota especial, ele a caracteriza como uma espécie de tomboy de cidade interiorana, numa família comum, fazendo brincadeiras banais com a irmã. A única coisa "especial" que ela parece ter nesse momento é uma certa raiva reprimida... E a frase da mãe "a dor apenas te torna mais forte" sugere que a essência da força da heroína não vem de habilidade, inteligência, um caráter superior — mas de tristeza, sofrimento. Muitos filmes de herói hoje precisam fazer esse apelo ao trágico, ao melancólico... Quando são filmes sobre vilões (Coringa, Cruella) o sofrimento justifica as maldades dos personagens. Quando são sobre heróis, o mesmo sofrimento justifica as virtudes. O importante é que o filme fale sobre pessoas "quebradas", sobre os "misfits" de alguma forma. (Idealismo Corrompido)
- A sequência de ação onde a família escapa de avião é bagunçada, confusa de assistir. Difícil de acreditar que um avião pequeno como aquele conseguiria decolar com o pai na asa, ainda mais com uma criança pilotando. A família sabe que o pai tem uma super-força? Aliás, por que ele tem uma super-força? Eu como espectador já deveria entender isso? E será que ele ficou na asa do avião a viagem inteira?
- Essa estética de thriller político da Guerra Fria é meio inusitada... Parece querer dar a impressão do filme ser mais sofisticado, ter um conteúdo mais sério do que de fato tem.
- E quando filmes hollywoodianos se passam em locações estrangeiras como Budapeste, Cuba, Rússia isso também costuma ser uma tática superficial pra ganhar respeitabilidade (pra mim essa moda surgiu com A Identidade Bourne no início dos anos 2000, quando a cultura começou a se tornar antiamericana).
- Desde o início o filme não tem a menor clareza. É como se eu tivesse pego uma série na metade e não fizesse ideia de quem é quem, quais os planos dos personagens, por que eles estão em determinado lugar, pra que serve determinado objeto... Geralmente é em blockbusters assim onde eu tenho as piores experiências cognitivas. Nem mesmo arte moderna consegue atingir esse nível de desorientação mental (ela pelo menos deixa claro que não há nada pra ser integrado). Os cineastas parecem ter plena certeza de que a plateia nem vai tentar ligar os pontos, se preocupar em criar uma conexão lógica entre uma cena e outra... Vai apenas olhar figurinhas, como uma criança que só vê as ilustrações do livro.
- Depois que o carro da Natasha foi atingido por um míssil na ponte, pegou fogo, capotou várias vezes, e a protagonista não sofreu um único arranhão, é meio bobo tentar criar um suspense com o fato do carro estar na beirada da ponte, correndo o risco de cair.
- Quando Natasha reencontra a irmã, as duas entram numa luta violenta... daí pedem trégua e começam a conversar casualmente como amigas. Isso é completamente artificial... Só pra passar a ideia de que a relação entre as duas é "complexa" (relacionamentos conflituosos).
- (Não acho que o filme seja mal intencionado de fato, que tenha valores extremamente negativos... Nesse caso a maioria dos problemas parece vir da Pseudo-sofisticação, do desejo do filme de parecer mais inteligente do que é.)
- Outra cena de ação caótica é a do resgate do pai na prisão. Pra que pegá-lo de helicóptero naquele ponto nada estratégico, sendo que a irmã da Natasha nem sabe pilotar direito? Se o pai tem essa super-força, ele não poderia ter ido logo pro lado de fora da prisão? Aliás, por que ele nunca fugiu antes, se era tão fácil?
- Os diálogos entre as filhas e o pai no helicóptero são péssimos (o papo sobre remoção do útero, etc.). A ideia de transformar o Alexei em um alívio cômico de uma hora pra outra é forçada... Serve só pra abrir espaço pra piadinhas estilo Deadpool que o gênero passou a exigir.
- Quando eles chegam na casa da mãe, o roteiro tem um de seus momentos mais pavorosos... Imagine pessoas que tiveram uma relação familiar íntima, ficaram separadas por tantos anos, e agora finalmente se reúnem... Pense no tipo de conversa/ação que tornaria essa cena minimamente convincente — e daí veja o que de fato acontece no filme: o pai veste uma fantasia ridícula de herói, eles começam a fazer piadinhas sobre sexo na mesa, a mãe fica corrigindo a postura de Natasha como se ela fosse uma criança, depois, no meio de um papo sobre Papai Noel, o assunto muda pra conspirações globais e a mãe começa a controlar a mente de um porco usando um tablet (!). É um momento de pura esquizofrenia... E a personagem da Rachel Weisz é totalmente irreal, inconsistente — às vezes fala como se fosse uma mãe judia tradicional, depois volta a parecer uma agente secreta perigosa, daí no minuto seguinte vira a mãe fria e ausente que abandonou as filhas... As pessoas por trás desse filme podem ser tudo: ótimos empresários, marketeiros, experts em quadrinhos, em cultura geek, mas certamente não são artistas, muito menos contadores de história.
- Se a trama não estava confusa o bastante, agora ainda temos que lidar com personagens sem livre-arbítrio e usando máscaras hiper-realistas que os fazem se passar por outros.
- Pra um filme tão cheio de mulheres (incluindo a diretora, que pra variar nunca dirigiu filmes comerciais antes, e parece só estar aqui por ser mulher e já ter feito filmes sobre questões femininas — como se isso fosse relevante pra dirigir Viúva Negra), nada mais apropriado que o vilão ser um empresário poderoso estilo Harvey Weinstein, que abusa de mulheres e usa feromônios masculinos como instrumento de controle.
- SPOILER: Péssimo o momento de virada, onde a Natasha arrebenta o próprio nariz pra escapar dos feromônios masculinos e derrotar o vilão (não dava mesmo pra ela ter tapado o nariz?).
- A ação final (a queda do Red Room) é outro caos desagradável de assistir. Parece que quanto mais bagunçada uma cena de ação, mais as pessoas gostam hoje... Em vez de Set Pieces com conceitos simples, poucos elementos visuais em jogo, um problema físico claro e delimitado, você tem dezenas de pessoas voando pelos ares, se trombando com milhares de fragmentos de objetos não identificáveis, sem nenhuma ideia realmente memorável.
- Apesar da irmã ser cheia de recursos (usou aquele drone pra jogar o pó anti-Harvey Weinstein em cima das garotas), ela não consegue colocar um simples pauzinho na turbina do avião à distância... Precisa entrar quase dentro da turbina e explodir junto com o avião, pro filme ter seu momento obrigatório de auto-sacrifício.
- Quando a Natasha pergunta pro pai (depois de tudo o que aconteceu) se ele tem algo a dizer, e ele responde "eu só estragaria tudo", isso é praticamente o roteirista aceitando que ele não sabe escrever diálogos, e é melhor ficar em silêncio.
- A imagem poética dos vagalumes no fim ainda tem coragem de sugerir que o filme é mais que uma ação desmiolada, que ele é sobre relações familiares, sobre a psicologia da heroína, tem um "subtexto", etc.
Black Widow / 2021 / Cate Shortland