Ontem à noite deixei a TV ligada no Rock in Rio. Não fiquei vendo todos os shows e nem sei o que esses artistas pensam de fato, mas fiquei surpreso ao ver tantas referências à religião nas apresentações (as manifestações políticas não me impressionam mais). O palco do Emicida parecia uma igreja com aqueles vitrais ao fundo. Outra hora olhei pra TV, e a Demi Lovato cantava na frente de uma cruz vermelha de uns 10m de altura. Iza cantou uma música onde repetia a palavra "fé" umas 100 vezes e agradecia a Deus. Justin Bieber falou de Deus do início ao fim, e uma hora começou a pronunciar a frase "we thank you Jesus" repetidamente dando um ar de culto evangélico pro show.
O que acho curioso é que não estamos falando de um evento voltado pra um público conservador... Pelo contrário; politicamente, a grande maioria dos artistas era explicitamente de esquerda, um grupo que não costumava ostentar religiosidade antes. Mas parece que essa é a fórmula do sucesso hoje: pra você estar num evento tão grande, ter chance de subir no "Palco Mundo" e ter um público realmente global, você precisa andar nessa corda bamba, sendo "woke", desconstruído, e ao mesmo tempo demonstrando respeito por valores cristãos e conservadores.
É o que vemos em grandes lançamentos do cinema também, que trazem discussões sobre racismo, diversidade, multiculturalismo, mas ao mesmo tempo, apelam pra tradição, família, fé — filmes da Pixar, Disney, Marvel, a nova série do Senhor dos Anéis; até Nope, que comentei recentemente, abre com um versículo bíblico e dizem ter vários simbolismos religiosos.
Rock sempre me pareceu ter uma relação próxima com religião — a rebeldia do rock costuma dialogar bem com pessoas que no fundo aceitam os valores cristãos como certos, mas têm conflitos por não viverem 100% de acordo com eles. Então não é surpreendente que haja um subtexto religioso em eventos de rock. Mas esses artistas que vi no palco ontem como Justin Bieber e Demi Lovato (cujo último álbum se chama Holy Fvck), além de não serem roqueiros exatamente, não estavam se rebelando contra a religião como faziam os músicos do passado. Eles pareciam estar demonstrando respeito pela religião; e ao mesmo tempo, se apresentando como figuras meio decadentes, imperfeitas — como se a contradição e o erro não incomodassem mais; não precisassem levar nem à rebeldia, nem à conformidade (assim como agora é possível defender socialismo e usar Gucci ao mesmo tempo).
Boa parte do público sempre foi religioso (mesmo do público de esquerda), e artistas que atacavam a religião de forma direta e hostil sempre foram perseguidos, mesmo no passado (A Vida de Brian foi banido em diversos países, Madonna era sempre alvo de críticas). A questão é que não lembro da religião ser levada tão a sério no entretenimento como vem sendo agora; exibida como prova de virtude, como quem cola o adesivo da Nossa Senhora na traseira do carro. O cool antes era os artistas serem críticos à religião ou a aspectos dela, e exigirem no mínimo uma modernização — se a religião fosse sobreviver, ela é que teria que se conformar aos novos tempos, e passar a abraçar sucesso material, sexualidade, felicidade, pensamento científico etc.
Assim como cientistas eram frequentemente heróis nos blockbusters do passado (falo disso melhor no post
1999 e o Declínio da Objetividade), religiosos eram retratados como figuras meio quadradas, associadas a repressão, sofrimento, e o entretenimento vinha pra defender alegria, prazer, liberdade, sucesso individual — uma libertação daquelas normas rígidas e antiquadas (estou pensando em filmes como
Footloose,
Mudança de Hábito, músicas como
Like a Prayer etc.). A ideia de que religião era uma adversária da felicidade e do sucesso era quase o senso comum, e era transmitida habitualmente nos filmes, como se os cineastas não tivessem dúvida de que o público compartilhava desta opinião.
Nessa breve passagem de Titanic, veja como o DiCaprio ironiza o passageiro rezando enquanto o navio afunda. O homem diz: "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum.." e DiCaprio brinca: "Não dá pra andar um pouco mais rápido por esse vale aí?". É um comentário casual só pra gerar uma risadinha, mas será que uma piada assim soaria natural pro público de hoje?:
No final de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, repare como uma cerimônia religiosa é usada pra caracterizar negativamente os astronautas selecionados pelo governo: pra representar todo o lado da burocracia, da cegueira para os fatos, em contraste com o protagonista, que não faz parte daquele grupo e é o único que realmente entende o que está acontecendo, que é o verdadeiro "escolhido" (observem na fila depois o detalhe de todos os astronautas usando óculos escuros, e ele sem):
O contexto cultural mudou, e hoje, valores cristãos é que são transmitidos casualmente, como se fossem o senso comum: em filmes de super-heróis, franquias de terror, fantasias derivadas de Harry Potter e Senhor dos Anéis, franquias de ação como Velozes e Furiosos, etc. Há exceções, claro. Mas o ponteiro que indica o senso comum certamente mudou de lugar, e se aproximou mais da religiosidade tradicional.
Religião não é necessariamente incompatível com o
Idealismo, desde que seja uma religião secularizada, modernizada, como descrevi anteriormente — que não impeça histórias sobre felicidade pessoal, sucesso, racionalidade (filmes como
A Noviça Rebelde ou
Ben-Hur giram em torno de religião, mas são histórias contadas por um prisma totalmente secular). Quando a religião aparece como um sinônimo de esperança, de confiança num "universo benevolente", ela é compatível com histórias Idealistas (filmes de Natal costumam ser assim). Também quando ela surge apenas como um veículo para
Excitação e escapismo sobrenatural (como em
O Exorcista,
Ghost - Do Outro Lado da Vida).
O problema é que agora, ideias como sacrifício, dever, penitência, sofrimento, pensamento anti-científico, parecem vir sempre juntas do "pacote" religioso (e talvez sejam de fato indispensáveis pro tema ser levado a sério). Por isso a religião hoje em dia se tornou prejudicial para o entretenimento, e mais uma força Anti-Idealista na cultura. Quanto mais as pessoas se distanciam de ideias como razão, individualismo, da crença no sucesso e na felicidade, menos há motivo para resistir à religião, incluindo seus aspectos mais negativos.