quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Priscilla

Um dos filmes mais medíocres e sem razão de existir que eu já vi. Não é sobre a "grande mulher por trás do grande homem"; se a ideia do filme era empoderar alguma mulher, eu saí dele com a impressão (que eu nunca tive antes) que Priscilla Presley era uma garota vazia, superficial, sem personalidade, cujo maior mérito foi ter nascido com a aparência ideal pra posar como uma esposa clichê dos anos 50/60, e que seu casamento com Elvis foi igualmente vazio de qualquer conteúdo.

O filme é muito mais uma tentativa de diminuir Elvis do que de valorizar Priscilla, mas nem isso ele consegue fazer bem, afinal nada que Elvis faz aqui surpreende ou vai além do pacote básico de imoralidades que fazem parte da biografia de qualquer superastro da música (drogas, infidelidades, descontroles emocionais pontuais etc.). Você tem a impressão constante que está tudo caminhando pra algo trágico, que uma verdade terrível está prestes a ser revelada, mas nada de significativo realmente acontece. E essa "tensão" (provocada mais pela ausência de coisas na tela do que pela presença) permite que o filme enrole o público por 1h53min com cenas vazias, diálogos superficiais, conflitos repetitivos, caracterizações que oferecem zero insights sobre a psicologia de qualquer um, atuações sem carisma, uma performance digna de Framboesa de Ouro da Cailee Spaeny... tudo passa pois há uma "crítica profunda" sendo feita, como se houvesse algo automaticamente brilhante em menosprezar as conquistas de um homem de sucesso, e voltar os holofotes pra sua esposa subvalorizada, ainda que ela não faça nada de interessante o filme todo.

Sofia Coppola se mostra aqui uma niilista cansada, alguém que até tem um leve impulso de destruir, de atacar virtude, mas que não tem a energia de uma Emerald Fennell, por exemplo, então acaba fazendo tudo de maneira preguiçosa, anêmica, se contentando apenas em adicionar pequenas manchas à imagem de Elvis, mas nada que vá fazer qualquer diferença.

E é com essa mesma energia anêmica que ela dirige o filme. Há diversas cenas e planos que merecem ser estudados isoladamente como exemplos de mediocridade cinematográfica. Sofia não parecia saber que tipo de filme ela queria fazer: se ela queria subverter a forma Hollywoodiana e fazer uma biografia mais desconstruída à la Spencer, ou se ela queria tentar uma linguagem mais formalista, do tipo que requer uma integração cuidadosa de imagem, trilha sonora, montagem etc., pra criar os efeitos desejados e transportar o espectador pra certa "realidade fílmica". Ela fica alternando entre essas intenções opostas, sem nunca se comprometer com nada, resultando em cenas que deixam você se perguntando se o desleixo é parte do conceito ou se é resultado de pura incompetência. Há diversas montagens — uma envolvendo o casal jogando no cassino, outra envolvendo uma viagem de LSD, outras envolvendo apresentações de Elvis — que flertam com uma linguagem mais formalista, só que em vez de se tornarem sequências realmente dinâmicas, com movimentos de câmera interessantes, ritmo, imagens ricas, cortes bem planejados (pense em Scorsese + Cassino ou no próprio Elvis do Baz Luhrmann) você tem apenas algumas escolhas visuais esquisitas que vão nessa direção, mas que não são suficientes pra criar o efeito final. O resultado é como alguém que é convidado pra uma festa à fantasia e, não conseguindo decidir entre ir fantasiado ou ir com roupas casuais, escolhe uma opção intermediária que é a única objetivamente errada.

Se ao menos o filme apresentasse uma visão compreensiva do casamento de Elvis e Priscilla, nos fizesse entender melhor o que arruinou a relação, que conflitos mais fundamentais de valores estavam na base das incompatibilidades entre os dois — ele teria algum interesse, ensinaria algo pro público. Mas o filme não tem nenhuma teoria sobre o que houve. Apenas vemos Priscilla com cara de desiludida em uma série de eventos episódicos que não evoluem pra nada surpreendente (afinal, desde o começo já fica óbvio que existe um abismo emocional entre os dois), e tudo é mostrado por aquele olhar Naturalista distante, superficial, pretensioso, que parece achar que ao recriar cenários, figurinos, músicas da época, e fazer um registro externo da situação, que o significado interno dela se revelará magicamente pro público, livrando o cineasta de ter que entendê-lo.

Priscilla / 2023 / Sofia Coppola

Satisfação: 0

Categoria: AI / NI

Filmes Parecidos: Spencer (2021) / Blonde (2022) / Maria Antonieta (2006)

sábado, 23 de dezembro de 2023

Saltburn

Depois de Bela Vingança, cujo mote era "morte aos homens!", Emerald Fennell passa de discussões de gênero pra discussões de classe, e agora vem com o mote "morte aos ricos!" com Saltburn, que faz você pensar que o estilo de vida da família aristocrática no centro da história seria mais convincente se a mansão de Saltburn ficasse num morro da Transilvânia. Bons atores, fotografia bonita, mas o conteúdo vai se revelando mais e mais raso conforme o filme se aproxima do fim, que elimina qualquer dúvida que Fennell tinha qualquer outro propósito aqui além de ser uma fanfarrona, chamar atenção através de polêmicas, e competir com figuras como Olivia Wilde e Greta Gerwig pra ver quem é a diretora feminista com mais "opinião" hoje em Hollywood.

Saltburn / 2023 / Emerald Fennell

Satisfação: 3

Categoria: AI

Filmes Parecidos: A Favorita (2018) / Parasita (2019) / Bela Vingança (2020)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Inteligência Artificial: meus pensamentos

- I.A. é uma ameaça para a humanidade?

Acho que a tecnologia por si só, não. Não acredito num cenário Terminator/HAL-9000, onde as máquinas magicamente ganhem consciência (que pra mim depende da vida). Mas a I.A. permite que pessoas más façam estragos muito maiores do que poderiam de outra forma. Nesse sentido, ela é uma ameaça em potencial, uma ferramenta, mas o mal viria de ações humanas.

- I.A. deveria ser regulada pelo governo?

Depende. Por um lado, vejo a I.A. apenas como uma evolução de ferramentas que já usamos. Por outro, o passo evolutivo é tão grande que pra mim a torna análoga à invenção da bomba atômica. E assim como você pode ser a favor do porte de armas, mas ao mesmo tempo não defender que todo cidadão possa ter uma bomba atômica, regulações sobre a I.A. dependem um pouco de entendermos seu real poder de destruição.

O ser humano pode violar os direitos dos outros de duas formas: por força física ou por fraude. Da mesma forma que a bomba atômica liberou um poder de destruição física sem precedentes, a I.A. permite uma manipulação de dados e informações em uma escala também sem precedentes. E, em um mundo onde grande parte de nossa propriedade e da nossa privacidade se sustenta sobre um universo digital, a I.A. poderia se tornar a "bomba atômica" do âmbito da informação, permitindo fraudes e violações de direitos numa escala também sem precedentes. (Lembrando que nossa integridade física também dependerá cada vez mais de informações digitais, com a chegada de veículos autônomos, chips cerebrais etc.) 

- I.A. vai tornar os seres humanos obsoletos?

Apenas algumas atividades e profissões. Acho que quem tem medo de ser substituído existencialmente pela I.A. costuma ser alguém que baseia toda sua autoestima em sua capacidade de processar ideias, de acumular conhecimento dentro da própria mente; ou que só desenvolveu alguma habilidade concreta que pode ser substituídas por I.A.; ou são pessoas que têm uma visão utilitária da vida — agem como se a vida não fosse um fim em si mesmo, mas como se o homem existisse pra produzir bens materiais, realizar certas tarefas, servir à natureza, à comunidade, gerar filhos etc. Pra essas coisas, qualquer indivíduo de fato é substituível. Mas se seu propósito é aproveitar a sua vida, fazer as coisas que te trazem felicidade pessoal, o robô mais evoluído do mundo não poderá tomar o seu lugar.

O grande benefício da I.A. será que não teremos mais que fazer certas coisas que fazemos só por necessidade, limitações existenciais, mas que não contribuem de fato para nossa felicidade. As coisas que as pessoas fazem por prazer, por satisfação pessoal, e os esforços que são indispensáveis para a construção de uma boa autoestima, estes não serão delegados para as máquinas. 

- I.A. deveria ser proibida/regulada em Hollywood?

Não, exceto pra impedir violações de direitos de propriedade, uso indevido da imagem e do trabalho de outras pessoas. Mas se um figurante quiser oferecer sua imagem pra ser digitalizada e usada eternamente por um estúdio, ele deveria ter o direito de fazer isso e cobrar o que quiser. Se um produtor quiser escrever um roteiro inteiro com I.A., ele deveria poder fazer isso (desde que a I.A. não faça plágio de outras obras).

Muitos em Hollywood se desesperam por achar que a I.A. irá: 1) Tirar empregos das pessoas. 2) Tornar o cinema medíocre.

1) As pessoas do primeiro caso são como os motoristas de carruagens resistindo à invenção do automóvel no início do século XX. O cinema como é feito hoje já tornou obsoletas diversas profissões e tecnologias que eram indispensáveis poucas décadas atrás. Pela lógica dos que querem banir a I.A., pra manter certas pessoas trabalhando, teríamos que reverter todas as inovações do passado também? Eu poderia fazer greve e pedir de volta meu emprego como atendente de locadora? Teríamos que desinventar o cinema em si, que deve ter tirado empregos de profissionais do teatro? Pense nas centenas de animadores que gastam meses hoje trabalhando numa única produção, às vezes se dedicando exclusivamente à animação de alguns segundos de um personagem secundário que 95% do público nunca irá notar... Daqui a 50 anos, isso vai soar um trabalho tão atraente quanto o dos escravos que construíram as pirâmides do Egito. Querer impedir inovações, novas tecnologias de serem usadas, é desejar o que o Nathaniel Branden chamava de "direito divino à estagnação" — é se rebelar contra o fato de que certas coisas mudam com o tempo, de você precisar sempre estar aprofundando seu conhecimento, desenvolvendo habilidades etc.

2) Já as pessoas que acham que a I.A. tornará os filmes medíocres, sem arte, que a profissão dos roteiristas será extinta e tudo passará a ser escrito pelo Chat GPT etc., esquecem que o público e os artistas não são uma massa de zumbis inconscientes, que aceitarão um nível de mediocridade infinito sem questionar. A indústria está sempre corrigindo o curso de acordo com as percepções e exigências do público, ainda que isso às vezes demore mais tempo do que gostaríamos. Sempre vão existir os "lixeiros" da arte, que não ligam pra qualidade, e estão dispostos a tentar lucrar usando as táticas mais vulgares possíveis. Mas sempre vão ter os artistas que querem ser respeitados, que valorizam qualidade, que amam suas profissões, e que farão até coisas que vão contra o que é econômico e prático em nome da qualidade (ou da impressão de qualidade) — este ano, por exemplo, vários dos filmes que estarão na disputa ao Oscar como Oppenheimer, Maestro, Killers of the Flower Moon, Poor Things, Past Lives, foram filmados em 35mm, uma técnica mais complicada, mais cara que filmar com câmeras digitais, mas que voltou a se tornar atraente uma década depois de ter sido extinta praticamente, pois agora ela simboliza sofisticação, um compromisso com qualidade. O filme escrito inteiro por I.A. será feito eventualmente, e rapidamente será colocado na categoria de "arte ruim" (ou arte experimental, caso um diretor europeu faça primeiro), e não terá grande relevância cultural ainda que possa fazer algum barulho inicialmente (pense num filme como Ursinho Pooh: Sangue e Mel, ou nos fracassos recentes da Marvel). Ao mesmo tempo, os cineastas de maior prestígio estarão olhando para estes fenômenos, e indo na direção oposta pra ganhar o respeito do espectador mais criterioso.

- I.A. vai tornar artistas obsoletos?

Apenas alguns técnicos envolvidos na produção da obra, mas não o artista principal, nem os principais membros da equipe criativa (numa arte colaborativa como o cinema). Quem teme essa substituição total dos artistas também costuma ter uma visão utilitária da arte; que a arte seria apenas um produto mecânico com uma função prática de distrair uma massa de seres não-pensantes. Mas se você entende que arte é uma expressão da visão de mundo e dos talentos de um artista, e que o que atrai o espectador à arte depende em grande parte do fato dele saber que aquela obra é a expressão de um outro ser humano, você entende por que nunca será possível o artista em si ser substituído por um robô. A Inteligência Artificial pode até se tornar sofisticada o bastante pra enganar o espectador e conseguir se passar por um artista humano, mas isso não seria diferente de uma pessoa se apaixonar por um ciborgue que é tão perfeito que consegue se passar por um homem de verdade — seria um resultado de fraude, e no instante em que a pessoa descobrisse o engano, seus sentimentos em relação ao ciborgue mudariam.

Hoje temos máquinas capazes de correr muito mais rápido que seres humanos, levantar muito mais peso, e isso não faz ninguém ter menos admiração por atletas talentosos, não torna as Olimpíadas obsoletas, pois nossos julgamentos em relação a qualquer coisa são contextuais. Na arte, nós buscamos sentimentos que só podem ser despertados por virtudes humanas. Um objeto inanimado pode até ser útil pra você, mas não pode te inspirar, não pode te fazer rir, chorar. Uma pedra "forte" não pode te provocar admiração da mesma forma que um homem forte. E um leão "corajoso" como o de O Rei Leão só te inspira na medida em que um artista projeta qualidades humanas nele. Portanto, a arte dependerá sempre de indivíduos humanos para ter qualquer significado para o público. 

Para qualquer dilema envolvendo I.A. "superando" humanos, eu gosto de imaginar o que aconteceria se uma raça alienígena ultra avançada fosse descoberta em um planeta vizinho, e que neste planeta, o indivíduo mais medíocre fosse capaz de compor sinfonias superiores às de Mozart, correr mais rápido que um carro de Fórmula 1, ter a aparência da Gisele Bündchen, o saldo bancário do Elon Musk, e todos vivessem lá felizes o tempo todo tendo orgasmos ininterruptos. Esta descoberta faria você pensar que sua vida se tornou obsoleta? Abalaria sua autoestima ou seu propósito de vida? Uma criatura assim só poderia abalar sua autoestima na medida em que você acreditasse que essas virtudes são atingíveis para você, e que você falhou em atingi-las. O alien, portanto, não teria um efeito maior sobre você do que os homens mais admiráveis que vivem no mundo hoje. Agora se essas virtudes fossem impossíveis, estivessem fora do que é imaginável para um ser humano, elas não deveriam te afetar em nada, da mesma forma que a altura de uma árvore ou a velocidade de um guepardo não afetam sua avaliação de si mesmo nem suas expectativas em relação à sua vida.

- I.A. vai tornar os filmes melhores?

Em média, acredito que não, exceto em alguns aspectos técnicos (realismo do CGI — ou "AIGI" — qualidade geral da imagem e do som etc.). Isso porque a I.A. torna tudo mais fácil e barato de se fazer, o que a torna um chamariz pra pessoas pouco talentosas e ambiciosas na arte.

Pense no que faz o padrão de qualidade de diversas áreas decaírem ao longo do tempo...

O ser humano é "preguiçoso" por natureza, no sentido de nunca querer desperdiçar energia. Ninguém busca fazer as coisas de uma forma difícil à toa, se é possível chegar no mesmo resultado de uma forma mais fácil. Até quando Michelangelo pintou a Capela Sistina, ele provavelmente estava sendo "preguiçoso" e buscou a forma mais fácil de obter o resultado que ele queria, dentro das possibilidades da época. Então, quando algo é impossível de ser feito, ou requer um sacrifício quase completo, ninguém o faz. Agora pense quando a tecnologia e o conhecimento subitamente tornam algo possível de ser feito, ainda que isso seja muito difícil, caro e incerto no começo (como levar o homem à Lua). Esta é a situação que promove uma concentração de homens virtuosos em uma determinada área. Pois neste momento, apenas as pessoas mais ambiciosas, capazes e confiantes em suas habilidades ousarão entrar neste ramo ou serão convocadas para este ramo.

Na medida em que o ramo prospera e estes pioneiros têm êxito, tornam o processo mais eficaz, o conhecimento acumulado por eles vai tornando a atividade mais fácil de ser exercida, mais acessível para os outros, mais barata, menos arriscada, e pessoas com menos habilidades agora vão querer se aventurar por lá também. A consequência disso é que a qualidade média do que é produzido nesta área vai caindo conforme o grau de facilidade vai aumentando. Quanto mais acessível a atividade se torna, menor é o nível de inteligência e habilidade exigidos pra entrar nela, e maior será o volume de coisas medíocres sendo criadas. Nos estágios finais deste processo, quando a área se vê subitamente tomada por pessoas desprovidas de qualquer talento, ela perde toda a aura de prestígio que costumava atrair pessoas a ela no começo (aura formada graças aos êxitos dos pioneiros), e pode passar até a repelir as pessoas mais ambiciosas.

É fácil observar este padrão no caso de destinos turísticos (praias que já foram paradisíacas e 30 anos depois estão cheias de farofeiros), empreendimentos específicos, mas o mesmo processo pode levar uma indústria inteira, como a do cinema, a se deteriorar ao longo do tempo.

Isso pode soar contraditório, considerando o que eu disse antes sobre a I.A. não ter o poder de tornar filmes medíocres. O que quero dizer é que não acho que a I.A. vá eliminar a demanda por filmes de qualidade, cineastas habilidosos que tentarão se opor a esta degradação. Porém o volume de coisas medíocres que passarão a ser feitas irá aos poucos acostumar o público a um padrão de qualidade inferior, irá normalizar um nível de mediocridade que hoje ainda é impensável, de maneira que o "Scorsese" do futuro precise fazer menos que o Scorsese de hoje pra ser considerado um cineasta de prestígio. Um exagero cômico deste princípio seria a cena de De Volta Para o Futuro 2, onde a mãe é elogiada pelo "talento" dela ao hidratar a pizza no nível certo na máquina Black & Decker.

A única forma de impedir uma deterioração global é organizações privadas construírem barreiras artificiais ao redor de si mesmas (uma vez que as naturais tenham sido eliminadas), e criarem células imunes a este processo de degradação — estabelecendo uma série de critérios e valores que preservem o alto padrão de qualidade (algo difícil na cultura atual, em que julgar com base em habilidade foi definido como imoral e às vezes até ilegal pelo "vírus" da mediocridade que está sempre tentando destruir a imunidade dessas células virtuosas).

- I.A. vai fazer com que ninguém mais desenvolva seus talentos no futuro?

Como a tecnologia tornará praticamente tudo fácil e acessível pra qualquer pessoa, pensando de maneira mais ampla, as pessoas no futuro talvez tenham que começar a buscar outras formas de cultivar virtude. Por exemplo: não é porque o ser humano não precisa mais ter força física hoje pra sobreviver, já que temos máquinas que fazem o trabalho braçal por nós, que nós deixamos de valorizar força, músculos, e estamos definhando completamente. Muitas pessoas continuam valorizando o vigor físico, mas agora elas precisam desenvolver isso espontaneamente em academias, praticando esportes, não por necessidade.

Talvez o mesmo ocorra com talento e habilidades mentais, quando a I.A. se tornar tão eficaz que ninguém mais precise usar muitos neurônios pra criar sinfonias, escrever romances, construir arranha-céus, produzir filmes etc.

Atualmente, parece que estamos num estágio intermediário meio confuso desta transição, onde as pessoas já abriram mão do esforço mental, estão delegando muitas atividades intelectuais para as máquinas, antes que estas possam fazê-las tão bem quanto homens habilidosos; além disso, o "definhamento" mental da população ainda não se tornou óbvio o bastante, a ponto da cultura exigir que as pessoas com mais autoestima desenvolvam o hábito de "malhar" a mente voluntariamente, mesmo isto não sendo mais uma necessidade vital.

Assim como cineastas importantes têm rodado filmes em película, numa forma até ingênua de demonstrar virtude, talvez no futuro a gente volte a ver um cineasta filmando um grande épico no deserto com milhares de figurantes e cavalos, como David Lean fazia nos anos 60, mesmo sendo possível criar uma imagem idêntica com a Inteligência Artificial. Este esforço agora não terá mais um componente de necessidade; ele será baseado exclusivamente em ambição pessoal, autoestima e num senso de aventura.

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Resumindo, acho que a I.A. pode se tornar uma grande ameaça dependendo de como ela for usada, mas não acho que a sociedade tenha um instinto autodestrutivo irresistível que faça com que ela sempre vá pelo pior caminho possível. A bomba atômica foi criada em 1945, e desde Hiroshima e Nagasaki, ela nunca mais foi usada em guerras. Isso mostra que a sociedade tem a capacidade de resistir a um grande poder quando este poder se torna uma ameaça à vida e a valores que muitas pessoas consideram importantes.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Cotas de Tela: por que você deveria ser contra

Porque todo tipo de "dirigismo econômico" dessa natureza é destrutivo e análogo ao de regimes fascistas (mais até que ao de regimes socialistas, pra quem pensa que este seria mais benéfico).

Porque é uma violação da liberdade dos exibidores — é o governo forçando empresas privadas (ou seja, cidadãos, trabalhadores, pessoas) a venderem produtos e oferecerem serviços que eles não querem, mas que são de "interesse nacional". Pense nesta lógica aplicada consistentemente, e se você quiser ser uma pessoa íntegra, coerente, lembre-se que é isso que você terá que defender se quiser ser a favor de cotas de tela.

Não há nada de benevolente ou "sustentável" nisso, e "sucessos" que são resultado do abuso da liberdade dos outros são sempre ilusórios, irracionais, injustos, e inferiores em qualidade a sucessos que resultam de decisões voluntárias. Você pode até ver alguns filmes nacionais se destacando nos próximos anos e pensar: "viu, se não fossem as cotas de tela, isso não teria sido possível". Mas não seria muito diferente de comemorar um aumento na taxa de natalidade após o governo decretar uma "cota de vaginas" para homens sem acesso ao sexo.

Lembre-se também do que você não estará vendo neste momento: os frutos de uma indústria cinematográfica livre de incentivos distorcidos, que teria que considerar os interesses do público e se destacar por méritos próprios se quisesse conquistar mais espaço.

Quanto ao argumento "país X estabeleceu cotas e hoje tem uma indústria cinematográfica próspera", pense no que seria do cinema deste país se não fosse pelo legado, pela linguagem, pela tecnologia, pelo público, pela infraestrutura, e por tudo que só existe graças ao cinema americano, que funciona por uma lógica de mercado. Quantos multiplexes existiriam lá pra serem parasitados pelos governos locais, sem os esforços dos americanos, que tiveram que assumir os riscos e conquistar o público de forma honesta?

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Lady Ballers

Tentativa meio frustrada do Daily Wire de fazer uma comédia besteirol estilo as do início dos anos 2000, mas pegando a polêmica "mulheres trans em esportes femininos" como tema. Vejo 3 grandes obstáculos no caminho deste projeto:

1) O meio intelectual conservador nunca foi um grande berço pra artistas talentosos, e este filme parece comandado por pessoas mais preparadas pra entregar um discurso ideológico espertinho do que pra criar um bom entretenimento.

2) Até em Hollywood, a crise de talento hoje é tamanha que nem profissionais da área conseguem mais fazer comédias besteirol no nível de um As Branquelas (filmes que na época eram considerados trash, mas que hoje por contraste já revelam certas virtudes que antes passavam despercebidas, como comentei na crítica de De Volta ao Baile). Se até os "pros" de hoje parecem amadores, que dirá pessoas sem tanta experiência na área. (Pra dar um crédito pro filme, até que ele não está tão abaixo das comédias ruins feitas em Hollywood hoje).

3) Há uma diferença entre você fazer um filme com um viés de direita, e um filme promovendo uma organização ideológica específica. Uma vez li em um livro teórico sobre comédia que "humor de direita é um oxímoro". Discordo disso em partes pois não vejo por que a direita não possa ser engraçada; consigo imaginar a cultura woke sendo alvo de uma sátira e conseguindo apelar pro público geral (me vem à mente o recente South Park: Joining the Panderverse, filmes como Trovão Tropical, o trecho de A Vida de Brian onde o Eric Idle decide virar "Loretta", e até o De Volta ao Baile, que não diverte mais por falta de qualidade do que pelo alvo das piadas em si). Mas por um lado entendo o que pode ter levado o autor do livro a afirmar tal coisa. Um pouco pode ter a ver com a natureza mais rígida e moralista da direita. Mas acho que uma questão mais fundamental aqui é: nenhum desses filmes que citei foi feito primeiramente pra promover uma ideologia, ou parece filiado a uma organização política específica, a uma sub-cultura particular, cheia de códigos internos e de valores que precisam ser defendidos em conjunto pra você fazer parte. Já o Daily Wire tem sim uma agenda ideológica, está fazendo propaganda de seu próprio movimento, e isso fica claro ao longo do filme (há participações especiais de figuras fundadoras como Ben Shapiro, Matt Walsh, Candace Owens etc.). Então o oxímoro pra mim não seria "humor de direita", e sim "entretenimento panfletário" (que valeria também pra filmes panfletários de organizações de esquerda, de religiões, de países em guerra etc.), pois a intenção de entreter, descontrair, fazer rir, é incompatível com a mentalidade de alguém agarrado a um grupo, tentando se proteger, querendo salvar a sociedade de uma ameaça iminente (neste sentido, o lado que estiver perdendo numa guerra cultural terá sempre menos chances de expressar leveza e descontração — o que estiver ganhando ainda conseguirá camuflar melhor o desespero por trás de sua militância). Toda obra de arte/entretenimento é "militante" no sentido de expressar a preferência de um artista por certos valores. Mas há uma diferença entre um artista promovendo seus valores pessoais, promovendo valores amplos e atemporais que apelam pra uma grande fatia da humanidade, de uma obra panfletária querendo lidar com crises do momento, promovendo uma doutrina específica, uma organização reconhecível na cultura. Tais grupos ideológicos são sempre sustentados por racionalizações, e quanto mais irracionais forem essas racionalizações, mais o grupo refletirá um estado de apreensão, medo, ódio, repulsa, autoenganação, que será sentido pelo espectador — e isso sim é incompatível com divertimento. Por isso todas essas tentativas de dar uma roupagem de entretenimento leve e escapista pra filmes que no fundo têm intenções panfletárias acabam resultando não só em obras não muito bem feitas (já que bons artistas são sempre escassos nos confins desses grupos) como resultam também em obras artificiais, que parecem desonestas em algum nível, disfarçando suas verdadeiras naturezas. O Daily Wire, que se revolta tanto com as crises de identidade dos outros, deveria refletir um pouco também sobre esse tipo menos óbvio de confusão de gênero.

Lady Ballers / 2023 / Jeremy Boreing

Satisfação: 3

Categoria: NI

Filmes Parecidos: O Que é uma Mulher? (2022)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O Mundo Depois de Nós

Achei um desperdício pois o filme tem um bom elenco, o diretor mostra potencial (apesar do estilo exibicionista que às vezes atropela o conteúdo), a premissa é intrigante, há boas ideias de filme-catástrofe (como o acidente de navio, os veados ao redor da casa), e o filme tem aquela camada de reflexão filosófica por trás da ação física que costuma caracterizar os bons filmes do gênero. Infelizmente, não só essa camada se torna grossa demais, transformando tudo num "filme de mensagem" estilo Ruído Branco, onde os acontecimentos deixam de ser convincentes pois os personagens e eventos se tornam veículos vazios pra mensagem do autor, como além disso o cineasta não tem nada de realmente brilhante ou sólido a dizer (o que frequentemente é o caso nesse tipo de filme). Tudo se sustenta nos velhos ataques ao capitalismo e na visão pessimista da natureza humana e de futuro provocados pela ética cristã: a razão humana e o estilo de vida Ocidental são maus pois destroem a natureza, que em breve irá se "vingar" de todos nós; egoísmo é sinônimo de ser cruel com os outros; somos todos hipócritas na América pois fingimos viver de acordo com a ética altruísta publicamente (o filme usa o exemplo do canudo de papel), mas isso é tudo uma fachada, pois no fundo sabemos que somos egoístas e, portanto, pecadores.

Leave the World Behind / 2023 / Sam Esmail

Satisfação: 5

Categoria: IC

Filmes Parecidos: Batem à Porta (2023) / Ruído Branco (2022) / Tempo (2021) / Nós (2019) / Ensaio Sobre a Cegueira (2008) / O Nevoeiro (2007)

Godzilla Minus One

Melhor blockbuster do ano e um dos melhores filmes de monstro do século 21. Me lembrou um pouco o caso de Top Gun: Maverick: não é um filme que vai se destacar pela originalidade, por grandes inovações, pois ele depende em grande parte do que foi criado do passado (incluindo o ótimo tema musical do Godzilla de 1954), porém ele é realizado com tanto capricho, tanta integridade e respeito pelo material original (ignorando totalmente valores "modernos" que Hollywood se sente sempre na obrigação de abraçar), que o filme se torna uma viagem no tempo e um caso exemplar pro cinema atual.

Gojira -1.0 / 2023 / Takashi Yamazaki

Satisfação: 9

Categoria: I

domingo, 17 de dezembro de 2023

Maestro

Como mencionei na crítica de Tár, tenho uma admiração pelo Leonard Bernstein desde que vi gravações do seu Young People's Concerts em aulas na faculdade, então fui ver Maestro com um interesse especial, até por ter gostado do trabalho do Bradley Cooper como diretor em Nasce uma Estrela — e também por este ser um projeto que já esteve nas mãos de grandes nomes como Spielberg e Scorsese (que assinam aqui como produtores).

Além do tópico, o filme tem várias qualidades que o mantém interessante, apesar de alguns pontos fracos. Bradley está bem no papel (com a ajuda do trabalho mais notável de maquiagem que vi desde A Baleia), Carey Mulligan está melhor ainda, e os diálogos têm riqueza o bastante pra passar uma ideia de como seria um homem como Bernstein na intimidade (lembrando um pouco os méritos de Tár).

Porém Bradley Cooper como roteirista/diretor, pra mim parece ter deixado a pretensão subir à cabeça. Sabe aqueles cineastas prodígio tipo Orson Welles ou Francis Ford Coppola, que após algumas obras-primas, passam a se achar geniais demais para o "sistema" e começam a experimentar com a linguagem, fazendo obras menos acessíveis de propósito? É como se no 2º longa (e sem ter feito suas obras-primas ainda), Bradley já quisesse saltar pra esse estágio da carreira, e mostrar um tipo parecido de sofisticação (que pra mim é Pseudo-Sofisticação até mesmo nos casos de Welles/Coppola).

O filme tem uma abordagem semi-Naturalista que vê graça na mera reprodução do universo de Bernstein; em nos dar o privilégio de espiar a vida de um mestre por algumas horas. Por retratar um homem excepcional, bem-sucedido (em vez de uma pessoa medíocre) o filme foge do Naturalismo clássico, mas narrativamente, ele ainda não tem um senso de direção, um tema, algo a dizer sobre o personagem, e o Naturalismo se revela também nos aspectos da vida de Bernstein que o filme decide mostrar. Ao contrário de Steve Jobs (2015), que pelo menos focava em grandes momentos da carreira de Jobs (apesar de ser um filme também sem muita história, focado em caracterização), Maestro já faz um esforço grande pra não parecer uma celebração do talento de Bernstein. O fato mais conhecido de sua carreira — ele ser o compositor de West Side Story — é citado de forma tão casual que uma pessoa não familiarizada com o musical provavelmente sairá do filme sem registrar este "detalhe". O programa de TV Young People's Concerts (também um dos grandes responsáveis por sua fama) nem é citado.

Maestro está muito mais interessado no lado "humano" de Bernstein: nos problemas de seus relacionamentos íntimos, seus vícios, no fato dele ser bissexual, um homem um pouco egocêntrico, no câncer de sua esposa Felicia (que toma uma parte considerável do filme e é mostrado em mais detalhes que muitos filmes sobre doenças terminais). Não diria que a intenção do filme é manchar a imagem de Bernstein, pois há um glamour até mesmo na forma em que esses negativos são mostrados. Mas algo leva o filme a achar que pra cada virtude exibida, 3 fatos menos admiráveis sobre Leonard precisem ser incluídos pra equilibrar o resultado.

Fico me perguntando se isso é influência da ética altruísta; algo motivado por um senso de culpa, ou se é exatamente o oposto: se é a pretensão fútil de quem quer se mostrar tão superior, tão culto, tão parte da elite, que cita esses triunfos de forma casual, blasé, pois sabe que essa é a atitude de pessoas realmente sofisticadas.

Maestro / 2023 / Bradley Cooper

Satisfação: 6

Categoria: I- / NI

Filmes Parecidos: Tár (2022) / Steve Jobs (2015)

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Wonka

Wonka / 2023 / Paul King

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

Satisfação: 3

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Vidas Passadas


Past Lives / 2023 / Celine Song

Satisfação: 8

Categoria: Idealismo Diminuto

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Cameo de Ayn Rand em "Past Lives"

Um detalhe no filme Vidas Passadas (Past Lives / 2023 / Celine Song) que talvez eu seja a única pessoa no mundo que reparou:


Imagino que seja algo acidental que já estava na locação (o filme não tem nada a ver com ideias de Rand). Mas ainda assim achei curioso, pois Journals of Ayn Rand é um livro que só objetivistas mais "avançados" costumam ter. Quem será o dono da casa?

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Melissa Barrera e Julianna Margulies - Guerra divide Hollywood


Quando a Melissa Barrera foi demitida de Pânico 7 por apoiar o lado dos palestinos na guerra Israel/Hamas (e se mostrar ser o tipo de pessoa que minha primeira impressão dela sugeriu), achei que algo de positivo pudesse estar surgindo desta divisão que a guerra provocou em Hollywood - que costuma tentar manter a imagem de uma comunidade homogênea em suas posições políticas. Podia ser a chance da esquerda se dividir, da metade mais niilista ser exposta pelo que é, e disso ajudar a encerrar o clima de polarização extrema que caracterizou os últimos 8 anos. Mas vendo a diferença entre as reações a esses dois casos, já comecei a duvidar.

Vamos acompanhar - estou curioso pra ver o que farão com a Julianna Margulies (que não falou nada de homofóbico ou racista no podcast - acabei de escutar o episódio). Talvez ela se safe por não ser associada à direita, ser anti-Trump, etc. Mas se ela tivesse sua carreira prejudicada, adoraria saber se isso seria chamado de censura também, e se ela receberia um apoio tão expressivo da comunidade artística quanto Barrera.

Napoleão


Napoleon / 2023 / Ridley Scott

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Crítico Imperfeito