terça-feira, 28 de abril de 2020

Outros filmes vistos - Abril 2020

Resgate (Extraction / 2020): 5.0





Retrato de uma Jovem em Chamas (2019): 4.5





Clive Davis: The Soundtrack of Our Lives (2017): 8.0




A Ilha da Fantasia (Fantasy Island / 2020): 5.5














A Máfia dos Tigres (Tiger King: Murder, Mayhem and Madness / 2020): 7.5



domingo, 26 de abril de 2020

O que torna um personagem gostável?

(Capítulo 8 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

De todos os tópicos envolvendo a criação de um filme, este talvez seja o mais complexo e difícil de articular, e mereceria um livro por si só. Minha ideia aqui não é apresentar um guia definitivo, nem sugerir que tenho consciência de todo o processo envolvido na avaliação de um personagem (inclinações pessoais subjetivas são difíceis de evitar especialmente nesse tópico). Vou apenas estabelecer alguns princípios que me parecem importantes nessa tentativa de entender o que torna um personagem “gostável” — afinal, como ficou claro no capítulo anterior, o personagem ser gostável ou não acaba sendo um elemento fundamental para a história funcionar, e que irá afetar toda a experiência do espectador.

Antes de mais nada, vale lembrar de novo que não existe um “gostável universal”, afinal, as pessoas possuem valores diferentes. Então, vou discutir aqui apenas o que seria gostável dentro de um contexto Idealista.

Pra começar, o mais básico a se entender é que no Idealismo o espectador se sentirá atraído pelo personagem com base em virtudes, em valores positivos — não com base em suas fragilidades, distúrbios, falhas, tristezas, medos, inseguranças — e nem com base em raça, nacionalidade, gênero, orientação sexual (táticas que estão se tornando cada vez mais comuns hoje em dia). Na medida em que o personagem se mostrar moralmente inocente, íntegro, e ao mesmo tempo virtuoso, forte, feliz, especial em algum aspecto, o espectador irá achá-lo atraente e gostável.

No Idealismo, também tendemos a pensar em extremos. Se o personagem for um agente secreto, queremos que ele seja o melhor agente secreto do mundo. Se for uma criança levada, queremos que seja a mais levada que já vimos. Se for uma bela prostituta com um coração de ouro, que seja a mais bela de todas as prostitutas com o mais puro de todos os corações. Se for uma atriz narcisista, que ela seja uma atriz de enorme sucesso, e que seu narcisismo seja tão extremo que a deixe completamente cega para a realidade. Há alguns casos onde isso não se aplica tão bem, como em histórias sobre homens comuns passando por situações extraordinárias — o extremo aqui se aplica mais à situação, não ao personagem. Mas mesmo em relação ao personagem, se ele for um homem comum, não custa tentar criar o mais legal de todos os homens comuns que a plateia já conheceu.

FRAGILIDADES E VULNERABILIDADES

Um protagonista, para ser gostável, não precisa estar livre de qualquer tipo de fragilidade. Na verdade, o espectador dificilmente se identificará e se sentirá inspirado por alguém completamente indestrutível, invulnerável e desconectado da realidade. Mas existe uma diferença entre dar vulnerabilidades ao herói — inserir elementos que mostram que ele é uma pessoa real, com certas limitações naturais — versus romantizar as imperfeições do herói, relativizar suas virtudes, inserir falhas de caráter etc. No Idealismo, o foco recai sobre as qualidades e virtudes, e as vulnerabilidades só existem para tornar o personagem mais crível, real, identificável — enquanto em filmes Não Idealistas todo o foco recai nas fragilidades, nas inseguranças, frustrações, limitações, e é com isso que o artista espera que o espectador se identifique. Discutirei melhor este assunto no capítulo “Idealismo Corrompido”.

Assim como na vida real, nossa primeira impressão de um personagem acaba sendo formada em questão de minutos ou segundos: logo no comecinho de um filme, por meio de suas primeiras ações, falas ou atitudes. Claro que na vida real não podemos contar com primeiras impressões, e precisamos ver a pessoa agindo ao longo de um período maior de tempo para chegarmos a certas conclusões sobre seu caráter. No entanto, em um filme, cada ação e característica de um personagem é cautelosamente planejada pelo artista para expressar determinados valores, causar, portanto, certas impressões — tudo o que é acidental e não essencial é omitido na arte; então temos permissão, dentro deste contexto, para aceitarmos essas primeiras impressões do personagem como uma representação verdadeira de seu caráter e dos valores do artista.

(Lembrando que o artista deve sempre respeitar o pilar da Objetividade e apresentar essas qualidades de maneira racional — através de coisas observáveis no próprio filme: através das ações do personagem, de suas falas, de sua aparência, sua atitude em relação aos outros personagens da história etc. Mesmo que você esteja fazendo um filme sobre uma figura conhecida — por exemplo, Jesus Cristo — você ainda precisa apresentar o personagem como se fosse a primeira vez que o espectador estivesse vendo aquele indivíduo, e torná-lo gostável através de qualidades novas, visíveis, como se o espectador não tivesse nenhuma opinião formada a respeito dele).

EXEMPLOS DE COMO PRIMEIRAS IMPRESSÕES SÃO FORMADAS




Em Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Indiana Jones é visto apenas de costas ou em silhueta nas primeiras cenas, liderando uma equipe no meio da floresta (o fato de seu rosto não ser mostrado e ele ser o líder da equipe já cria um ar de mistério e importância — vejam como a direção e a fotografia também podem ser cruciais na construção do personagem). Sempre que se deparam com sinais de perigo no caminho, os seguidores de Indy ficam apavorados e agem de maneira tola, enquanto Indy não demonstra nenhuma surpresa e segue em frente como se tudo estivesse sob controle, o que o faz parecer corajoso e experiente (cercar o herói de coadjuvantes caricatos e inferiores é uma das maneiras mais eficientes de fazê-lo parecer a única pessoa sensata do filme, ganhando, assim, o respeito da plateia). Vale lembrar que o simples fato do personagem estar num lugar exótico, olhando mapas antigos, numa espécie de caça ao tesouro, já o torna atraente por mostrar que ele leva uma vida incomum, cheia de propósito, aventura. No fim dessa sequência, quando um de seus companheiros se revela um traidor e tenta atirar nele pelas costas, Indy ouve o barulho do gatilho e o golpeia habilidosamente com seu chicote: o fato dele golpear um homem claramente imoral já sugere por contraste que ele é moralmente correto, está no “time do bem”. Após o golpe, Indy se volta para a câmera e sai da sombra, mostrando seu rosto pela primeira vez. E não é qualquer rosto: é a imagem gloriosa de Harrison Ford. Enquanto ele enrola seu chicote de volta, seu acompanhante o encara boquiaberto (as reações de outros personagens são ótimas ferramentas também para comunicar as qualidades do protagonista).

(Observação: existem alguns filmes e diretores que irei citar dezenas de vezes ao longo do livro, não só por eu realmente enxergá-los como grandes representantes do Idealismo, mas também porque são favoritos pessoais, e eu me sinto mais confortável falando de artistas que conheço bem, de filmes que já vi inúmeras vezes ao longo de 10, 20, 30 anos, do que falando de coisas que ainda não tenham passado pelo teste do tempo e sido analisadas por diversos ângulos).

Em A Noviça Rebelde (1965), Maria é vista pela primeira vez sozinha, rodando na famosa cena da colina (a aproximação épica da câmera, que vem de milhas de distância até chegar num close de Maria, glorifica a importância da protagonista e faz ela parecer especial para o espectador — além da locação deslumbrante sugerir uma vida positiva, livre de problemas). Ela canta uma canção romântica que transmite pureza de caráter, ao mesmo tempo em que Julie Andrews exibe sua aparência doce e suas habilidades vocais incríveis, que fazem ela parecer tanto bondosa quanto admirável. Na cena seguinte, através de uma conversa entre as irmãs do convento, descobrimos que Maria é uma freira, mas que ela tem um espírito livre demais para a vida de sacrifícios exigida pela igreja — mais uma vez, personagens secundários com características menos atraentes (as freiras mais presas às regras e convenções) servem como contraste para ressaltar as qualidades positivas da protagonista e torná-la mais interessante para o espectador.

Essas são entradas bem dramáticas de personagem, mas às vezes cenas simples e casuais podem ser o suficiente para criar uma conexão positiva entre personagem e espectador.

Em O Mágico de Oz (1939), E.T. (1982) ou Esqueceram de Mim (1990), os protagonistas são apenas crianças comuns, incompreendidas, não levadas a sério pelos personagens mais velhos. Dorothy quer apenas proteger seu cachorrinho da malvada Miss Gulch, mas os adultos estão ocupados demais com suas tarefas diárias e não querem saber de seus problemas. Elliott quer fazer parte da brincadeira dos amigos, quer que os meninos mais velhos não o tratem como criança. Kevin é ridicularizado pelos irmãos mais velhos, acaba sendo injustiçado e colocado de castigo. São apenas crianças comuns, inocentes, querendo ser ouvidas, levadas a sério como indivíduos, mas estão cercadas por personagens insensíveis, indiferentes, malvados. Não são personagens excepcionais ou virtuosos ainda (exceto em suas “fofuras” excepcionais), mas são gostáveis, pois se mostram inocentes e têm um desejo universal com o qual é fácil se identificar (todos queremos ser importantes, todos queremos diversão, nos livrarmos de problemas). Esse tipo de caracterização (inocência + um desejo positivo e universal) costuma ser o suficiente, principalmente quando estamos falando de personagens jovens, dos quais ainda não esperamos grandes habilidades e virtudes (protagonistas da Disney muitas vezes eram apresentados dessa forma).

Filmes sobre pessoas comuns que passam por situações extraordinárias (como filmes do Hitchcock, Spielberg, ou filmes de desastre) também não exigem que o personagem seja virtuoso, “maior que a vida”, como um Indiana Jones, por exemplo. Afinal, a graça desse tipo de história está em ver alguém mais próximo da nossa realidade se deparando com algo fantástico. Richard Dreyfuss está longe de uma figura épica, mas, em filmes como Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), ele é perfeitamente gostável dentro da categoria de “homem comum” (pense também em atores como Tom Hanks, James Stewart). E, mesmo nesse caso, gostamos dele com base em características positivas: em Contatos Imediatos, ele é competente em seu trabalho, tem uma relação positiva com os filhos e com as pessoas ao seu redor, parece um típico “cara legal”, faz uma série de comentários cômicos nas primeiras cenas (como dizer que vai deixar as crianças verem “só os 5 primeiros mandamentos” do filme Os 10 Mandamentos (1956) na TV).

Vejam que nenhum desses personagens são pessoas comuns, literalmente, como as que vemos no dia a dia (ou no cinema Naturalista). No Idealismo, vemos sempre versões otimizadas do homem comum — o homem comum transformado numa versão mais pura, essencial e icônica de si mesmo, sem as inconsistências e irrelevâncias da vida real.

No começo de De Volta para o Futuro (1985), há uma breve cena em que Marty vai para a escola de skate pegando carona na traseira de alguns carros (o que por si só já é uma ação divertida e atraente). No caminho, ele acena casualmente para um grupo de mulheres numa academia fazendo ginástica, e todas elas acenam de volta como se o conhecessem. Como espectador, você subconscientemente assume que ele é querido pela cidade inteira, e que seria natural você gostar dele também (mostrar personagens sendo gentis com o protagonista, flertando com ele, falando dele positivamente em sua ausência, são sempre formas eficazes de torná-lo atraente e reforçar essa impressão — desde que em algum momento ele justifique essa reputação, é claro, se não seria apenas um julgamento de segunda mão). Marty é um adolescente “típico” no contexto do filme, mas, para a plateia, obviamente, ele é muito mais fascinante do que um adolescente qualquer. A maioria das pessoas daria tudo para estar vivendo uma vida daquelas. Assim como Kevin em Esqueceram de Mim (1990) é apresentado como um “típico” garoto americano em uma “típica” família americana, quando na verdade o que vemos já é uma visão extremamente idealizada desses conceitos.

Em casos de tragédias, filmes sobre personagens com falhas trágicas, o personagem não pode ser 100% admirável, moralmente impecável, porém, o que o tornará atraente para o espectador ainda serão suas qualidades positivas. Em Cidadão Kane (1941), apesar de seu caráter duvidoso, o protagonista ainda é uma figura atraente em diversos aspectos: sua ambição, sua genialidade como empresário, seu enorme sucesso profissional — tudo isso faz com que o espectador queira acompanhar sua história. A maioria dos bons filmes dessa categoria são sobre personalidades fortes, pessoas ambiciosas, que já realizaram ou estão realizando coisas importantes, vivem vidas incomuns, extraordinárias, como em O Poderoso Chefão (1972), Crepúsculo dos Deuses (1950), e Lawrence da Arábia (1962).

Ajuda muito também o fato desses personagens serem interpretados por atores icônicos, altamente carismáticos, o que me leva ao próximo ponto:

CASTING IMPORTA

Spielberg costumava dizer que o casting (a escolha dos atores) representava 60% do sucesso de um filme (depois de uns anos ele reduziu essa estimativa para “apenas” 40% ou algo próximo disso — o que ainda é uma afirmação bastante impressionante). Na literatura, as informações sobre os personagens chegam até nós apenas através de palavras, baseamos nossos julgamentos apenas com base em descrições, mas sem evidências sensoriais. Já no cinema, nós temos uma pessoa real representando aquele personagem, e, querendo ou não, o ator trará uma quantidade enorme de informações para o personagem que afetarão totalmente nossa percepção dele.

Como já disse, no Idealismo, o espectador quer ver uma versão melhorada da realidade — personagens que ele possa admirar, que ele gostaria de ser, de conhecer, mesmo que se trate de um “típico adolescente” como Marty McFly. Então, a necessidade de escalar atores excepcionais é algo constante nesse tipo de cinema. Você sempre quer “astros” protagonizando seus filmes, não no sentido de serem atores já de renome, mas no sentido de serem atores altamente carismáticos, com um magnetismo cênico notável — seja para interpretar o Superman, Hannibal Lecter, uma mãe de família ou uma criança da favela.

APARÊNCIA IMPORTA

Uma beleza excepcional não é necessária para tornar um personagem gostável (a não ser que a natureza da história exija isso, como em Uma Linda Mulher). O mais importante aqui é o elemento carisma, magnetismo pessoal, e para o personagem ter isso ele não precisa ser bonito necessariamente (porém, vale lembrar que, assim como um típico adolescente num filme de Hollywood vive uma vida muito mais interessante que um adolescente do mundo real, o espectador Idealista quando vai ao cinema também espera ver pessoas mais atraentes do que aquelas que ele encontra na rua — mesmo que o ator esteja interpretando um personagem “comum”).

Embora beleza não seja indispensável, é importante ressaltar que o espectador Idealista se sente inspirado e quer ver uma realidade melhorada na tela. Assim como ele quer ser transportado para lugares mais bonitos e gosta de ver os protagonistas fazendo coisas extraordinárias, ele também tem prazer em ver uma bela figura humana retratada na tela — desde que isso não vá contra as necessidades específicas da história, é claro (personagens maus ou personagens cômicos em geral não devem ser extremamente belos, por exemplo). A atitude atual da cultura de querer tornar os heróis e heroínas figuras mais próximas das pessoas comuns, mais “humanizadas”, são atitudes que vão contra o Idealismo e pressupõem que o espectador se sinta ameaçado e desencorajado (em vez de inspirado) pela projeção do ideal.

A RELAÇÃO ENTRE APARÊNCIA FÍSICA E PERSONALIDADE

Nossa aparência física transmite uma série de impressões e qualidades que estão além do nosso controle, e isso não pode ser ignorado quando estamos tentando criar um personagem magnético e carismático. Na vida real, seria errado criar julgamentos sobre as pessoas com base em fatores não escolhidos, como a aparência. Porém, num filme, tudo é planejado e escolhido pelo autor para transmitir certas ideias e criar uma experiência para o espectador — na arte, é como se toda a realidade fosse moldada e recriada para expressar a visão do artista e criar certas impressões na plateia (nunca ignorando a psicologia e o subconsciente do espectador). Se até um movimento de câmera transmite certas ideias e comunica algo subconscientemente para a plateia, imagine então a aparência física do personagem (considere o fato de que, com o uso de maquiagem, uma pessoa pode ir de uma aparência ingênua a uma aparência mais agressiva com apenas algumas alterações no formato de sua sobrancelha).

Imagine se na hora em que Indiana Jones sai da sombra e mostra seu rosto pela primeira vez, o público se deparasse não com Harrison Ford, mas com o rosto de Woody Allen e sua típica cara de intelectual neurótico — o efeito seria completamente diferente e o personagem perderia boa parte de seu carisma. Da mesma forma, não teria nenhuma graça ver Harrison Ford interpretando Alvy Singer em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977) no lugar de Woody Allen — ele jamais convenceria naquele papel. Ambos são atores geniais e carismáticos — quando estão em seus respectivos lugares. Se Maria de A Noviça Rebelde fosse interpretada por uma mulher com uma beleza mais exótica e sensual como Sophia Loren, provavelmente seria um casting errado, e ela não seria tão gostável no papel quanto Julie Andrews e sua energia serena e maternal (Julie que, por sinal, teve bem menos êxito no filme A Estrela (1968), onde suas características naturais não se encaixavam tão perfeitamente nas de uma diva ambiciosa do teatro, de personalidade forte, fisicamente energética).

A maioria das pessoas pode chegar a uma personalidade magnética, carismática, mas não em qualquer tipo de papel, pois a aparência de cada um já traz uma série de qualidades e impressões das quais é difícil a pessoa fugir. É como um chef que entra numa cozinha, mas é obrigado a usar determinados ingredientes em sua receita, pois são coisas que já vêm obrigatoriamente com ele. Ele é capaz de preparar um prato maravilhoso se usar receitas que incluem esses ingredientes, mas não é capaz de preparar qualquer receita e ainda ter um resultado bom. Por exemplo: se ele é obrigado a incluir chocolate e açúcar em todo prato que faz, e ele decidir fazer um strogonoff — provavelmente o prato não ficará tão bom quanto se ele decidisse fazer um bolo — e também não ficará tão bom quanto o de uma outra pessoa que faça um strogonoff, mas cujos “ingredientes-base” sejam carne bovina, creme de leite etc. Esses ingredientes-base são as impressões e qualidades inevitáveis que transmitimos com nossa aparência.

Assim como algo mágico acontece quando os movimentos de um dançarino estão em harmonia com a música a qual ele dança, algo similar ocorre quando as qualidades visuais de um personagem “dançam” em harmonia com seu caráter.

Uma ótima ilustração disso é a cena de Funny Girl: A Garota Genial (1968), onde Fanny Brice se recusa a fazer uma cena de um espetáculo quando lê o roteiro e percebe que não tem o tipo de aparência certa para aquela situação, e que isso iria torná-la ridícula e pouco carismática em cena. O diretor quer que ela desça uma escada vestida de noiva, cantando uma letra que sugere que ela é de uma beleza estonteante —, mas Fanny sabe que ela não está à altura de tal pretensão. A saída que ela encontra é brilhante: contrariando o diretor, ela coloca uma almofada embaixo do vestido antes de entrar no palco, e faz a cena exatamente como foi escrita, porém sugerindo que a noiva está grávida, o que provoca gargalhadas na plateia e torna o momento o ponto alto do espetáculo, transformando Fanny num sucesso imediato (ela aposta no humor, que é seu ponto forte).




Ou seja, para que o personagem seja crível, sua aparência tem que estar em harmonia com seu caráter, com seu universo, com a história que está sendo contada e com o arquétipo que o artista deseja projetar. Ele tem que parecer ser a melhor “encarnação” possível daquela personalidade num corpo físico. Mas só isso não basta: para o personagem ser gostável num contexto Idealista, ele precisa também demonstrar virtudes e qualidades positivas de caráter que o tornam digno da admiração da plateia.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

As 5 Histórias Idealistas

(Capítulo 7 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Filmes podem pertencer a diversos gêneros, contar histórias completamente distintas, mas quando você reduz essas histórias ao essencial, você começa a perceber que elas geralmente caem dentro de uma destas cinco categorias que vou listar a seguir (quando são filmes Idealistas, claro).

Vale observar que muitos filmes entrelaçam várias dessas narrativas em uma única trama.

HISTÓRIA 1. Personagem gostável tem algum problema importante (sofre, está preso a uma rotina infeliz, falta algo crucial em sua vida), mas algum evento ocorre (normalmente alguém surge) para transformar sua vida e torná-lo feliz, completo, mostrando que a vida pode ser muito melhor do que ele jamais sonhou.

Exemplos: E.T.: O Extraterrestre (1982) / A Noviça Rebelde (1965), como citado no capítulo anterior.

O que atrai o espectador a essa história: o desejo pelo sentimento de otimismo, esperança, felicidade, de acreditar que problemas são superáveis, que a vida ideal pode ser conquistada (uma trama motivada primeiramente por Benevolência).

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HISTÓRIA 2. Personagem gostável, que a plateia sabe ser especial, é desacreditado, visto pelos outros como alguém incompetente, frágil, comum, em desvantagem, inferior, errado, despreparado —, mas ele passa por uma série de experiências, obstáculos, até que consegue provar seu valor de maneira enfática no final (finalmente ganha o respeito da sociedade/família/autoridades/adversários/conquista sua própria autoconfiança).

Exemplos: Dumbo (1941) / 12 Homens e Uma Sentença (1957) / Flashdance: Em Ritmo de Embalo (1983) / Rocky: Um Lutador (1976) / Uma Secretária de Futuro (1988) / Cinderela (1950).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo pelo sentimento de orgulho, força, capacidade, de acreditar que o ser humano é especial, capaz de superar qualquer obstáculo, atingir seu potencial máximo (uma trama motivada primeiramente por Autoestima).

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HISTÓRIA 3. Personagem gostável, vivendo uma rotina familiar pouco excitante, subitamente é jogado em uma aventura/situação inesperada, e acaba vivendo uma experiência extrema/grandiosa/fantástica/surpreendente/emocionante/impossível, que transformará sua vida para sempre.

Exemplos: Curtindo a Vida Adoidado (1986) / E.T.: O Extraterrestre (1982) / De Volta para o Futuro (1985) / Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) / O Mágico de Oz (1939) / Janela Indiscreta (1954) / Intriga Internacional (1959) / Matrix (1999) / Independence Day (1996) / Tubarão (1975) / Aliens – O Resgate (1986) / Poltergeist: O Fenômeno (1982) / O Exterminador do Futuro (1984).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo de viver a vida intensamente, fazer parte de acontecimentos incríveis, de algum evento especial, fugir da monotonia, do tédio, ir além da banalidade do dia a dia (trama motivada primeiramente por Excitação).

Variações comuns dessa história:

— O sonho que se transforma em pesadelo: personagem gostável acha que está prestes a viver uma experiência incrível, positiva, quando tudo se transforma em uma tragédia espetacular.
Exemplos: Titanic (1997) / O Iluminado (1980) / Cidade dos Sonhos (2001) / Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993) / Sexta-Feira 13 (1980) / Férias Frustradas (1983).

— O pesadelo que se transforma em sonho: personagem gostável acha que foi colocado na pior situação de sua vida, quando, ao final, isto prova ser a melhor coisa que já lhe aconteceu. 
Exemplos: Mudança de Hábito (1992) / Esqueceram de Mim (1990).

— Personagens gostáveis, porém, de valores ou personalidades diferentes são aproximados por um evento inesperado e acabam vivendo uma experiência inesquecível juntos; vão estreitando laços e criando uma relação de afeto/amizade surpreendente e transformadora.
Exemplos: Thelma e Louise (1991) / O Segredo de Brokeback Mountain (2005) / Levada da Breca (1938).

— Trama de disfarce: personagem gostável precisa se disfarçar/esconder sua verdadeira natureza ou sentimentos para atingir certo objetivo ou evitar algum problema, o que faz com que ele passe por situações excitantes, engraçadas, assustadoras. O que prende o espectador é sempre o medo dele ser descoberto.
Exemplos: Uma Babá Quase Perfeita (1993) / De Volta para o Futuro (1985) / Louca Obsessão (1990) / Quanto Mais Quente Melhor (1959) / O Casamento do Meu Melhor Amigo (1997).

— Personagem gostável se depara com um mistério, algo intrigante, inexplicável, e parte em busca por respostas até que ele se depara com uma verdade surpreendente e arrebatadora (tramas muitas vezes motivadas tanto por Excitação quanto por Objetividade — raramente uma história é motivada por Objetividade apenas, sem o apoio de um dos outros três pilares).
Exemplos: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) / Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) / Twin Peaks (1990) / Contato (1997).

Os dois próximos tipos de tramas são mais focados em eventos negativos, portanto, são mais adequados para dramas, gêneros mais adultos, menos leves que os descritos acima, mas os considero Idealistas ainda, pois o objetivo final da história — aquilo que realmente motiva a obra — é algo positivo.

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HISTÓRIA 4. Personagem gostável/íntegro/inocente é vítima de uma grande injustiça, ou se vê confrontado/atacado por pessoas corruptas, imorais, por uma sociedade injusta, até que, após grandes esforços, ele vence e a ordem é restaurada.

Exemplos: A Mulher Faz o Homem (1939) / A Felicidade Não Se Compra (1946) / Ben-Hur (1959) / Um Sonho de Liberdade (1994) / A Cor Púrpura (1985).

O que atrai o espectador a essa história: o desejo por justiça, de acreditar que o universo é um lugar bom, que o bem é recompensado no final, que a dor é temporária — também o prazer de ver o mal sendo derrotado (uma trama que pode ser motivada tanto por Benevolência quanto por Autoestima ou Excitação — o importante aqui é que a história não seja motivada pelo desejo de provocar um sentimento de pena, indignação moral, causar incômodo; por mais que a situação seja indesejável, o foco do filme deve ser as emoções positivas que a narrativa proporciona).

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HISTÓRIA 5. Personagem carismático, porém parcialmente falho/imoral (tem alguma “falha trágica”) parte em uma jornada autodestrutiva onde ele vai cometendo atos condenáveis, imorais, vai cedendo cada vez mais para o seu “lado negro”, ou cometendo erros/equívocos fatais, até que no final ele paga o preço, a tragédia recai sobre ele e a justiça é feita (a ordem é restaurada, mas não através da vitória do personagem como no exemplo anterior, e sim através de sua derrota ou decadência moral).

Exemplos: Barry Lyndon (1975) / Cidadão Kane (1941) / O Poderoso Chefão (1972) / Lawrence da Arábia (1962) / Crepúsculo dos Deuses (1950) / Ninfomaníaca: Volume 1 (2013) / Mamãezinha Querida (1981) / Pérfida (1941).

A Filha de Satanás (1949)
O que atrai o espectador a essa história: o desejo de ver que o crime não compensa, que o mal é penalizado no final, que fraqueza traz consequências graves, e também o interesse de aprender o que não fazer — como não devemos agir na vida se quisermos ser bem-sucedidos (a trama também gira em torno de valores positivos, embora seja menos óbvio aqui do que nos casos anteriores).

Como essa é uma trama focada primeiramente no negativo, não retrata personagens admiráveis (a essência da história é criticar o negativo, condenar o mal, não enfatizar o positivo), ela pode facilmente se tornar chata/desagradável demais, e perder o interesse do “espectador Idealista”, caso não inclua elementos positivos e prazerosos ao longo da narrativa (isso vale também para a História 4).

Por exemplo: Barry Lyndon (1975) e Cidadão Kane (1941) podem ser experiências gratificantes nem tanto pelo “prazer” de ver a decadência dos protagonistas, mas pela maestria com que o filme é realizado (o que prende o espectador no fim é o senso de admiração pela obra, pela genialidade do autor — algo ligado ao pilar da Autoestima). Os filmes podem compensar esse aspecto negativo da trama de outras formas também: criando performances espetaculares e carismáticas (pense no deleite de ver Bette Davis fazendo uma vilã), ou então situando a tragédia moral no meio de uma grande aventura, satisfazendo o desejo por escapismo do espectador (Excitação), como em Lawrence da Arábia (1962), ou através do uso de choque, humor.


Muita gente já escreveu sobre histórias arquetípicas como essas, mas aqui eu não me baseei em nenhum modelo pré-existente — essas narrativas foram baseadas na minha própria observação daquilo que funciona. Ideias como as de Joseph Campbell, por exemplo, podem ser úteis para muitos autores e espectadores, e podem gerar obras populares, mas não são sempre compatíveis com o Idealismo.

No livro The Seven Basic Plots, por exemplo, o autor Christopher Booker lista como uma das sete tramas universais a da “Busca” (The Quest), que é quando o protagonista e seus companheiros partem em busca de um objeto importante, à procura de alguma locação misteriosa, e encontram tentações e obstáculos no caminho. Sem dúvida, essa narrativa descreve inúmeras histórias clássicas de aventura, mas eu ainda não a consideraria Idealista necessariamente. Peguem o filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (2001), por exemplo: ele certamente cai nessa categoria, e funciona para muita gente, porém não se encaixa tão bem nas 5 Histórias listadas acima, pois, pelo que expliquei, toda a graça deste tipo de trama (História 3) está ligada à surpresa de se ver numa aventura fantástica, ao desejo de fugir da normalidade, de viver experiências excitantes, ter sua visão de mundo totalmente abalada, conquistar algo de valor para sua vida. A importância está na diversão, na experiência psicológica e emocional vivida pelo protagonista (e na emoção equivalente provocada no espectador), e não na ação em si. O simples fato de alguém sair em busca de algum objeto ou locação distante e enfrentar obstáculos ainda não garante essa experiência positiva — isto depende de algumas condições. Se o personagem está indo apenas por um senso de dever ou obrigação, por exemplo, então não é uma história Idealista — a conquista do objeto não causará uma experiência de satisfação pessoal, como causaria em um filme como Os Caçadores da Arca Perdida (1981), em que o herói é motivado por uma verdadeira obsessão individual. Se o foco da história é o sofrimento do protagonista, suas dores, seus sacrifícios e perdas durante a jornada, isso também não é Idealista. Outro ponto: se o protagonista já vive num mundo fantástico, cheio de magias e criaturas sobrenaturais, e sai numa jornada onde encontra outras coisas mágicas e fantásticas, isso não é surpresa alguma, e não satisfaz o desejo por escapismo e Excitação. Como contraste, se paleontólogos céticos vivem num mundo normal, não acreditam que dinossauros possam existir, e subitamente se veem fugindo deles num parque fora de controle, como em Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993), aí sim temos uma história Idealista.

Como sempre, tudo deve ser visto em conjunto com os outros princípios e valores discutidos em outros capítulos. Não adianta seguir fielmente uma dessas narrativas, mas ter como protagonistas personagens cínicos, corruptos, anti-heróis, e achar que a história funcionará da mesma forma.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

A Dama e o Vagabundo

O filme sofre do mesmo problema que o "live action" do Rei Leão (a estética super realista que deixa os animais pouco expressivos e destrói o aspecto lúdico da história), mas com a desvantagem de não ter as canções e nem as paisagens deslumbrantes que tornavam O Rei Leão (2019) uma sessão ainda divertida.

Não lembro se isso já era um problema no desenho de 1955, mas a história simplesmente não é das mais empolgantes. Toda a narrativa conta com o espectador querer que a Dama e o Vagabundo se envolvam, se tornem ótimos amigos ou namorados, mas não há nada de atraente na figura do Vagabundo (no que ele pode acrescentar à vida da Dama) pra fazer o espectador torcer por isso. Também não há um grande conflito inicial pra Dama no roteiro. O grande problema dela é o fato do bebê da família nascer e agora ela não ter a atenção plena dos donos. Mas isso não tem como ser resolvido, e não chega a ser uma grande tragédia que crie altas expectativas em relação ao que irá acontecer (até porque os donos são personagens bastante sem graça também - não cria na plateia um desejo forte de vê-los unidos de novo). Ou seja, se os personagens são desinteressantes, se os conflitos são fracos e se as relações não empolgam, não há muito como salvar a história (pelo menos dentro da minha visão do que um filme da Disney deveria proporcionar - os espectadores com um gosto mais pro Naturalismo talvez vejam certa graça na ideia de uma cadela de classe alta abandonar seu lar e passar a se conscientizar dos problemas sociais dos cães menos "privilegiados", etc).

Assim como O Rei Leão (2019), Dumbo (2019), é mais uma dessas produções da Disney que parecem motivadas mais por questões comerciais do que criativas infelizmente, como digo na postagem A Importância de Ideias e Inspiração.

Lady and the Tramp / EUA / 2019 / Charlie Bean

NOTA: 4.0

domingo, 12 de abril de 2020

Projeto de livro

Uma ideia que venho considerando há um tempo é a de publicar um livro apresentando as ideias sobre entretenimento e arte que discuto aqui no blog (alguns leitores já sugeriram isso no passado inclusive). Fazendo um breve cálculo, vi que só com o material já escrito eu poderia montar um livro de mais ou menos 150 páginas. Claro que teria que reformatar muita coisa, incluir novos textos... Mas toda a base já existe. Gostaria de saber de vocês (especialmente dos que estão familiarizados com as postagens teóricas) o que mais vocês acham que eu deveria explorar, discutir, incluir nesse livro pra ter um argumento convincente a favor do Idealismo e realmente conseguir influenciar e ajudar artistas que se identifiquem com esse estilo de arte. Comentem ou me escrevam no e-mail caiorodriguesamaral@gmail.com - valeu!