terça-feira, 28 de maio de 2024

Maio 2024 - outros filmes vistos

Biônicos (2024 / Afonso Poyart)

Desde Mais Forte que o Mundo: A História de José Aldo (2016), Afonso Poyart estava na minha lista (extremamente breve) de cineastas brasileiros nos quais eu via potencial, mas agora a lista acabou de ficar mais curta. Apesar da tentativa sempre meio cringy de vestir o Brasil numa roupagem high-tech, a história de Biônicos até me interessou no começo — parecia uma discussão inteligente sobre as possíveis consequências negativas da tecnologia para a sociedade, especialmente no contexto de uma cultura que recompensa mediocridade e penaliza virtude. A protagonista Maria também parecia ser uma mulher íntegra no começo, uma atleta que se orgulha de cultivar habilidade de verdade e que não está disposta a se vender. Mas no fim, o filme vira o oposto disso. Em vez de condenar a ideia de atletas biônicos substituindo atletas tradicionais no esporte, ou o absurdo de uma pessoa saudável se automutilar pra ganhar membros artificiais, o filme acaba mostrando isso como algo cool; as próteses como um símbolo de empoderamento e até de "justiça social". Maria de uma hora pra outra se torna uma criminosa, contradizendo toda sua caracterização inicial, e apesar do cenário high-tech, o filme acaba dando um jeito de apostar na velha "cosmética da fome" do cinema brasileiro, glamourizando o crime, e exigindo que todos pronunciem por** a cada duas frases. A trama lembra muito a de Chappie, mas é ainda mais ilógica: estamos em 2035, num mundo dominado por tecnologia, e a forma mais prática que o Bruno Glagliasso encontra de roubar R$500 mil é seduzindo uma atleta, convencendo ela a se tornar uma bandida, a ser atropelada de propósito, ter sua perna amputada e substituída por uma perna biônica (como eles sabem que o atropelamento causaria este ferimento exato nunca é explicado) pra que daí ela possa usar a perna biônica pra arrombar um carro-forte e roubar o dinheiro pra ele (!). Esse heist movie e a trama paralela das duas irmãs rivais competindo no esporte parecem dois filmes separados que nunca se integram direito, e a execução toda é péssima. Alguns efeitos visuais até impressionam pros padrões nacionais, mas não escondem a falta de jeito dos produtores pra esse tipo de entretenimento: o CGI mais caprichado do mundo não impediria a cena dos 3 irmãos encontrando o Miguel Falabella no final de estar entre os desfechos mais péssimos que já vi no cinema (que inclui possivelmente a cena de "dancinha da vitória" mais patética de todos os tempos).

Satisfação: 0 (Idealismo Corrompido)



The Beach Boys (2024 / Frank Marshall, Thom Zimny)

É raro a gente ver qualquer história inspiradora na ficção hoje; talvez seja por isso que documentários como este, sobre carreiras de sucesso do passado, estejam sempre terminando entre meus filmes mais recomendados do ano. The Beach Boys é exatamente o documentário que parece ser. Foi dirigido por Frank Marshall (produtor de E.T. Os Caçadores da Arca Perdida), que também dirigiu o ótimo The Bee Gees: How Can You Mend a Broken Heart (2020). Em contraste com a trajetória mais otimista dos Bee Gees, que estouraram quando a contracultura já estava chegando ao fim, é fascinante ver o que aconteceu esteticamente e psicologicamente com artistas que se formaram antes dela, nos tempos ainda idílicos dos anos 50/60, e que depois tiveram que se adaptar a uma sociedade que havia se tornado hostil aos ideais que eles representavam.

Satisfação: 8



Fúria Primitiva (Monkey Man / 2024 / Dev Patel)

Pegue todos os valores mais desagradáveis do cinema atual: o populismo, o primitivismo/misticismo, o culto à violência, à pobreza, o ódio dos ricos, e os imagine sendo apresentados em uma história que se passa inteira em ambientes escuros, repulsivos, onde todos os personagens são moralmente corruptos, que é pura ação divorciada de drama, e que é liderada por um "herói" cujo único propósito é externalizar toda sua raiva e praticar os atos mais grotescos de violência. Isto é Fúria Primitiva, uma espécie de John Wick à indiana que Dev Patel (Quem Quer Ser um Milionário?) parece se orgulhar de ter escrito, dirigido e estrelado.

Satisfação: 0 (Idealismo Corrompido)

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Furiosa: Uma Saga Mad Max

Mad Max: Estrada da Fúria me impressionou na primeira vez que vi, mas com o tempo fui percebendo que quase todo o impacto era devido ao visual do filme — uma ilusão à la Duna: Parte 2. Tirando isso, sobrava pouca coisa. Furiosa agora é essa pouca coisa.

Não que o filme não tenha imagens bonitas. Mas a fotografia desde a primeira imagem já revela um certo downgrade na produção (apesar de George Miller ter conseguido trazer de volta boa parte da equipe do outro filme, ele não conseguiu o fotógrafo John Seale, que realmente faz falta). As maquiagens e figurinos exagerados que ainda conseguiam parecer cool em Estrada, aqui às vezes já parecem meio ridículos na tela (o designer de produção, por melhor que seja, é sempre refém do diretor de fotografia). Pequenos descuidos como esses vão tornando a produção menos "sexy" visualmente, e o roteiro não tem cérebro o bastante pro filme nos impressionar por outros atributos.

Estrada da Fúria tinha um roteiro simplório que servia só como pretexto para as perseguições, mas sua simplicidade era honesta e deixava pouca margem pra problemas estruturais graves. Furiosa já tenta fazer muito mais, e o resultado é uma história confusa, truncada, que é longa demais onde devia ser curta, curta demais onde devia ter mais desenvolvimento, e sempre superficial, episódica — um roteiro sem gancho, que não te faz torcer por ninguém, e depende da curiosidade jornalística do fã que eventualmente se importe por saber como Furiosa perdeu o braço, quem foi sua mãe etc. Parece que Miller filmou literalmente a backstory da personagem que ele escreveu como base pro roteiro de Estrada da Fúria, e ainda deu um jeito de transformar isso num filme 30 minutos mais longo que o original.

Furiosa é ambicioso em escala, tem várias ideias em termos de direção de arte, construção de mundo — pelo menos não é um filme enlatado como a típica prequel. Mas isso não o torna um bom filme ainda, e nem mesmo um bom passatempo — pelo menos para aqueles que, como eu, não têm um prazer especial em contemplar decadência, dor, pessoas raivosas, etc. (Aliás, achei curioso no cinema ver o pôster de Furiosa lado a lado com o de Fúria Primitiva — a outra estreia da semana, sobre o "macaco" lutador do Dev Patel — e este pôster já fez meu olho saltar para outros dois próximos também sobre macacos furiosos: Godzilla e Kong: O Novo Império e Planeta dos Macacos: O Reinado. Então fica a dica: o mercado continua em alta pra tudo que envolve coisas primitivas, zangadas, e civilizações em colapso).

Furiosa: A Mad Max Saga / 2024 / George Miller

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Mad Max: Estrada da Fúria (2015) / Alien: Covenant (2017) / Blade Runner 2049 (2017) / John Wick 4: Baba Yaga (2023)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Cultura: The Critical Drinker - Um Dia de Fúria

Sabe quando a polícia vai vasculhar o computador de um atirador de escola depois do massacre e encontra manifestos ideológicos que fazem você pensar "agora tá explicado"? É em um contexto desses que eu esperaria ouvir uma análise como essa que o The Critical Drinker fez de Um Dia de Fúria (1993). Mas pelo visto, a cultura já desceu a tal ponto que a leitura dele do filme se tornou mainstream.

Apesar de Um Dia de Fúria humanizar de forma questionável o protagonista, o filme não relativiza o fato que Bill é um homem perigoso, doente, que está cometendo uma série de crimes injustificáveis. Não se trata de uma história tipo Thelma & Louise, em que pessoas inocentes se tornam criminosas sob circunstâncias até compreensíveis. E nem de um Coringa, em que o protagonista é claramente um monstro, mas o filme tenta amenizar sua culpa dizendo que ele é uma "vítima do sistema".

Um Dia de Fúria não mostra Bill sendo uma vítima do sistema. A América que vemos ao redor dele está funcionando tão bem quanto nunca. Ele se enxerga como vítima, mas ele é um lunático. O filme em si nunca indica que o "sistema" é mau. Mas é isso que o Drinker quer questionar... Pra ele, o tempo só mostrou que o personagem do Michael Douglas estava certo o tempo todo! Que, assim como o Coringa, Bill era apenas mais uma vítima, "como todos nós".

As racionalizações do vídeo são chocantes (até dei uma checada no calendário pra ver se não era 1º de Abril):


- Drinker diz que o filme é sobre um homem "tentando chegar em casa para o aniversário de sua filha" — ele só não comenta que Bill não está indo para a sua casa, e sim para a casa da ex-mulher, que não quer sua presença e tem tanto medo dele que colocou até uma medida protetiva o impedindo de se aproximar de sua casa.

- Drinker diz que a loja de conveniência "sobe seus preços para espremer dinheiro dos clientes", mas o filme nunca mostra isso. Não sabemos se o preço da Coca-Cola naquela loja está de fato mais alto do que em outras lojas da região. O funcionário coreano não está cobrando mais caro de Bill do que de outros clientes. Bill simplesmente entra na loja, vê que uma lata de Coca custa 85 centavos, fica indignado, e se acha no direito de destruir o estabelecimento, agredir fisicamente o funcionário, que aliás ele ofendeu gratuitamente antes com falas racistas/xenofóbicas. Mas Drinker abafa esses "detalhes".

- Na cena em que Bill aterroriza uma lanchonete inteira após ouvir que ele não pode pedir lanches do café da manhã na hora do almoço, Drinker sugere que Bill é a pessoa mais lúcida da cena! Que a rede de fast-food não é inocente pois está "explorando" os clientes e oferecendo comida de má qualidade, e que os clientes são um "gado estúpido e acéfalo" já engolido pelo sistema. Drinker acha que a expressão "estúpida" no rosto dos clientes tem a ver com o fato deles não conseguirem absorver os argumentos sofisticados de Bill. Não lhe ocorre que talvez seja pelo fato de Bill ser um estranho com uma metralhadora na mão!

Parece incrível, mas o Drinker vê o filme assumindo que as distorções de Bill a cada cena sejam a realidade objetiva. Mas Um Dia de Fúria deixa tão claro que a ótica (e a ética) de Bill é distorcida quanto Psicose faz em relação a Norman Bates.

Drinker quer tanto que Bill seja a vítima que chega até a descrever coisas que não estão no filme: ele diz que a ex-mulher afirma pro policial que ela acha "injusta" a medida protetiva contra Bill. Mas a ex-mulher não diz que acha a medida injusta. Pra ela, está claro que Bill é perigoso. Quando ela diz que a medida protetiva poderia fazer "mais mal do que bem", é no sentido de Bill ser tão desequilibrado que envolver a justiça poderia contrariá-lo e torná-lo ainda mais perigoso!

Drinker diz que Bill segue um código moral próprio e "não prejudica pessoas inocentes". Mas exceto por um ou outro caso em que Bill age em autodefesa, o filme inteiro é sobre Bill prejudicando pessoas inocentes! Quando ele soca um motorista na cara só por ele estar gritando pela janela, o motorista estava fazendo algo pior que Bill fez o filme todo? Quando ele dá um tiro de bazuca em direção a operários na rua, ele tem alguma prova de que a obra é desnecessária? E ainda que fosse, isso tornaria os operários culpados?

O código moral de Bill (e o do Drinker) parece ser o seguinte: qualquer um que irrite ele ou não atenda suas vontades e caprichos imediatamente, se torna culpado. Ele não tem concepção alguma de responsabilidade própria, de direitos individuais, direito à propriedade, ou de liberdade. A América dos sonhos do Drinker não é a "Terra da Liberdade". É uma América que elimine o fator competição, o fator risco, que garanta emprego, estabilidade e qualidade de vida para qualquer um que "faça o que lhe foi dito", que cumpra seu dever como cidadão (quem é mesmo o "gado estúpido e acéfalo"?). Os vilões, pra ele, são o capitalismo, os ricos, os "gananciosos", aqueles que pensam em si mesmos e se recusam a se sacrificar pelo "bem comum" (a direita hoje às vezes consegue ser mais esquerdista do que a própria esquerda!). Ele é incapaz de conceber que em qualquer Era de Ouro da história dos EUA (e a época em que Um Dia de Fúria se passa pra mim seria uma delas!), ainda havia contratempos, filas, pessoas ignorantes, restaurantes oferecendo comida de baixa qualidade, produtos que alguns poderiam julgar caros demais — que nem toda dificuldade da vida é culpa de um crime ou de um sistema corrupto. Mas pra esse tipo de mentalidade, o sistema ideal deveria fazer desaparecer todas as dificuldades existenciais… Portanto, qualquer obstáculo que surja no seu caminho se torna uma prova da corrupção do sistema — não apenas o trânsito, os preços altos, mas também o calor, a mosca dentro do carro etc. Por isso, é "compreensível" que Bill pegue uma arma e saia dando tiros para todos os lados.

Este é o personagem que o The Critical Drinker, um dos críticos mais populares na direita hoje, diz representar todos nós.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Roteiro: o Relojoeiro e o Planejador de Viagem

Entre os escritores ou teóricos que defendem o cinema narrativo, filmes com tramas etc., há dois tipos de abordagens que nunca vi serem diferenciadas, mas que causam confusão quando não são:

A primeira é a do roteirista que vou chamar de "Relojoeiro". Este escreve histórias interessado primeiramente em criar uma trama intrincada, engenhosa, em que todos os elementos e "engrenagens" estão finamente interconectados e trabalham juntos de forma coordenada para produzir um resultado preciso — informar um tema; comunicar uma mensagem importante etc.

A segunda é a do roteirista que vou chamar de "Planejador de Viagem". Este também pode buscar harmonia e coesão interna, mas está mais preocupado com a experiência que proporcionará ao "viajante", em levá-lo aos lugares mais interessantes possíveis dentro daquela rota, mantendo a jornada memorável e prazerosa do início até o destino final.

Os grandes clássicos do teatro e da literatura do século 18 ou 19 costumam se basear no método do Relojoeiro.

O cinema americano já se moldou primeiramente em cima do método do Planejador de Viagem.

Não significa que as duas abordagens sejam auto-excludentes. Ambas podem ser combinadas. Mas diria que a abordagem do Planejador de Viagem é mais essencial para o Idealismo do que a do Relojoeiro. É por isso que o Paradigma Idealista reflete mais a mentalidade do Planejador de Viagem:


Este modelo (que incorpora vários princípios importantes do Idealismo como o Princípio da Ascensão e o dos Set Pieces) é baseado na teoria de felicidade representada pela frase: "A felicidade é a realização progressiva de um ideal ou objetivo digno". Ou seja, para estarmos felizes (tanto na vida real quanto na vida simulada pela arte), precisamos ter um objetivo atraente no futuro para o qual sentimos que estamos caminhando, e precisamos também ter recompensas ao longo do caminho; realizações intermediárias que confirmem que estamos indo na direção certa e renovem nossa motivação.


O paradigma Idealista não despreza lógica e objetividade — o gráfico indica que os eventos da história precisam estar integrados ao redor de um tema central e que a trama precisa ser guiada por um propósito. Mas ele não diz que a trama precisa ser necessariamente intrincada ou incrivelmente engenhosa.

Há um perigo em confundir histórias bem construídas, que respeitam o pilar da Objetividade, com o tipo de quebra-cabeça conceitual praticado pelo Relojoeiro. O dom do Relojoeiro pode até ser admirável e tornar um roteiro mais impressionante tecnicamente, mas ele não é apropriado pra todo tipo de história, e não reflete uma virtude humana tão fundamental para a apreciação estética. O tipo de inteligência que o Relojoeiro projeta é análoga à do campeão de xadrez; um talento que pode ser fascinante, como o de um malabarista, mas que não tem uma relação tão direta com produtividade e com a felicidade humana. Já a disciplina do Planejador de Viagem de saber estabelecer o destino certo, de saber caminhar em direção a ele, sempre recompensando o interesse e a motivação do "viajante", este sim está diretamente ligado o processo da felicidade.

Quando roteiristas do tipo "Relojoeiro" ficam encantados demais com a engenhosidade de seus quebra-cabeças e não formam uma parceria saudável com o "Planejador de Viagem", eles muitas vezes perdem de vista o prazer do espectador, e terminam escrevendo histórias que parecem inteligentes, bem elaboradas, mas que deixam o público frio emocionalmente. 

A engenhosidade da trama não é uma fonte primária de prazer para o espectador. É um virtuosismo técnico que só se torna uma verdadeira fonte de inspiração quando ele está servindo para potencializar o prazer primário, que está no conteúdo, nos valores e temas da história. O Relojoeiro que foca primeiramente em seu próprio virtuosismo acaba se tornando Não Idealista, assim como qualquer artista que coloca sua técnica e estilo acima da Primazia do Espectador.

Exemplos:

Billy Wilder era um ótimo roteirista que tombava às vezes pro lado do Relojoeiro. Seus melhores filmes, como Crepúsculo dos Deuses ou Testemunha de Acusação, integravam bem as duas abordagens. Mas muitos de seus filmes pareciam mais preocupados com os jogos e simetrias conceituais do que com o apelo real do enredo — como Cupido Não Tem Bandeira ou até mesmo Se Meu Apartamento Falasse.

Mas Wilder ainda mantinha um certo equilíbrio. O pior extremo dessa abordagem seria o de filmes estilo Um Contratempo, que partem do erro do Relojoeiro de colocar todo o foco na complexidade interna da trama, só que pra piorar são Relojoeiros incompetentes — constroem uma geringonça cheia de peças sobressalentes, engrenagens que não funcionam, e o relógio no fim só marca a hora errada.

Os melhores Planejadores de Viagem seriam cineastas como Spielberg ou Hitchcock, que além de priorizarem os destinos, têm também um dom especial para descobrir lugares incríveis que ninguém visitou antes. Em um making-of de Jurassic Park, lembro de um colaborador de Spielberg dizendo que, uma vez definida a premissa do filme, o primeiro passo deles era sempre pensar "o que absolutamente não poderia faltar nessa história" — se o filme é sobre ressuscitar dinossauros, por exemplo, eles não poderiam desperdiçar a chance de ter um T-Rex eventualmente escapando e caçando os protagonistas. Isto é pensar em termos de "destinos". Hitchcock também costumava pensar primeiro nos Set-Pieces e nas cenas interessantes que a premissa permitia, pra depois construir a trama ao redor delas.

Planejadores de Viagem também podem levar esta abordagem de Hitchcock a um extremo ruim, e terminarem com um filme cheio de momentos memoráveis, mas cuja história pareça aleatória e mal costurada (um exemplo negativo seria Barbie, que além de pular de um destino para o outro sem a menor preocupação com coerência, mostra um gosto bem duvidoso em suas escolhas de destinos). Mas eu não diria que, pra manter o equilíbrio, os Planejadores de Viagem precisam formar uma parceria com o Relojoeiro necessariamente. Às vezes pode ser o caso. Mas pra introduzir um terceiro arquétipo a esta história, seria um bom "Alfaiate" que todo roteirista precisa ter ao seu lado. A preocupação do Alfaiate com a qualidade do material, com as emendas, com a harmonia e funcionalidade das partes, garantirá que a história não perca sua integridade — mas ele não exigirá que toda história seja um quebra-cabeça extremamente complexo.

Resumindo: no Idealismo, todo roteirista deveria ser um bom Planejador de Viagem e um bom Alfaiate, mas não necessariamente um Relojoeiro. O Relojoeiro geralmente eleva o nível de uma história, e seu método é compatível com princípios narrativos do Idealismo, mas apenas na medida em que se associa ao Planejador de Viagem.

Os autores mais aclamados por críticos e intelectuais ainda costumam ser os Relojoeiros, talvez por estes seguirem princípios literários bem estabelecidos desde os tempos de Shakespeare ou até de Sófocles. O próprio Romantismo da Ayn Rand segue mais por esta linha de pensamento — e este é um dos aspectos mais importantes, mas não tão óbvios, em que o Idealismo se difere do Romantismo.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Planeta dos Macacos: O Reinado

Visualmente a série continua esplêndida, mas o roteiro caiu um pouco de nível neste episódio. As reflexões éticas/filosóficas se tornaram menos profundas agora que o conflito principal não é mais entre humanos e macacos, apenas entre duas tribos diferentes de macacos. E em relação aos últimos, este filme também me pareceu mais derivado criativamente — a cada nova cena você pensa: isto é igual em Avatar, isto agora é igual em O Rei Leão etc.

Fiquei com a impressão que o roteirista tinha ideias para um trecho só do filme quando escreveu a história: o terço final em que os macacos e a humana Nova planejam a invasão ao "cofre" e a vingança contra a tribo inimiga. A primeira 1 hora e meia é uma grande névoa onde nada realmente significativo acontece. A ideia mais interessante do filme pra mim é a dos macacos viverem de forma primitiva, com tecnologias decadentes, e nem saberem mais que os humanos eram inteligentes no passado e viviam em uma civilização bem mais avançada (o que nos remete ao tema do Planeta dos Macacos original). Isso poderia ter rendido comentários sociais interessantes, e o passado humano poderia ter se tornado uma fonte de inspiração para os personagens bons da história, mas infelizmente, o filme acaba parecendo mais interessado em honrar o estilo de vida primitivo dos macacos; em celebrar suas tradições arcaicas, seus cânticos, rituais nonsense etc.

Kingdom of the Planet of the Apes / 2024 / Wes Ball

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Avatar: O Caminho da Água (2022) / The Lion King (2019) / Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1 (2014) / Maze Runner: Prova de Fogo (2015)

Amigos Imaginários

A premissa é um exemplo típico da História Idealista #1 — uma garota passando por dificuldades emocionais após a morte de sua mãe tem sua vida transformada com a chegada do personagem do Ryan Reynolds e sua trupe de "IFs" (Imaginary Friends).

Histórias desse tipo nunca chegam aos cinemas intactas hoje sem antes passarem por uma "releitura", e a direção que Amigos Imaginários toma é um bom exemplo de por que nem todo caso de Idealismo Corrompido é um caso de Anti-Idealismo. O filme não tem uma intenção maliciosa de subverter a História #1 — o título reminiscente de "E.T.", a trilha à la John Williams e o fato do diretor ter chamado o Janusz Kaminski (parceiro do Spielberg) para a direção de fotografia deixam clara a simpatia do diretor John Krasinski por esse gênero de cinema.

O filme chega até a soar antiquado pela iconografia Idealista que ele traz — referências a musicais antigos da Esther Williams, a Meu Amigo Harvey (clássico com o James Stewart sobre um amigo imaginário), à Tina Turner dos anos 80... Homenagear os anos 40/50 e os anos 80/90 não é "cool" hoje, já que são períodos associados ao Idealismo. A cultura americana dessas épocas (podemos incluir aí também o século 19; o período dos westerns etc.) só deve ser lembrada em tom de crítica ou de deboche, não de saudade genuína, se você quiser parecer atual.

Isso quer dizer que Amigos Imaginários faz jus às suas referências? Não — ele expressa um certo saudosismo, mas destrói todo o suposto otimismo da história ao deixar explícito que os IFs (que simbolizam felicidade, amor, inocência) não passam de uma fantasia infantil; são apenas uma maneira "poética" do filme representar o escape da menina Bea de sua realidade triste para um mundo mais cor-de-rosa (o mundo real do filme é definido por hospitais, doenças terminais, morte etc.). A "alegria" do filme é tão convincente quanto a projetada por esses palhaços deprimentes de hospital, cujo otimismo forçado, água-com-açúcar e desconectado da realidade só aumenta a certeza do paciente de que algo horrível deve estar acontecendo (Krasinski disse que concebeu a história durante a pandemia pra tentar conter o amadurecimento repentino de suas filhas, o que faz bastante sentido — ele parece enxergar "felicidade" e "ilusões da infância" quase como sinônimos, por isso pra ele deve parecer trágico alguém crescer e perder a capacidade de viver em um mundo de fantasia).

Além dessa questão (que está mais ligada à filosofia da história) há vários problemas puramente narrativos no filme. A construção de mundo é mal-feita — o universo secreto dos IFs nunca é tão bem apresentado pro público quanto o de Monstros S.A. ou de outros filmes da Pixar, por exemplo. Os dois IFs que ganham mais destaque, Blue e Blossom, não são memoráveis em design ou em personalidade, o que reforça o senso de que o filme está aproveitando mal seu conceito. Os outros são estereótipos enlatados que só falam piadas prontas. A protagonista Bea é apresentada como uma espécie de Elsa, uma menina triste e vitimizada (o que já não inspira muita simpatia), e a transformação dela em uma menina alegre, entusiasmada com a vida, é rápida demais e não gera nenhuma empolgação. Mal entendemos por que ela começa a enxergar os IFs de uma hora pra outra, por que os IFs precisariam da ajuda de um humano... Os personagens do Ryan Reynolds e do John Krasinski (que além de diretor também atua no filme) são parecidos demais, o que faz com que um enfraqueça a função do outro na história. (SPOILERS) Aliás, se a intenção do roteiro foi criar uma surpresa estilo O Sexto Sentido no final ao "revelar" que Reynolds também era imaginário, a reviravolta foi tão mal escrita que só ouvindo uma crítica na saída da sessão que me ocorreu que talvez o final tivesse sido "surpresa" — eu desde o começo assumi que ele era imaginário e nem notei os esforços do filme pra disfarçar qualquer coisa.

Nesta crítica, aliás, o crítico parecia enxergar os problemas de roteiro de Amigos Imaginários como um problema à parte, desconectado da filosofia do filme. Mas pra mim, uma coisa é consequência da outra: é justamente o fato de Krasinski não acreditar no otimismo da história que ele está contando que faz com que ele não se esforce pra tornar a trama dos IFs crível.

Vendo o filme, lembrei da cena de E.T. em que a mãe lê Peter Pan para a Gertie na cama. Na cena, a mãe está encenando esse tipo de otimismo exagerado que as próprias crianças sentem em algum nível que é inautêntico da parte dos adultos. Mas Elliott, escondido no armário com E.T., é uma prova para o espectador que "fadas" realmente existem no universo do filme. Isso torna a mãe a figura mais ingênua da história; ela acha que fadas e criaturas mágicas são de mentirinha, mas mal sabe ela o que está escondido bem ali em seu armário! Ou seja: enquanto a história de E.T. é uma negação do pessimismo típico da vida adulta, a de Amigos Imaginários acaba sendo uma reafirmação dele.

IF / 2024 / John Krasinski

Satisfação: 3

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Sete Minutos Depois da Meia-Noite (2016) / Christopher Robin: Um Reencontro Inesquecível (2018) / Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada é Impossível (2015) / O Bom Gigante Amigo (2015)

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Comentários - Filmes Favoritos de Ayn Rand

Quem me acompanha aqui sabe que apesar da Ayn Rand ser minha grande referência intelectual, não é incomum eu pensar diferente dela sobre certos assuntos. E embora eu concorde com muito de sua teoria de arte (Romantismo), os exemplos concretos que Rand dava às vezes não pareciam representar 100% os princípios estéticos/filosóficos que ela estabeleceu e com os quais eu tendo a concordar.

Isso certamente ocorre no caso do cinema — um pouco pelos comentários que ela fez sobre certos filmes (que listei na postagem Filmes Favoritos de Ayn Rand) mas especialmente pelos comentários que ela não fez sobre as diversas obras-primas do cinema (muitas até Românticas, na minha visão) lançadas no período em que ela era ativa publicamente como intelectual; um silêncio intrigante, considerando a cinefilia dela na juventude e toda sua proximidade com a indústria cinematográfica ao longo da carreira.

Em geral, acho que Rand era bastante perspicaz em suas observações sobre os filmes e ela frequentemente enxergava coisas que quase ninguém mais enxergava, o que era comum de ocorrer em outras áreas de conhecimento também. Porém, talvez por ela ter formado suas opiniões sobre o cinema na juventude e ter se distanciado da cultura popular na maturidade, seus comentários sobre filmes às vezes pareciam menos refletidos que seus comentários políticos, ou estavam vindo de uma amostragem extremamente limitada.

Comentando os Comentários de Rand:

Ninotchka brincando de ser
executada por comunistas
Com Ninotchka, acho que Rand foi bem certeira. É uma comédia inteligente, bem realizada, com um humor bem intencionado na maior parte do tempo, mas que desliza quando tenta tornar o regime Soviético um assunto leve e divertido.

Faz tempo que não assisto a Dr. No para dizer se o acho tão Romântico assim, mas concordo que a série 007 foi se tornando vítima do humor "tongue-in-cheek" ao longo dos anos 60 e 70.

Os Melhores Anos de Nossas Vidas, além de flertar com o Naturalismo, tem de fato mensagens anti-capitalistas que justificariam as denúncias de Rand.

O Milagre de Anne Sullivan é um drama impactante sobre o papel da mente na vida humana; dá pra entender por que Rand admirava a peça, ainda que pra mim o filme seja um tanto pesado e cru em estilo (foi dirigido por Arthur Penn, um dos pioneiros da Nova Hollywood, que ajudaria a dar fim à era Idealista clássica do cinema).

No Calor da Noite cai um pouco na mesma categoria: tem uma trama bem construída, um tema positivo que reflete valores objetivistas — entendo por que a premissa de um homem íntegro e racional desafiando toda uma sociedade era atraente para Rand — mas eu já acho que o foco excessivo nos conflitos e a estética crua da Nova Hollywood não tornam o filme particularmente Romântico.

Histórias Trágicas / Tramas Engenhosas:

Essa é uma tendência que eu acho um pouco intrigante em Rand: a de exaltar histórias um tanto pesadas e sofridas como exemplos máximos do Romantismo. Nunca li Os Miseráveis (a maior obra da literatura Romântica pra ela) mas quando penso nas adaptações que vi para o cinema e teatro, lembro principalmente de pessoas passando por experiências horríveis, andando pelos esgotos etc. Cyrano de Bergerac é outra história que acho indigesta — um homem que é impedido de viver um grande amor por conta da feiura de seu nariz. Não só a história me parece desnecessariamente pessimista, como o protagonista pra mim é detestável desde sua introdução, quando ele estraga uma apresentação teatral e humilha artistas honestos em público sem razão alguma.

Não que isso contradiga necessariamente a teoria do Romantismo; mas se Rand era tão sensível ao Senso de Vida das obras e aos negativos da arte a ponto de reprovar Uma Aventura na África pelo visual sujo e pelo estômago barulhento do Humphrey Bogart (aliás, concordo que estes sejam toques Naturalistas ruins do filme) pra mim faria muito mais sentido os favoritos dela serem obras dominadas pelos positivos; algo mais no espírito dos filmes escapistas que ela gostava em sua juventude (a maioria dos quais eu não vi pra poder analisar).

Talvez Rand desse uma importância tão grande pra engenhosidade da trama que todo o resto se tornasse secundário (isso às vezes, pois no caso de Siegfried este critério não se aplica, como discutirei mais tarde). Só isso explica Como Possuir Lissu estar entre seus filmes favoritos (segundo Mary Ann Sures), pois o filme é bem mediano e convencional se comparado a clássicos do mesmo gênero e do mesmo período. Seu maior diferencial é o fato da trama ser cheia de surpresas e reviravoltas, que eu particularmente não acho tão brilhantes e bem escritas assim (me lembra filmes tipo Um Contratempo ou Truque de Mestre que querem se provar mais espertos que o público e ficam fazendo uma série de manobras artificiais).

Que Espere o Céu também se destaca pela criatividade da história (vida após a morte ainda era um tema original na época, e a premissa serviria de inspiração para A Felicidade Não Se Compra, Neste Mundo e no Outro e outras histórias sobre o "além" que viriam depois — quem sabe até para Ghost), mas a direção e o elenco não são dos melhores, o roteiro em si é mediano, cheio de buracos, e não acho que o filme seja um exemplo tão bom assim de fantasia com mensagens racionais.

O elogio de Rand a Casablanca (que foi feito apenas em uma conversa privada) pra mim é o que faz mais sentido entre todos os seus comentários cinematográficos. Aqui sim ela reconhece um clássico de primeira linha, compatível com sua estética (aliás, sempre imaginei que o diálogo famoso de A Nascente "O que você pensa de mim?"/"Mas eu não penso em você!" possa ter sido inspirado pelo de Casablanca "Você me despreza?"/"Se eu pensasse em você, provavelmente o desprezaria."). Eu teria achado muito mais compreensível se um filme como Casablanca fosse o nº 1 de Rand em vez de Os Nibelungos: A Morte de Siegfried, que pra mim é uma escolha totalmente confusa.

Siegfried:

Para o contexto da época, Os Nibelungos: A Morte de Siegfried era realmente uma produção grandiosa, sofisticada, mas o filme se destacava mais pela fotografia estilizada e pela direção de arte do que por qualquer outra coisa. Nos anos 20, os críticos americanos já reclamavam da falta de requinte do cinema Hollywoodiano, e o cinema alemão se tornou então o grande exemplo de sofisticação estética que Hollywood deveria almejar (filmes de F. W. Murnau, Ernst Lubitsch, Erich von Stroheim, Fritz Lang etc.).

Ayn Rand chegou em Hollywood em 1926, bem na época em que Siegfried era um representante desse requinte artístico europeu que faltava no cinema americano. Se fosse naquela época que Rand tivesse elegido Siegfried o melhor filme já feito, até daria pra entender melhor (embora eu ainda acharia um reducionismo equivocado julgar um filme exclusivamente com base em sua estilização visual — assim como Rand eleger Vermeer o maior artista de todos os tempos me parece ter sido fruto de um reducionismo parecido). Só que foi já nos anos 70, mais de 40 anos depois, que Rand fez esta afirmação sobre Siegfried — depois que o cinema já tinha produzido Cidadão Kane, Fantasia, Os Sapatinhos Vermelhos, West Side Story, 2001, Lawrence da Arábia, e tantas obras-primas visuais que foram além de Siegfried no uso artístico da cinematografia.

Além disso, Rand exagera quando diz que cada frame de Siegfried é como uma pintura. Há momentos em que Siegfried de fato parece um quadro, especialmente em cenas dramáticas que pedem um visual mais emblemático. Mas na maior parte, a fotografia do filme não faz mais do que obedecer a regras básicas de composição. E pra mim, este é o certo mesmo. Filmes que se parecem com um quadro o tempo todo (como os do Wes Anderson) não são exemplos de boa direção. Em meus textos Objetividade na Direção e Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia eu falo da importância da imagem para o cinema, mas discuto como sua função principal é servir à narrativa e à epistemologia do espectador. Imagens belas e estilizadas não são necessariamente "cinematográficas".

Pra mim, o momento mais cinematográfico de Siegfried é a cena que ocorre lá pelos 5 minutos onde um close demonstra o poder da espada do herói. É um instante de puro cinema, melhor até que a visão da árvore que se transforma em caveira no final, que apesar de memorável, é um simbolismo didático e meio forçado. Esses momentos excepcionais de storytelling visual, no entanto, não são mais frequentes em Siegfried do que em outros clássicos de grandes diretores. Portanto, não concordo com os critérios que levaram Rand a colocar Siegfried no topo de sua lista, e não consigo imaginar que outros elementos do filme como trama, mensagem, caracterizações ou performances possam ter contribuído pra sua afirmação de que esta seria a obra máxima do cinema. Afinal, ela própria reconhece que o conteúdo do filme não era o seu forte.

Siegfried seria um épico fantasioso estilo O Senhor dos Anéis baseado em lendas antigas, misticismo, cheio de nostalgia por um passado primitivo, não-industrial (o filme inclusive foi feito pra tentar restaurar o orgulho alemão após a derrota na 1ª Guerra Mundial e acabou se tornando um favorito dos nazistas). Além disso, a história é dominada por um Senso de Vida trágico meio Shakespeariano — o herói é moralmente falho, a história enfatiza a impotência do bem diante do mal etc. 

No Rotten Tomatoes é possível achar críticas de Siegfried da época do lançamento que nos ajudam a entender melhor o contexto dos anos 20. E é curioso ver que o ritmo do filme já era considerado um pouco arrastado na época, e que os personagens já pareciam caricaturas sem sutileza e profundidade até para os padrões do cinema mudo. Não acho Siegfried ruim. Pelo contrário, acho uma produção admirável e concordo que Fritz Lang seja um ótimo diretor. Só estou enfatizando esses pontos pelo fato de Rand ter colocado o filme em um patamar tão acima de tudo feito no cinema entre 1895 e 1971.

Quem não tem familiaridade com a história do cinema provavelmente achará difícil julgar os méritos de Os Nibelungos: A Morte de Siegfried vendo o filme hoje. Mas sugiro que você assista no YouTube aos dez primeiros minutos de Em Busca do Ouro (1925) do Chaplin, ou de O Ladrão de Bagdá (1924) (que, aliás, também são cheios de imagens incríveis) e julgue por si mesmo se o requinte visual de Siegfried realmente o torna uma obra de arte tão superior, ou se outros elementos como a premissa, a clareza da narrativa, o magnetismo dos heróis, a quantidade/qualidade das ideias do roteiro, também não seriam elementos cruciais para a arte do cinema.

sábado, 11 de maio de 2024

Cultura - Maio 2024

14/5 - Ótimos insights sobre o estado da cultura nesse papo entre o Ted Gioia e o Rick Beato:



Conteúdo interessante no Substack do Ted Gioia também, como este artigo sobre o impacto da "cultura da dopamina" no entretenimento: https://www.honest-broker.com/p/the-state-of-the-culture-2024

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11/5 - Madonna e Rio Grande do Sul — maus valores na prática

O desastre no Rio Grande do Sul e o show da Madonna em Copacabana abriram as portas do inferno na internet e uniram os conservadores e os altruístas de todos os cantos em uma grande confusão. Minhas observações:

Madonna: não é simples de julgar pois é um caso misto; é uma artista com 4 décadas de carreira que passou por várias fases diferentes (no texto O Futuro do Entretenimento, eu estava pensando especificamente nela quando escrevi a frase "há sempre o fenômeno dos artistas camaleões, aqueles que vão trocando de valores e princípios a cada década na tentativa de se manterem relevantes".) Em seus 4 primeiros álbuns, a Madonna foi um dos maiores ícones do "Renascimento Idealista" dos anos 70-90 nos EUA. Já nos anos 90, o espírito alegre e inocente que marcou sua carreira nos anos 80 começou a se dissipar, e chegando nos anos 2000/2010 pouca coisa dele havia sobrado (seguindo à risca a transformação do Senso de Vida americano). Ou seja, a Madonna que eu gosto é a dos anos 80. Não tenho uma grande admiração por seus trabalhos mais recentes, nem por ela como figura pública hoje. Porém esta "Celebration Tour" foi uma comemoração de seus 40 anos de carreira, e muito do show se sustentou em cima de sua "fase boa", em uma certa nostalgia pela Madonna dos anos 80/90 que simbolizava diversão, autoestima, individualismo etc. Há detalhes que não gostei no show (algumas figuras duvidosas da esquerda homenageadas nos telões, o remix que minguou "Like a Prayer" etc.), mas de modo geral, o show foi uma celebração de seus sucessos, e em vários momentos ele conseguiu honrar a Madonna original da qual eu gostava.

Por se tratar de uma figura mista, há várias críticas válidas que alguém poderia fazer à Madonna, mas os ataques ao show da semana passada parecem ter vindo quase que exclusivamente de uma perspectiva cristã-conservadora; de pessoas que invalidaram tudo por conta das simulações de sexo e das provocações religiosas que ocorreram no palco (ou seja, do mesmo tipo de pessoa que já a criticava 35 anos atrás).

Muitos ataques surgiram também pelo fato do show ter ocorrido ao mesmo tempo em que o Sul vivia uma grande tragédia. E aqui, o lado altruísta do conservadorismo é que se apoderou do discurso. Afinal, não há como justificar essa indignação exceto pela noção altruísta de que ninguém deve buscar a própria felicidade enquanto outra pessoa no mundo estiver sofrendo e necessitando de ajuda (o fato da Madonna simbolizar diversão e individualismo torna tudo ainda mais "imoral" por esta ótica — como era tomar sorvete de casquinha durante a Pandemia).

Assim como algumas críticas ao show poderiam ter sido feitas de maneira racional, mas as que predominaram na internet não foram, a comoção com a tragédia no Rio Grande do Sul também poderia ter sido uma manifestação sensata de empatia e preocupação, mas a internet logo transformou tudo em um festival bizarro de altruísmo. Subitamente, os heróis se tornaram os homens "humildes" da comunidade, o "povo", os voluntários que colocaram suas vidas em risco; resgates de animais começaram a ganhar mais atenção até que os de humanos, os vilões se tornaram a mídia, as grandes corporações, o homem moderno, o capitalismo que destrói a "mãe natureza" etc. 

Ou seja, um caos filosófico completo, que só foi possível graças à predominância do Altruísmo e do Conservadorismo na cultura (aliados ao poder da internet de transformar qualquer evento em um grande mal-estar social).

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7/5 - Pedro Costa

Às vezes as discussões sobre cinema aqui podem parecer um pouco abstratas, distantes da realidade — então pra quem questiona se existem de fato "Anti-Idealistas" no mundo, deixo aqui como registro uma entrevista com o cineasta português Pedro Costa (que eu não fazia ideia de quem era), que é praticamente uma caricatura desse tipo de mentalidade, e uma ilustração fascinante de como a falta de objetividade (reparem a maneira turva e imprecisa dele se expressar), a visão frágil do ser humano, o senso de vida malevolente e o ódio do entretenimento (especialmente de Ridley Scott!) estão interconectados: https://othoncinema.com/interview-with-pedro-costa/

Alguns destaques:

Quando a aparência reflete o espírito.
"Para cada cineasta, é diferente. Se você entrevistar Ridley Scott, ele é um homem que não tem medo, como todos os homens grandes. Eu sei que não sou um homem; sou uma criança, sou uma mulher. Sabe, há cada vez mais desse tipo de cineastas. Eles têm que conquistar algo; estão fazendo filmes apenas para conquistar, para ganhar. Eu estou fazendo esses filmes para esquecer e perder."

"Alguns filmes também têm a função de nos fazer esquecer. Lembre-se de que às vezes é bom esquecer algumas coisas. É sua única chance de sobreviver. Eu tenho que esquecer muitas coisas todos os dias, e cada vez mais nesta sociedade. É uma forma de se armar, de se proteger. Eu quero esquecer, por exemplo, com o meu filme, que existe outro tipo de cinema. É essa noção. Eu não consigo explicar para você; é apenas um sentimento."

"A vida é algo muito violento. O cinema não deve esquecer disso, mas deve ser algo quase como remédio. Eu sei que quando assisto a um filme do Straub, eu melhoro. Imediatamente, é como tomar um comprimido. Não estou dizendo drogas, mas como Aspirina."

"Claro, Ridley Scott é fascismo absoluto. Porque é um populismo real, como você diz na política. Ele é um cara populista. Ele vai abusar de você, prometer te dar tudo, que você será feliz e livre, etc."

"Você encontra as melhores coisas quando se limita. Não é uma coisa de Ridley Scott; é o oposto, então você deve fazer o oposto de Ridley Scott, sempre em cada segundo."

"'Cinema lento' não significa muito. Dá uma ideia realmente falsa do que é. Os filmes que gostamos, Straub e Mizoguchi, são os filmes que estão mais próximos da vida. Os filmes que estão longe da vida, digamos novamente, são os do Ridley Scott. Ele vive em outro mundo, Hollywood, Los Angeles, dinheiro, ouro. Ele vive em champanhe e coisas assim."

"Quando coisas sombrias começam a aparecer, Ridley Scott começa a aparecer."

sexta-feira, 10 de maio de 2024

O Dublê

Cai na categoria de filmes como Cidade Perdida (2022) que nunca se decidem se são uma comédia ou um filme de ação sério, assim não precisam ser muito bons nem em uma coisa nem em outra. Só que O Dublê vai além e consegue ser péssimo em ambas. Há uma coleção de piadas que vão te deixando de mal humor de tão sem graça (e sem sentido) que são: a da viagem de ácido, a do megafone, a do alienígena, a da Taylor Swift, a do karaokê, o clichê insuportável da cena de ação ao som de uma canção pop "irônica"... E o enredo consegue ter menos sentido que os dos filmes "straight face" que discuti recentemente — só que aqui é pior, pois o filme acha que está sendo inteligente. (Essa falta de lógica nos filmes é o fenômeno que mais tem me espantado nos últimos meses.)

(SPOILERS) A ideia de um ator famoso que comete um assassinato e incrimina seu dublê é uma premissa bem interessante até para um filme de ação. Mas em vez disso ser o ponto de partida da história, essa situação chega tarde demais, servindo apenas como "ponto de virada" para o terceiro ato. Tudo que ocorre antes é uma série de desculpas esfarrapadas para colocar o protagonista em movimento. E mesmo no final, a motivação do vilão se revela tão absurda que nem essa premissa consegue se tornar interessante. Além da semelhança física entre o dublê e o vilão ser mal aproveitada, as habilidades do herói enquanto dublê também são. As ações extravagantes que ele vive na história são na maior parte desnecessárias dramaticamente. Sua missão no fim é apenas encontrar um ator desaparecido. O fato deste ator estar envolvido com bandidos e o dublê subitamente se ver no meio de perseguições, lutas de espadas, é acidental e soa forçado. Um bom roteiro seria um que tornasse o fato do protagonista ser um dublê (um profissional especialista em simular acidentes sem se machucar e em imitar a aparência do ator) um fator realmente necessário para a trama — a causa tanto da ação quanto do humor.

Obviamente, há um empenho na ação e no trabalho de dublês na produção (afinal, David Leitch é um coordenador de dublês que virou diretor), mas se você entende que a ação depende do enredo para ter qualquer interesse, O Dublê é um tédio até nesse nível.

The Fall Guy / 2024 / David Leitch

Satisfação: 2

Categoria: Idealismo Corrompido

Filmes Parecidos: Cidade Perdida (2022) / Trem-Bala (2022) / Agente Oculto (2022) / Free Guy: Assumindo o Controle (2021) / Alerta Vermelho (2021)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Filmes Favoritos de Ayn Rand

Como há vários paralelos entre minha visão de cinema (Idealismo) e a filosofia de literatura da Ayn Rand (Romantismo), já pensei várias em vezes em criar uma lista de filmes alinhados com o Romantismo para dar um senso melhor das semelhanças e diferenças entre as duas abordagens. Mas como Rand escrevia principalmente sobre literatura e não deu tantos exemplos assim de filmes Românticos, tal lista teria sempre um componente de subjetividade (quando fãs de Rand tentam adivinhar que tipo de arte ela aprovaria, o resultado normalmente é desastroso).

Então, para criar uma base para discussões futuras, vou reunir abaixo os principais filmes, séries de TV, cineastas e atores sobre os quais Ayn Rand deu alguma opinião, além de algumas de suas reflexões sobre o cinema em enquanto arte:


A VISÃO DE AYN RAND SOBRE O CINEMA


"Potencialmente, o cinema é uma grande arte, mas este potencial ainda não foi realizado, exceto em casos singulares e momentos aleatórios. Uma arte que requer a sincronização de tantos elementos estéticos e tantos talentos diferentes não pode se desenvolver em uma época de desintegração filosófica/cultural como a atual. Seu desenvolvimento requer a cooperação criativa de homens que estejam unidos, não necessariamente por convicções filosóficas formais, mas por uma visão fundamental do homem; por um Senso de Vida." — "Art and Cognition", 1971

"No que diz respeito aos seus aspectos ficcionais, cinema e televisão, por sua natureza, são mídias adequadas exclusivamente ao Romantismo (às abstrações, ao essencial e ao drama). Infelizmente, ambas as mídias chegaram tarde demais: o grande dia do Romantismo havia passado, e apenas seus últimos ecos alcançaram alguns filmes excepcionais. (Siegfried de Fritz Lang é o melhor entre eles.)" — "What Is Romanticism", 1969

"A música e/ou a literatura são a base das artes performáticas e das combinações em grande escala de todas as artes, como a ópera ou o cinema. No cinema ou na televisão, a literatura é a regente e a definidora de termos. Roteiros para cinema e televisão são subcategorias do drama e, nas artes dramáticas, "a peça é o que importa". A peça é aquilo que a torna arte; a peça fornece o objetivo, para o qual todo o resto é o meio." — "Art and Cognition", 1971

Este último ponto é relevante pois indica que muitos dos princípios que Ayn Rand estabeleceu para a literatura também valem para os filmes — por exemplo, a importância fundamental da trama — ainda que ela vá destacar também a importância da direção e da linguagem visual para o cinema.


PARTE 1: APROVADOS POR AYN RAND




O FILME FAVORITO


Os Nibelungos - A Morte de Siegfried (Die Nibelungen: Siegfried / 1924 / Fritz Lang)

Até onde sei, este é o único filme que Rand afirmou ser uma grande obra de arte, e seu diretor, Fritz Lang, é também o único cineasta que ela exaltou como um grande artista.

"Como exemplo de direção cinematográfica no seu melhor, mencionarei Fritz Lang, particularmente em seus primeiros trabalhos; o seu filme mudo Siegfried é o mais próximo de uma grande obra de arte que o cinema já teve. Embora outros diretores captem isso ocasionalmente, Fritz Lang é o único que realmente compreendeu que a arte visual é uma parte muito mais fundamental do cinema do que a mera seleção de cenários e ângulos de câmera — que o cinema deve ser uma composição visual em movimento. Já foi dito que se parássemos a projeção de Siegfried e cortássemos um fotograma do filme ao acaso, a sua composição seria tão perfeita quanto a de uma grande pintura. Todas as ações, gestos e movimentos deste filme são calculados para conseguir esse efeito. Cada centímetro do filme é estilizado, ou seja, condensado naqueles elementos essenciais que transmitem a natureza e o espírito da história, dos seus acontecimentos, do seu local. Todo o filme foi filmado em interiores, incluindo as magníficas florestas lendárias cujos ramos são cenográficos (mas não o parecem na tela). Segundo consta, enquanto Lang estava filmando Siegfried, um cartaz ficava pendurado na parede do seu escritório: 'Nada neste filme é acidental'. Este é o lema da grande arte. Pouquíssimos artistas, em qualquer área, foram capazes de o cumprir. Fritz Lang foi. Há certas falhas em Siegfried, particularmente a natureza da história, que é uma lenda trágica, "universo malevolente" — mas esta é uma questão metafísica, não estética. Do ponto de vista do trabalho criativo do diretor, este filme é um exemplo do tipo de estilização visual que difere uma obra de arte de um noticiário glorificado." — "Art and Cognition", 1971


OUTROS FILMES QUE AYN RAND ELOGIOU


007 Contra o Satânico Dr. No (Dr. No / 1962 / Terence Young)

"Ao contrário das afirmações de alguns, não havia nada de irônico ('tongue-in-cheek') sobre o primeiro desses filmes, 007 Contra o Satânico Dr. No. Foi um exemplo brilhante de arte Romântica na tela — na produção, direção, roteiro, fotografia e, especialmente, na atuação de Sean Connery. Sua primeira aparição na tela foi uma joia de técnica dramática, elegância, inteligência e sutileza: quando, em resposta a uma pergunta sobre seu nome, vimos seu primeiro close-up e ele respondeu calmamente: 'Bond. James Bond' — a plateia, na noite em que assisti, explodiu em aplausos." — "Bootleg Romanticism", 1965



Ninotchka (1939 / Ernst Lubitsch)

Ayn Rand tinha uma opinião mista sobre Ninotchka. Em 1958, em uma discussão sobre humor, ela citou o filme como um exemplo de humor benevolente. Porém, anos depois, ela apontou que o filme, apesar de excelente artisticamente, era problemático pois o comunismo, assim como o nazismo, era um assunto grave demais pra ser tratado com leveza.

"Ernst Lubitsch foi o único diretor de cinema famoso por comédias românticas. Ninotchka, o filme estrelado por Greta Garbo que ele dirigiu, é um bom exemplo: é comédia, mas também um romance elevado. O que é motivo de riso são os aspectos sórdidos e indesejáveis da vida — e o que transparece por meio do humor é o glamour, o romance e os aspectos positivos. No tipo benevolente de humor, sempre há algo de bom envolvido, como em Ninotchka, onde o herói e a heroína são bastante glamourosos. Eles não são engraçados — algumas de suas aventuras são; ou eles estão agindo de forma humorística em relação a certas coisas, mas não de uma maneira que subestime sua própria dignidade, valor ou autoestima." — The Art of Fiction, 1958

"Ninotchka é um excelente filme. É brilhantemente realizado, e ainda assim, quando o vi pela primeira vez, embora pudesse admirá-lo tecnicamente, ele me deprimiu enormemente. A razão é que o tema não é engraçado. Lembre-se de que quando Ninotchka retorna à Rússia de Paris e descreve seu lindo chapéu, sua colega de quarto pergunta: "Por que você não o trouxe?", e Ninotchka responde: "Eu teria vergonha de usá-lo aqui." A colega responde: "Era tão bonito assim?" A plateia ri, mas isso não é engraçado. É muito eloquente e típico da atmosfera russa. É uma frase boa e realista, e por isso não é assunto para humor. Além disso, suponho que o criador do filme seja anticomunista, porque ideologicamente o filme é anticomunista. No entanto, observe: ao tratar o assunto humoristicamente, ele deixa você com um elemento de simpatia — com a ideia de que o mal é irreal. Ninotchka foge da Rússia, assim como os três comissários engraçados. E num toque inteligente, o filme termina com um dos três iniciando confusão com os outros dois novamente. O que essa cena faz com a realidade dos males que eles devem simbolizar? Faz você sentir, "Ah, sim, Rússia; isso é Ninotchka" — uma desaprovação bem-humorada. Faz você sentir que esses russos são travessos quando na verdade são maus. Nesse sentido, Ninotchka é um filme moralmente inadequado. Artisticamente, Ninotchka é bem feito. Mas para apreciá-lo, você deve ignorar (pelo menos durante a duração do filme) a natureza de seu contexto. O mesmo seria verdadeiro se você transpusesse Ninotchka para a Alemanha nazista. Como você se sentiria sobre um filme que brincasse com os campos de concentração, e no qual algum guarda ou torturador bem-humorado de um campo finalmente escapasse da Alemanha. Não seria engraçado ou apropriado." — Ayn Rand Answers, 1969



O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker / 1962 / Arthur Penn)

Rand era uma grande admiradora da peça de William Gibson que, até onde ela sabia, era a única "peça epistemológica" já escrita: "Ela prende o espectador com um suspense tenso e crescente, não sobre uma perseguição ou um assalto a banco, mas sobre a questão de saber se uma mente humana irá ganhar vida". A avaliação que Rand faz é da peça, não do filme, mas como ela comenta no texto que Patty Duke teve um "desempenho superlativo" tanto no teatro quanto na versão para o cinema, sabemos que ela viu o filme, e podemos supor que gostava de ambas as versões. — "Kant Versus Sullivan", 1970




No Calor da Noite (In the Heat of the Night / 1967 / Norman Jewison)
&
Inferno na Torre (The Towering Inferno / 1974 / John Guillermin)

"Li o livro original 'No Calor da Noite', e era uma ficção leve e ruim. Tudo de bom sobre o filme — os toques sérios — foi adicionado a ele, e é por isso que gosto muito de Stirling Silliphant. Ele também foi o roteirista de alguns desses grandes filmes de terror, um dos quais vi outro dia na TV, Inferno na Torre, que foi muito bem feito para o que é. Mas No Calor da Noite é sua obra-prima. Ele nunca o igualou." — Ayn Rand Answers, 1980



A Letra Escarlate (The Scarlet Letter / 1926 / Victor Sjöström)

"Muitos romances do século 19, como 'Quo Vadis' e 'A Letra Escarlate', são excessivamente escritos em narrativa direta. (Este é um defeito pequeno em comparação com os valores literários dessas duas obras.) Um aspecto positivo do antigo filme mudo A Letra Escarlate, estrelado por Lillian Gish, foi que ele dramatizou (na maioria dos casos muito bem) eventos importantes que no romance são apenas relatados." — The Art of Fiction, 1958



Que Espere o Céu (Here Comes Mr. Jordan / 1941 / Alexander Hall)

Rand citou o filme no contexto de uma discussão sobre fantasia na literatura:

"O filme Que Espere o Céu (1941) foi uma história psicológica fascinante sobre um pugilista falecido cuja alma retorna à Terra. Ele não deveria estar morto — houve algum erro na contabilidade celestial, então ele é enviado de volta no corpo de um milionário que acabou de morrer. Ao assumir a existência desse milionário, ele aprende um modo de vida diferente. Como havia uma questão humana racional envolvida, a história foi muito interessante." — The Art of Fiction, 1958




Dança: Musicais com Fred Astaire / Bill Robinson — Rand não citou filmes específicos, mas podemos supor que ela gostava de alguns musicais do Fred Astaire ou do Bill Robinson, pois escreveu em "Art and Cognition" que sapateado era sua forma de dança favorita, e que Astaire e Robinson eram seus maiores expoentes.



Além dos filmes que Rand comentou pessoalmente em seus textos e entrevistas, sabemos sobre alguns de seus favoritos através de biografias e depoimentos de amigos pessoais.

Na biografia "The Passion of Ayn Rand" e no documentário de 1996 Ayn Rand: A Sense of Life (indicado ao Oscar!), os seguintes filmes aparecem entre os favoritos da juventude de Rand na Rússia (juntos com Os Nibelungos - A Morte de Siegfried):


A Marca do Zorro (The Mark of Zorro / 1920 / Fred Niblo)

A Princesa das Ostras (The Oyster Princess / 1919 / Ernst Lubitsch)

The Indian Tomb (1921 / Joe May)

A Ilha dos Navios Perdidos (The Isle of Lost Ships / 1923 / Maurice Tourneur)



Sobre este último, Rand comentou em uma carta para Henry Blanke (produtor da versão para o cinema de The Fountainhead):

"Acredito que A Ilha dos Navios Perdidos, que pertence à Warner Bros., seja uma das melhores histórias para o cinema de todos os tempos, e quero encorajá-lo entusiasticamente a fazer uma versão moderna dela. Esta história tem um conflito central extremamente dramático — o tipo de ideia que contém todos os elementos de uma verdadeira trama." — Letters of Ayn Rand, 1949


Mary Ann Sures, que foi amiga de Rand por muitos anos, confirma no livro Facets of Ayn Rand que Os Nibelungos - A Morte de Siegfried era seu filme favorito, e lista alguns outros que ela gostava:


Casablanca (1942 / Michael Curtiz)

De acordo com Mary Ann Sures, Rand achava que Casablanca tinha uma ótima trama e "nenhuma palavra de diálogo desnecessário". Ela gostava da cena final, em que a câmera se afasta para revelar Rick e Louis caminhando no aeroporto à noite, "em direção ao futuro". Rand não achava inapropriado o final "triste", pois apesar do romance entre Rick e Ilsa ser um elemento grande da trama, o foco do filme estava no personagem do Rick e sua redenção. No começo do filme, Rick é um homem cínico, bêbado, amargurado, e ao longo da história, entendemos o motivo disso, e vemos ele se transformar em um homem decidido, pronto para lutar pela liberdade de novo.



Como Possuir Lissu (Gambit / 1966 / Ronald Neame)

Mary Ann Sures disse que Ayn Rand achava o filme "um romance encantador, com uma trama inventiva".








We The Living (Noi vivi / 1942 / Goffredo Alessandrini)

Durante a 2ª Guerra, o livro de Rand "We The Living" foi adaptado para o cinema na Itália sem seu conhecimento. Quando Rand finalmente viu uma cópia do filme em 1948 ela se surpreendeu positivamente com a produção, embora tenha reclamado do final e de algumas alterações no texto: "O filme é muito bom, e a performance da garota no papel principal [Alida Valli] é magnífica. Mas eles deturparam o final da história de forma que perdeu um pouco o fervor." — Letters of Ayn Rand, 1948

DIRETORES ELOGIADOS


Fritz Lang

Como já citado, Rand considerava Fritz Lang o melhor diretor de cinema:

"Fritz Lang é o único diretor que realmente compreendeu que a arte visual é uma parte muito mais fundamental do cinema do que a mera seleção de cenários e ângulos de câmera — que o cinema deve ser uma composição visual em movimento." — "Art and Cognition", 1971


Cecil B. DeMille

Especialmente em sua juventude na Rússia, o diretor favorito de Ayn Rand era Cecil B. DeMille, com quem ela viria trabalhar mais tarde ao se mudar para Los Angeles:

"Ele fazia filmes com tramas, e a maioria deles eram glamourosos e românticos. Seus filmes religiosos não eram exibidos na Rússia, então eu não sabia sobre eles; mas ele era famoso na Rússia por glamour, sexo e aventura. Ele era meu ideal particular da tela americana. Meus parentes podiam ter me dado uma carta de recomendação para qualquer um dos estúdios, mas eu escolhi DeMille." — "The Passion of Ayn Rand"


Alfred Hitchcock

Sobre Hitchcock, Rand expressou um misto de admiração e ressalvas:

"Alfred Hitchcock, o último cineasta que conseguiu preservar sua estatura e sua audiência, consegue se safar com Romantismo através de uma ênfase excessiva na malevolência ou no puro horror."  — "What is Romanticism?", 1969



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PARTE 2: REPROVADOS POR AYN RAND




FILMES QUE AYN RAND CRITICOU


Moscou Contra 007 (From Russia with Love / 1963 / Terence Young)

"Não houve muitos aplausos na noite em que vi o segundo filme, Moscou Contra 007. Aqui, Bond foi introduzido dando beijinhos escolares no rosto de uma garota insípida de maiô. A história era confusa, às vezes incompreensível. O suspense construído de forma habilidosa e dramática por Fleming foi substituído por coisas convencionais, como perseguições comuns envolvendo apenas perigo físico. Ainda irei assistir ao terceiro filme, 007 Contra Goldfinger, mas com sérias desconfianças." — "Bootleg Romanticism", 1965



O Destino do Poseidon (The Poseidon Adventure / 1972 / Ronald Neame)

"[Stirling Silliphant] também escreveu O Destino do Poseidon, que foi horrível e chato." — Ayn Rand Answers, 1980



Gênero: Terror e filmes do Boris Karloff — Embora em 1958, no curso The Art of Fiction, Rand tenha falado positivamente de livros como Frankenstein e O Médico e o Monstro, por serem histórias de fantasia com mensagens racionais, em 1969, no artigo "What Is Romanticism", ela caracterizou a literatura de horror como o "fim da linha" no processo de desintegração do Romantismo:

"A História de Terror, em qualquer variante, representa a projeção metafísica de uma única emoção humana: o terror cego, cru, primitivo. Aqueles que vivem nesse terror parecem encontrar um momento de alívio ou controle ao reproduzir aquilo que temem — assim como os selvagens encontram uma sensação de domínio sobre seus inimigos ao reproduzi-los na forma de bonecos. Em suas motivações básicas, essa escola pertence mais à psicopatologia do que à estética... O ancestral moderno desse fenômeno é Edgar Allan Poe; sua expressão estética arquetípica ou mais pura são os filmes de Boris Karloff." — "What Is Romanticism", 1969


Gênero: Musicais com Jeanette MacDonald e Nelson Eddy — Rand expressou certo desprezo pela dupla no artigo "Art and Cognition" quando disse: "Gosto de música de opereta de um certo tipo, mas eu preferiria ouvir uma marcha fúnebre ao 'Danúbio Azul' ou ao tipo de música de Nelson Eddy e Jeanette MacDonald."



O Retrato de Jennie (Portrait of Jennie / 1948 / William Dieterle)

"Este é um exemplo de história mística/sobrenatural que é totalmente injustificada. É uma fantasia sobre um homem no presente que se apaixona por uma mulher que morreu anos antes; daí o tempo é encurtado e ela volta para encontrá-lo em diferentes estágios de sua vida, tudo num intervalo de poucos meses — primeiro ele a encontra como uma menina de 12 anos, depois como uma adolescente, daí como uma jovem garota, tudo isso intercalado por discussões tolas sobre a natureza do tempo: "ah, nossas pobres mentes, não podemos compreender nada". Quando você se desconecta completamente da razão e brinca com o sobrenatural apenas pelo sobrenatural, daí vale tudo e você termina com esse tipo de filme. Pra dar crédito ao público, o filme foi um fracasso tremendo de bilheteria, como deveria ter sido, porque há muitos filmes ruins, mas este é pretensiosamente ruim." — The Art of Fiction (áudio), 1958


Matar ou Morrer (High Noon / 1952 / Fred Zinnemann)

Embora ela não tenha avaliado o filme como um todo, quando lhe perguntaram se Matar ou Morrer tinha uma trama, Rand respondeu que não; que o filme dramatizava a psicologia do xerife, mas que não havia um real conflito entre ele e o vilão, nem uma progressão de eventos: "O xerife precisa enfrentar certos bandidos, o povo da cidade não se mostra disposto a ajudar, então ele os enfrenta sozinho. Onde está a trama?"




Marty (1955 / Delbert Mann)

"Considere uma das melhores obras do Naturalismo moderno — Marty, de Paddy Chayefsky. É uma representação extremamente sensível, perspicaz e comovente de um homem humilde tentando se autoafirmar. Pode-se sentir simpatia por Marty e um prazer meio triste com seu sucesso final. Mas é altamente duvidoso que alguém — incluindo os milhares de Martys da vida real — se sentiria inspirado por seu exemplo. Ninguém poderia sentir: 'Eu quero ser como Marty.' Mas todos (exceto os mais corruptos) podem sentir: 'Eu quero ser como James Bond.'" — "Bootleg Romanticism", 1965


Uma Aventura na África (The African Queen / 1951 / John Huston)

Segundo Mary Ann Sures, Ayn Rand (que gostava muito da Katharine Hepburn), reprovou os toques Naturalistas do filme, que pareciam desglamourizar os protagonistas desnecessariamente — durante a sessão, ela reagiu negativamente à cena do chá em que o estômago de Humphrey Bogart começa a roncar e gorgolejar, ao visual sujo e despenteado Bogart e à aparência simples de "solteirona" que deram para Hepburn.


Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives / 1946 / William Wyler)
&
Canção da Rússia (Song of Russia / 1944 / Gregory Ratoff, Laslo Benedek)

Em 1947, Ayn Rand concordou em testemunhar contra estes dois filmes perante o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas, que investigava a infiltração comunista em Hollywood. Inicialmente, Rand iria discutir ambos os filmes. No fim, ela só foi autorizada a falar sobre Canção da Rússia, que ela considerava um filme "desimportante e antigo". Ela achava mais urgente discutir a propaganda política embutida em filmes mais populares daquele momento, como Os Melhores Anos de Nossas Vidas. Como não foi Rand quem fez a seleção dos filmes, não dá pra saber se esses dois entrariam em sua lista dos piores da época em termos de ideologia. Mas sem dúvida, eram filmes com os quais ela não simpatizava no aspecto político.


Fúria da Carne (Wild Is the Wind / 1957 / George Cukor)

Leonard Peikoff recomendou Fúria da Carne para Ayn Rand dizendo que era um grande filme (ele tinha se encantado com a personagem da Anna Magnani, que para Peikoff, lembrava muito a Ayn Rand em temperamento e aparência). Uns dias depois, Rand foi ver o filme, e na volta ligou para Leonard indignada: "Qual é o filme que você me indicou? Era esse mesmo sobre as ovelhas?!". O filme se passa em um ambiente rural e inclui uma cena em que uma ovelha dá à luz em frente às câmeras; foi provavelmente Naturalista demais para Ayn. — Centenary Reminiscences of Ayn Rand by Leonard Peikoff


Vontade Indômita (The Fountainhead / 1949 / King Vidor)

Rand se orgulhava do roteiro que escreveu para o filme (adaptado de seu próprio livro), mas teve reações mistas ao resultado final. Inicialmente, a produção parecia um sonho: Gary Cooper era um dos atores favoritos de sua juventude, durante a pré-produção, ela chegou a dizer que King Vidor era um dos melhores diretores na indústria (Letters of Ayn Rand), e todos estavam comprometidos a filmar seu roteiro sem alterações. Porém, durante as filmagens, ela começou a ter diferenças criativas com Vidor, se frustrou com uma frase crucial que foi cortada do discurso final sem sua autorização, e achou a performance de Cooper engessada, sem a intensidade adequada. De acordo com a biografia "The Passion of Ayn Rand", ela teria dito ainda que King Vidor era "o pior homem que podiam ter encontrado para The Fountainhead. Ele era um Naturalista, então não tinha mente nem imaginação para o livro."


DIRETORES CRITICADOS:


Ingmar Bergman

"Deixe-me dizer enfaticamente que eu não sou uma admiradora de Ingmar Bergman, nem em seu papel como diretor, nem em relação aos temas que ele seleciona para seus filmes. Seu trabalho, para mim, é um exemplo de mediocridade pretensiosa, subjetivista e guiada por misticismo." — "The Moral Factor", 1976 (palestra)



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OUTROS


SÉRIES DE TV QUE AYN RAND GOSTAVA

Perry Mason (1957–1966)

As Panteras (Charlie's Angels / 1976—1981) — "É a única série de TV Romântica hoje. Ela não é realista. Não é sobre a sarjeta ou sobre crianças retardadas como as outras séries de hoje. É sobre três garotas atraentes fazendo coisas impossíveis. E o fato de serem impossíveis é o que a torna interessante. A série mostra três garotas que são melhores que a chamada 'vida real'".  — entrevista com Phil Donahue, 1980

Os Intocáveis (The Untouchables / 1959—1963)

Além da Imaginação (The Twilight Zone / 1959–1964) — em particular o episódio "Eye of the Beholder"

Dragnet (1951–1959)

Kojak (1973–1978)

Raízes (Roots / 1977)



ATORES DOS QUAIS AYN RAND GOSTAVA: Gary Cooper, Robert Stack, Conrad Veidt, Sean Connery.


ATRIZES DAS QUAIS AYN RAND GOSTAVA: Greta Garbo, Marlene Dietrich, Katharine Hepburn (particularmente em seu primeiro filme, Vítimas do Divórcio), Marilyn Monroe, Barbara Stanwyck, Farrah Fawcett.


NBI — "THE ROMANTIC SCREEN"

Na segunda metade dos anos 60, o Nathaniel Branden Institute (NBI) começou a fazer exibições de filmes para estudantes do Objetivismo. Como tudo que o NBI fazia na época era aprovado por Ayn Rand, podemos assumir que os filmes exibidos tinham relevância para o Objetivismo, ainda que não saibamos o contexto exato (alguns filmes podem ter sido exibidos simplesmente por terem sido baseados em obras literárias que Rand admirava).

De acordo com Barbara Branden em "The Passion of Ayn Rand", entre os filmes exibidos no "The Romantic Screen" estavam:


Os Irmãos Karamazov (The Brothers Karamazov / 1958 / Richard Brooks)

Os Brutos Também Amam (Shane / 1953 / George Stevens)

Quo Vadis (1951 / Mervyn LeRoy, Anthony Mann)

Vitória Amarga (Dark Victory / 1939 / Edmund Goulding)





Quem souber de outros filmes avaliados por Rand, comente que posso ir acrescentando à lista no futuro.