quinta-feira, 16 de maio de 2024

Comentários - Filmes Favoritos de Ayn Rand

Quem me acompanha aqui sabe que apesar da Ayn Rand ser minha grande referência intelectual, não é incomum eu pensar diferente dela sobre certos assuntos. E embora eu concorde com muito de sua teoria de arte (Romantismo), os exemplos concretos que Rand dava às vezes não pareciam representar 100% os princípios estéticos/filosóficos que ela estabeleceu e com os quais eu tendo a concordar.

Isso certamente ocorre no caso do cinema — um pouco pelos comentários que ela fez sobre certos filmes (que listei na postagem Filmes Favoritos de Ayn Rand) mas especialmente pelos comentários que ela não fez sobre as diversas obras-primas do cinema (muitas até Românticas, na minha visão) lançadas no período em que ela era ativa publicamente como intelectual; um silêncio intrigante, considerando a cinefilia dela na juventude e toda sua proximidade com a indústria cinematográfica ao longo da carreira.

Em geral, acho que Rand era bastante perspicaz em suas observações sobre os filmes e ela frequentemente enxergava coisas que quase ninguém mais enxergava, o que era comum de ocorrer em outras áreas de conhecimento também. Porém, talvez por ela ter formado suas opiniões sobre o cinema na juventude e ter se distanciado da cultura popular na maturidade, seus comentários sobre filmes às vezes pareciam menos refletidos que seus comentários políticos, ou estavam vindo de uma amostragem extremamente limitada.

Comentando os Comentários de Rand:

Ninotchka brincando de ser
executada por comunistas
Com Ninotchka, acho que Rand foi bem certeira. É uma comédia inteligente, bem realizada, com um humor bem intencionado na maior parte do tempo, mas que desliza quando tenta tornar o regime Soviético um assunto leve e divertido.

Faz tempo que não assisto a Dr. No para dizer se o acho tão Romântico assim, mas concordo que a série 007 foi se tornando vítima do humor "tongue-in-cheek" ao longo dos anos 60 e 70.

Os Melhores Anos de Nossas Vidas, além de flertar com o Naturalismo, tem de fato mensagens anti-capitalistas que justificariam as denúncias de Rand.

O Milagre de Anne Sullivan é um drama impactante sobre o papel da mente na vida humana; dá pra entender por que Rand admirava a peça, ainda que pra mim o filme seja um tanto pesado e cru em estilo (foi dirigido por Arthur Penn, um dos pioneiros da Nova Hollywood, que ajudaria a dar fim à era Idealista clássica do cinema).

No Calor da Noite cai um pouco na mesma categoria: tem uma trama bem construída, um tema positivo que reflete valores objetivistas — entendo por que a premissa de um homem íntegro e racional desafiando toda uma sociedade era atraente para Rand — mas eu já acho que o foco excessivo nos conflitos e a estética crua da Nova Hollywood não tornam o filme particularmente Romântico.

Histórias Trágicas / Tramas Engenhosas:

Essa é uma tendência que eu acho um pouco intrigante em Rand: a de exaltar histórias um tanto pesadas e sofridas como exemplos máximos do Romantismo. Nunca li Os Miseráveis (a maior obra da literatura Romântica pra ela) mas quando penso nas adaptações que vi para o cinema e teatro, lembro principalmente de pessoas passando por experiências horríveis, andando pelos esgotos etc. Cyrano de Bergerac é outra história que acho indigesta — um homem que é impedido de viver um grande amor por conta da feiura de seu nariz. Não só a história me parece desnecessariamente pessimista, como o protagonista pra mim é detestável desde sua introdução, quando ele estraga uma apresentação teatral e humilha artistas honestos em público sem razão alguma.

Não que isso contradiga necessariamente a teoria do Romantismo; mas se Rand era tão sensível ao Senso de Vida das obras e aos negativos da arte a ponto de reprovar Uma Aventura na África pelo visual sujo e pelo estômago barulhento do Humphrey Bogart (aliás, concordo que estes sejam toques Naturalistas ruins do filme) pra mim faria muito mais sentido os favoritos dela serem obras dominadas pelos positivos; algo mais no espírito dos filmes escapistas que ela gostava em sua juventude (a maioria dos quais eu não vi pra poder analisar).

Talvez Rand desse uma importância tão grande pra engenhosidade da trama que todo o resto se tornasse secundário (isso às vezes, pois no caso de Siegfried este critério não se aplica, como discutirei mais tarde). Só isso explica Como Possuir Lissu estar entre seus filmes favoritos (segundo Mary Ann Sures), pois o filme é bem mediano e convencional se comparado a clássicos do mesmo gênero e do mesmo período. Seu maior diferencial é o fato da trama ser cheia de surpresas e reviravoltas, que eu particularmente não acho tão brilhantes e bem escritas assim (me lembra filmes tipo Um Contratempo ou Truque de Mestre que querem se provar mais espertos que o público e ficam fazendo uma série de manobras artificiais).

Que Espere o Céu também se destaca pela criatividade da história (vida após a morte ainda era um tema original na época, e a premissa serviria de inspiração para A Felicidade Não Se Compra, Neste Mundo e no Outro e outras histórias sobre o "além" que viriam depois — quem sabe até para Ghost), mas a direção e o elenco não são dos melhores, o roteiro em si é mediano, cheio de buracos, e não acho que o filme seja um exemplo tão bom assim de fantasia com mensagens racionais.

O elogio de Rand a Casablanca (que foi feito apenas em uma conversa privada) pra mim é o que faz mais sentido entre todos os seus comentários cinematográficos. Aqui sim ela reconhece um clássico de primeira linha, compatível com sua estética (aliás, sempre imaginei que o diálogo famoso de A Nascente "O que você pensa de mim?"/"Mas eu não penso em você!" possa ter sido inspirado pelo de Casablanca "Você me despreza?"/"Se eu pensasse em você, provavelmente o desprezaria."). Eu teria achado muito mais compreensível se um filme como Casablanca fosse o nº 1 de Rand em vez de Os Nibelungos: A Morte de Siegfried, que pra mim é uma escolha totalmente confusa.

Siegfried:

Para o contexto da época, Os Nibelungos: A Morte de Siegfried era realmente uma produção grandiosa, sofisticada, mas o filme se destacava mais pela fotografia estilizada e pela direção de arte do que por qualquer outra coisa. Nos anos 20, os críticos americanos já reclamavam da falta de requinte do cinema Hollywoodiano, e o cinema alemão se tornou então o grande exemplo de sofisticação estética que Hollywood deveria almejar (filmes de F. W. Murnau, Ernst Lubitsch, Erich von Stroheim, Fritz Lang etc.).

Ayn Rand chegou em Hollywood em 1926, bem na época em que Siegfried era um representante desse requinte artístico europeu que faltava no cinema americano. Se fosse naquela época que Rand tivesse elegido Siegfried o melhor filme já feito, até daria pra entender melhor (embora eu ainda acharia um reducionismo equivocado julgar um filme exclusivamente com base em sua estilização visual — assim como Rand eleger Vermeer o maior artista de todos os tempos me parece ter sido fruto de um reducionismo parecido). Só que foi já nos anos 70, mais de 40 anos depois, que Rand fez esta afirmação sobre Siegfried — depois que o cinema já tinha produzido Cidadão Kane, Fantasia, Os Sapatinhos Vermelhos, West Side Story, 2001, Lawrence da Arábia, e tantas obras-primas visuais que foram além de Siegfried no uso artístico da cinematografia.

Além disso, Rand exagera quando diz que cada frame de Siegfried é como uma pintura. Há momentos em que Siegfried de fato parece um quadro, especialmente em cenas dramáticas que pedem um visual mais emblemático. Mas na maior parte, a fotografia do filme não faz mais do que obedecer a regras básicas de composição. E pra mim, este é o certo mesmo. Filmes que se parecem com um quadro o tempo todo (como os do Wes Anderson) não são exemplos de boa direção. Em meus textos Objetividade na Direção e Idealismo e Naturalismo na Direção de Fotografia eu falo da importância da imagem para o cinema, mas discuto como sua função principal é servir à narrativa e à epistemologia do espectador. Imagens belas e estilizadas não são necessariamente "cinematográficas".

Pra mim, o momento mais cinematográfico de Siegfried é a cena que ocorre lá pelos 5 minutos onde um close demonstra o poder da espada do herói. É um instante de puro cinema, melhor até que a visão da árvore que se transforma em caveira no final, que apesar de memorável, é um simbolismo didático e meio forçado. Esses momentos excepcionais de storytelling visual, no entanto, não são mais frequentes em Siegfried do que em outros clássicos de grandes diretores. Portanto, não concordo com os critérios que levaram Rand a colocar Siegfried no topo de sua lista, e não consigo imaginar que outros elementos do filme como trama, mensagem, caracterizações ou performances possam ter contribuído pra sua afirmação de que esta seria a obra máxima do cinema. Afinal, ela própria reconhece que o conteúdo do filme não era o seu forte.

Siegfried seria um épico fantasioso estilo O Senhor dos Anéis baseado em lendas antigas, misticismo, cheio de nostalgia por um passado primitivo, não-industrial (o filme inclusive foi feito pra tentar restaurar o orgulho alemão após a derrota na 1ª Guerra Mundial e acabou se tornando um favorito dos nazistas). Além disso, a história é dominada por um Senso de Vida trágico meio Shakespeariano — o herói é moralmente falho, a história enfatiza a impotência do bem diante do mal etc. 

No Rotten Tomatoes é possível achar críticas de Siegfried da época do lançamento que nos ajudam a entender melhor o contexto dos anos 20. E é curioso ver que o ritmo do filme já era considerado um pouco arrastado na época, e que os personagens já pareciam caricaturas sem sutileza e profundidade até para os padrões do cinema mudo. Não acho Siegfried ruim. Pelo contrário, acho uma produção admirável e concordo que Fritz Lang seja um ótimo diretor. Só estou enfatizando esses pontos pelo fato de Rand ter colocado o filme em um patamar tão acima de tudo feito no cinema entre 1895 e 1971.

Quem não tem familiaridade com a história do cinema provavelmente achará difícil julgar os méritos de Os Nibelungos: A Morte de Siegfried vendo o filme hoje. Mas sugiro que você assista no YouTube aos dez primeiros minutos de Em Busca do Ouro (1925) do Chaplin, ou de O Ladrão de Bagdá (1924) (que, aliás, também são cheios de imagens incríveis) e julgue por si mesmo se o requinte visual de Siegfried realmente o torna uma obra de arte tão superior, ou se outros elementos como a premissa, a clareza da narrativa, o magnetismo dos heróis, a quantidade/qualidade das ideias do roteiro, também não seriam elementos cruciais para a arte do cinema.

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