quarta-feira, 22 de maio de 2024

Cultura: The Critical Drinker - Um Dia de Fúria

Sabe quando a polícia vai vasculhar o computador de um atirador de escola depois do massacre e encontra manifestos ideológicos que fazem você pensar "agora tá explicado"? É em um contexto desses que eu esperaria ouvir uma análise como essa que o The Critical Drinker fez de Um Dia de Fúria (1993). Mas pelo visto, a cultura já desceu a tal ponto que a leitura dele do filme se tornou mainstream.

Apesar de Um Dia de Fúria humanizar de forma questionável o protagonista, o filme não relativiza o fato que Bill é um homem perigoso, doente, que está cometendo uma série de crimes injustificáveis. Não se trata de uma história tipo Thelma & Louise, em que pessoas inocentes se tornam criminosas sob circunstâncias até compreensíveis. E nem de um Coringa, em que o protagonista é claramente um monstro, mas o filme tenta amenizar sua culpa dizendo que ele é uma "vítima do sistema".

Um Dia de Fúria não mostra Bill sendo uma vítima do sistema. A América que vemos ao redor dele está funcionando tão bem quanto nunca. Ele se enxerga como vítima, mas ele é um lunático. O filme em si nunca indica que o "sistema" é mau. Mas é isso que o Drinker quer questionar... Pra ele, o tempo só mostrou que o personagem do Michael Douglas estava certo o tempo todo! Que, assim como o Coringa, Bill era apenas mais uma vítima, "como todos nós".

As racionalizações do vídeo são chocantes (até dei uma checada no calendário pra ver se não era 1º de Abril):


- Drinker diz que o filme é sobre um homem "tentando chegar em casa para o aniversário de sua filha" — ele só não comenta que Bill não está indo para a sua casa, e sim para a casa da ex-mulher, que não quer sua presença e tem tanto medo dele que colocou até uma medida protetiva o impedindo de se aproximar de sua casa.

- Drinker diz que a loja de conveniência "sobe seus preços para espremer dinheiro dos clientes", mas o filme nunca mostra isso. Não sabemos se o preço da Coca-Cola naquela loja está de fato mais alto do que em outras lojas da região. O funcionário coreano não está cobrando mais caro de Bill do que de outros clientes. Bill simplesmente entra na loja, vê que uma lata de Coca custa 85 centavos, fica indignado, e se acha no direito de destruir o estabelecimento, agredir fisicamente o funcionário, que aliás ele ofendeu gratuitamente antes com falas racistas/xenofóbicas. Mas Drinker abafa esses "detalhes".

- Na cena em que Bill aterroriza uma lanchonete inteira após ouvir que ele não pode pedir lanches do café da manhã na hora do almoço, Drinker sugere que Bill é a pessoa mais lúcida da cena! Que a rede de fast-food não é inocente pois está "explorando" os clientes e oferecendo comida de má qualidade, e que os clientes são um "gado estúpido e acéfalo" já engolido pelo sistema. Drinker acha que a expressão "estúpida" no rosto dos clientes tem a ver com o fato deles não conseguirem absorver os argumentos sofisticados de Bill. Não lhe ocorre que talvez seja pelo fato de Bill ser um estranho com uma metralhadora na mão!

Parece incrível, mas o Drinker vê o filme assumindo que as distorções de Bill a cada cena sejam a realidade objetiva. Mas Um Dia de Fúria deixa tão claro que a ótica (e a ética) de Bill é distorcida quanto Psicose faz em relação a Norman Bates.

Drinker quer tanto que Bill seja a vítima que chega até a descrever coisas que não estão no filme: ele diz que a ex-mulher afirma pro policial que ela acha "injusta" a medida protetiva contra Bill. Mas a ex-mulher não diz que acha a medida injusta. Pra ela, está claro que Bill é perigoso. Quando ela diz que a medida protetiva poderia fazer "mais mal do que bem", é no sentido de Bill ser tão desequilibrado que envolver a justiça poderia contrariá-lo e torná-lo ainda mais perigoso!

Drinker diz que Bill segue um código moral próprio e "não prejudica pessoas inocentes". Mas exceto por um ou outro caso em que Bill age em autodefesa, o filme inteiro é sobre Bill prejudicando pessoas inocentes! Quando ele soca um motorista na cara só por ele estar gritando pela janela, o motorista estava fazendo algo pior que Bill fez o filme todo? Quando ele dá um tiro de bazuca em direção a operários na rua, ele tem alguma prova de que a obra é desnecessária? E ainda que fosse, isso tornaria os operários culpados?

O código moral de Bill (e o do Drinker) parece ser o seguinte: qualquer um que irrite ele ou não atenda suas vontades e caprichos imediatamente, se torna culpado. Ele não tem concepção alguma de responsabilidade própria, de direitos individuais, direito à propriedade, ou de liberdade. A América dos sonhos do Drinker não é a "Terra da Liberdade". É uma América que elimine o fator competição, o fator risco, que garanta emprego, estabilidade e qualidade de vida para qualquer um que "faça o que lhe foi dito", que cumpra seu dever como cidadão (quem é mesmo o "gado estúpido e acéfalo"?). Os vilões, pra ele, são o capitalismo, os ricos, os "gananciosos", aqueles que pensam em si mesmos e se recusam a se sacrificar pelo "bem comum" (a direita hoje às vezes consegue ser mais esquerdista do que a própria esquerda!). Ele é incapaz de conceber que em qualquer Era de Ouro da história dos EUA (e a época em que Um Dia de Fúria se passa pra mim seria uma delas!), ainda havia contratempos, filas, pessoas ignorantes, restaurantes oferecendo comida de baixa qualidade, produtos que alguns poderiam julgar caros demais — que nem toda dificuldade da vida é culpa de um crime ou de um sistema corrupto. Mas pra esse tipo de mentalidade, o sistema ideal deveria fazer desaparecer todas as dificuldades existenciais… Portanto, qualquer obstáculo que surja no seu caminho se torna uma prova da corrupção do sistema — não apenas o trânsito, os preços altos, mas também o calor, a mosca dentro do carro etc. Por isso, é "compreensível" que Bill pegue uma arma e saia dando tiros para todos os lados.

Este é o personagem que o The Critical Drinker, um dos críticos mais populares na direita hoje, diz representar todos nós.

2 comentários:

Dood disse...

É um filme que teria que rever, mas pelas cenas descritas realmente a fúria existe um contexto de crítica ao estilo americano. Eu não lembrava do motivo da separação dele com a esposa no filme, eu me apegava a uma coisa que admito ser irracional que era o simplesmente o sentimento de indiferença da sociedade em certos dias ruins, mas depois ponderando sobre isso nem sempre todo dia é ruim: as vezes um acontecimento acaba pesando mais na gente, mas não é o todo.

Agora lembrando do filme fico associando a uma catarse de adolescente revoltado.

Caio Amaral disse...

O protagonista é crítico em relação à sociedade americana, mas isso não quer dizer que o filme em si esteja concordando com ele. Por isso nunca coloquei Um Dia de Fúria na categoria de filmes para adolescentes revoltados.. Mas essa leitura do Critical Drinker transforma o filme justamente nisso.