terça-feira, 21 de maio de 2024

Roteiro: o Relojoeiro e o Planejador de Viagem

Entre os escritores ou teóricos que defendem o cinema narrativo, filmes com tramas etc., há dois tipos de abordagens que nunca vi serem diferenciadas, mas que causam confusão quando não são:

A primeira é a do roteirista que vou chamar de "Relojoeiro". Este escreve histórias interessado primeiramente em criar uma trama intrincada, engenhosa, em que todos os elementos e "engrenagens" estão finamente interconectados e trabalham juntos de forma coordenada para produzir um resultado preciso — informar um tema; comunicar uma mensagem importante etc.

A segunda é a do roteirista que vou chamar de "Planejador de Viagem". Este também pode buscar harmonia e coesão interna, mas está mais preocupado com a experiência que proporcionará ao "viajante", em levá-lo aos lugares mais interessantes possíveis dentro daquela rota, mantendo a jornada memorável e prazerosa do início até o destino final.

Os grandes clássicos do teatro e da literatura do século 18 ou 19 costumam se basear no método do Relojoeiro.

O cinema americano já se moldou primeiramente em cima do método do Planejador de Viagem.

Não significa que as duas abordagens sejam auto-excludentes. Ambas podem ser combinadas. Mas diria que a abordagem do Planejador de Viagem é mais essencial para o Idealismo do que a do Relojoeiro. É por isso que o Paradigma Idealista reflete mais a mentalidade do Planejador de Viagem:


Este modelo (que incorpora vários princípios importantes do Idealismo como o Princípio da Ascensão e o dos Set Pieces) é baseado na teoria de felicidade representada pela frase: "A felicidade é a realização progressiva de um ideal ou objetivo digno". Ou seja, para estarmos felizes (tanto na vida real quanto na vida simulada pela arte), precisamos ter um objetivo atraente no futuro para o qual sentimos que estamos caminhando, e precisamos também ter recompensas ao longo do caminho; realizações intermediárias que confirmem que estamos indo na direção certa e renovem nossa motivação.


O paradigma Idealista não despreza lógica e objetividade — o gráfico indica que os eventos da história precisam estar integrados ao redor de um tema central e que a trama precisa ser guiada por um propósito. Mas ele não diz que a trama precisa ser necessariamente intrincada ou incrivelmente engenhosa.

Há um perigo em confundir histórias bem construídas, que respeitam o pilar da Objetividade, com o tipo de quebra-cabeça conceitual praticado pelo Relojoeiro. O dom do Relojoeiro pode até ser admirável e tornar um roteiro mais impressionante tecnicamente, mas ele não é apropriado pra todo tipo de história, e não reflete uma virtude humana tão fundamental para a apreciação estética. O tipo de inteligência que o Relojoeiro projeta é análoga à do campeão de xadrez; um talento que pode ser fascinante, como o de um malabarista, mas que não tem uma relação tão direta com produtividade e com a felicidade humana. Já a disciplina do Planejador de Viagem de saber estabelecer o destino certo, de saber caminhar em direção a ele, sempre recompensando o interesse e a motivação do "viajante", este sim está diretamente ligado o processo da felicidade.

Quando roteiristas do tipo "Relojoeiro" ficam encantados demais com a engenhosidade de seus quebra-cabeças e não formam uma parceria saudável com o "Planejador de Viagem", eles muitas vezes perdem de vista o prazer do espectador, e terminam escrevendo histórias que parecem inteligentes, bem elaboradas, mas que deixam o público frio emocionalmente. 

A engenhosidade da trama não é uma fonte primária de prazer para o espectador. É um virtuosismo técnico que só se torna uma verdadeira fonte de inspiração quando ele está servindo para potencializar o prazer primário, que está no conteúdo, nos valores e temas da história. O Relojoeiro que foca primeiramente em seu próprio virtuosismo acaba se tornando Não Idealista, assim como qualquer artista que coloca sua técnica e estilo acima da Primazia do Espectador.

Exemplos:

Billy Wilder era um ótimo roteirista que tombava às vezes pro lado do Relojoeiro. Seus melhores filmes, como Crepúsculo dos Deuses ou Testemunha de Acusação, integravam bem as duas abordagens. Mas muitos de seus filmes pareciam mais preocupados com os jogos e simetrias conceituais do que com o apelo real do enredo — como Cupido Não Tem Bandeira ou até mesmo Se Meu Apartamento Falasse.

Mas Wilder ainda mantinha um certo equilíbrio. O pior extremo dessa abordagem seria o de filmes estilo Um Contratempo, que partem do erro do Relojoeiro de colocar todo o foco na complexidade interna da trama, só que pra piorar são Relojoeiros incompetentes — constroem uma geringonça cheia de peças sobressalentes, engrenagens que não funcionam, e o relógio no fim só marca a hora errada.

Os melhores Planejadores de Viagem seriam cineastas como Spielberg ou Hitchcock, que além de priorizarem os destinos, têm também um dom especial para descobrir lugares incríveis que ninguém visitou antes. Em um making-of de Jurassic Park, lembro de um colaborador de Spielberg dizendo que, uma vez definida a premissa do filme, o primeiro passo deles era sempre pensar "o que absolutamente não poderia faltar nessa história" — se o filme é sobre ressuscitar dinossauros, por exemplo, eles não poderiam desperdiçar a chance de ter um T-Rex eventualmente escapando e caçando os protagonistas. Isto é pensar em termos de "destinos". Hitchcock também costumava pensar primeiro nos Set-Pieces e nas cenas interessantes que a premissa permitia, pra depois construir a trama ao redor delas.

Planejadores de Viagem também podem levar esta abordagem de Hitchcock a um extremo ruim, e terminarem com um filme cheio de momentos memoráveis, mas cuja história pareça aleatória e mal costurada (um exemplo negativo seria Barbie, que além de pular de um destino para o outro sem a menor preocupação com coerência, mostra um gosto bem duvidoso em suas escolhas de destinos). Mas eu não diria que, pra manter o equilíbrio, os Planejadores de Viagem precisam formar uma parceria com o Relojoeiro necessariamente. Às vezes pode ser o caso. Mas pra introduzir um terceiro arquétipo a esta história, seria um bom "Alfaiate" que todo roteirista precisa ter ao seu lado. A preocupação do Alfaiate com a qualidade do material, com as emendas, com a harmonia e funcionalidade das partes, garantirá que a história não perca sua integridade — mas ele não exigirá que toda história seja um quebra-cabeça extremamente complexo.

Resumindo: no Idealismo, todo roteirista deveria ser um bom Planejador de Viagem e um bom Alfaiate, mas não necessariamente um Relojoeiro. O Relojoeiro geralmente eleva o nível de uma história, e seu método é compatível com princípios narrativos do Idealismo, mas apenas na medida em que se associa ao Planejador de Viagem.

Os autores mais aclamados por críticos e intelectuais ainda costumam ser os Relojoeiros, talvez por estes seguirem princípios literários bem estabelecidos desde os tempos de Shakespeare ou até de Sófocles. O próprio Romantismo da Ayn Rand segue mais por esta linha de pensamento — e este é um dos aspectos mais importantes, mas não tão óbvios, em que o Idealismo se difere do Romantismo.

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