sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Agosto 2024 - outros filmes vistos

Longlegs: Vínculo Mortal (Longlegs / 2024 / Osgood Perkins)

É uma pena que o final seja tão fraco, pois o resto do filme é bastante eficaz. Osgood Perkins tem uma boa mão para as imagens que geram frio na barriga e arrepios, e a trama é sólida o bastante na primeira hora pra funcionar como investigação policial, não só como um preparo para os sustos (embora o filme esteja mais pra isso do que pra um filme sério de serial killer como O Silêncio dos Inocentes ou Zodíaco). Mas os ganchos narrativos todos dependem de enigmas intrigantes que no fim não têm como serem respondidos logicamente, e quanto mais o filme finge que há certa lógica, mais tolo ele começa a parecer (as "subversões" batidas que ele usa pra provocar medo e simbolizar o mal já dão uma ideia de um filme não tão sofisticado quanto quer parecer — os crucifixos de cabeça pra baixo, o psicopata afeminado, etc.). Achei divertida (mais até do que assustadora) a performance do Nicolas Cage, porém Longlegs enquanto vilão acaba sendo menos memorável do que poderia ter sido, pois no fim, o mal todo da história vai sendo diluído de maneira confusa entre diversas outras entidades e deixando de se concentrar nele.

Satisfação: 6 (Idealismo Imperfeito)

Filmes Parecidos: Noites Brutais (2022) / Sorria (2022) / O Telefone Preto (2021)



Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness / 2024 / Yorgos Lanthimos)

Dá pra elogiar elementos pontuais do filme como alguns momentos cômicos, a performance do Willem Dafoe (especialmente no 1º segmento), certas sacadas técnicas/estilísticas, mas o filme como um todo não se sustenta pois não há coerência narrativa o bastante e nem um conteúdo ou mensagem por trás do Experimentalismo que recompensem nosso investimento intelectual. Filmes do Paul Thomas Anderson como Magnólia têm mais que excentricidades a oferecer, por isso funcionam, mas com 164 minutos de duração, Tipos de Gentileza vai se tornando apenas um grande teste de paciência. É como se o trabalho pra integrar estilo e conteúdo em Pobres Criaturas tivesse se provado árduo demais para Lanthimos, e agora ele tivesse voltado com tudo para os exercícios vazios de estilo que são sua zona de conforto.

Satisfação: 3 (Não Idealismo: Experimentalismo / Filme de Autor)

Filmes Parecidos: O Lagosta (2015) / The Square: A Arte da Discórdia (2017)


--------------------------

DESISTÊNCIAS (comecei a ver e perdi o interesse):

- O Exterminador do Futuro Zero (2024) T1.E1
- Jackpot - Loteria Mortal! (2024)
- Harold e o Lápis Mágico (2024)
- Meu Sangue Ferve por Você (2023)

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Cultura - Agosto 2024

26/8 - Tendências 2024

Dando uma olhada na lista de filmes que avaliei em 2024 e nos lançamentos mais aguardados do ano, notei alguns padrões e tendências culturais no mundo do cinema que merecem destaque. Existem várias tendências ocorrendo simultaneamente, claro, e muitas que persistem há anos (comentei recentemente sobre a repressão do Sex Appeal e do Humor), mas olhando para a "safra" 2024 como um todo, essas foram as que mais me chamaram atenção:

Tendências Positivas:

- "Anciões" vindo para o resgate: comebacks de figuras como Francis Ford Coppola (Megalopolis), Kevin Costner (Horizon) ou Jerry Bruckheimer (Um Tira da Pesada 4 / Bad Boys: Até o Fim) podem nem sempre estar resultando em grandes filmes, mas têm ajudado a ressuscitar um senso de ambição na indústria e a reinserir um pouco de Idealismo "não-corrompido" no entretenimento, coisas que estiveram em baixa nas últimas décadas. Depois da pandemia, artistas veteranos começaram também a investir pesadamente em autobiografias, projetos de legado, e ultimamente, documentários sobre a carreira de boomers (ou de artistas até de gerações anteriores) pra mim têm sido a fonte mais consistente de inspiração e de valores positivos no cinema — entre os 10 lançamentos mais bem avaliados por mim até agora em 2024, 5 deles são documentários sobre carreiras célebres do passado: The Beach Boys, Jim Henson: Idea Man, Faye, The Greatest Night in Pop, Made in England: The Films of Powell and Pressburger. Não deixa de ser uma fórmula, algo que em breve estará hiper saturado também (já exploraram ao infinito as criações desses artistas, agora vão explorar ao infinito as figuras dos artistas em si, e extrair daí o pouco de matéria-prima Idealista que ainda resta na cultura — já que as Gerações X e Millennial se recusaram a produzir novas reservas), ainda assim, é um conteúdo positivo, que pode motivar uma nova onda no futuro.

- Talentos de fora do sistema: sucessos como Bebê Rena e É Assim que Acaba (ambos adaptados de textos originais recentes) devem seu apelo à autenticidade e à qualidade do material base. E em ambos os casos, o material tinha se provado primeiro fora do "sistema" antes de virar filme ou série. Como Hollywood deixou de ser um ambiente que desenvolve talentos, e como bons escritores são cada vez mais escassos por lá, esse tipo de fenômeno (artistas que se desenvolvem no mercado-livre da internet) pode acender a luz na cabeça de produtores e mostrar um método melhor pra encontrar escritores talentosos e materiais originais de qualidade (que não pareçam um tiro no escuro em termos de investimento). Pode ser o caminho para que a indústria possa a curto prazo diminuir sua dependência de franquias, IPs antigas, etc.

- Esquerda abandona o discurso Woke: assim como na política, estúdios e artistas com um perfil mais Democrata têm desistido das mensagens woke explícitas que se provaram ineficazes e financeiramente desastrosas na última década. Filmes como Divertida Mente 2 e Twisters parecem ter lucrado em cima do fato de não terem empurrado mensagens divisivas. O diretor de Twisters (que fez o super-político Minari) surpreendeu ao dizer em entrevistas que evitou de propósito o tema "mudanças climáticas" no filme, pois ele sente que "filmes não devem ser orientados por mensagens". Isto é algo que alguém (inclusive ele) dificilmente teria dito 3 ou 4 anos atrás, um sinal que os tempos realmente mudaram nesse aspecto.

Tendências Negativas:

- Estúdios engolidos por corporações: parece um discurso anticapitalista, mas não estou pedindo intervenção estatal nem nada. É só a triste constatação de que não parece existir em Hollywood mais aqueles produtores / CEOs com inclinação artística que preservavam o equilíbrio entre o lado criativo e o lado comercial do cinema. A tendência de estúdios serem dominados por investidores e homens que só pensam em dinheiro a curto prazo (os "ricos sem lastro") parece estar só crescendo e corroendo as instituições por dentro. Isso se vê na persistência de franquias desgastadas e no vazio criativo de produções que já teriam tido tempo pra ouvir o público e corrigir o curso caso tivessem real preocupação com qualidade, mas não o fazem: Deadpool e Wolverine, The AcolyteMeu Malvado Favorito 4Ghostbusters: Apocalipse de Gelo, Madame Teia, Godzilla e Kong: O Novo Império, Alien: Romulus etc. Se o público estivesse rejeitando esses produtos, isso poderia ser a semente pra uma tendência positiva no futuro. Mas olhando para as maiores bilheterias do ano, este ainda não é o caso.

- Primitivismo / niilismo masculino: essa não é uma tendência nova, mas é uma que achei que já teria perdido o fôlego a essa altura (assim como o movimento woke). Mas olhando para os destaques do ano (ou filmes que tiveram uma repercussão maior do que eu esperava), percebi que ela continua a todo vapor: Deadpool & Wolverine, Matador de Aluguel, Beekeeper: Rede de Vingança, Guerra Sem Regras, Fúria Primitiva, a popularidade crescente do cinema da Índia, etc.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

É Assim que Acaba

Foi uma das sessões mais surpreendente do ano pra mim, pois o filme tem várias características de romances eróticos tolos tipo Cinquenta Tons de Cinza, e esse tipo de história geralmente requer que você desça vários degraus em inteligência e bom gosto pra acompanhá-la, mas É Assim que Acaba acaba se provando mais sofisticado e perspicaz psicologicamente do que se espera. A história sobre uma bela florista de Boston chamada "Lily Bloom" que se apaixona por um neurocirurgião sexy e misterioso chamado Ryle Kincaid não é onde você espera encontrar muita nuance e maturidade, mas é justamente nesse ponto que o filme surpreende. Há um imediatismo na tela que captura sua atenção o tempo todo, e isso tem a ver não só com a química do elenco, mas também com o fato do filme operar ligeiramente fora das convenções e clichês do gênero, te dando sempre a sensação de que o que vai sair da boca dos personagens não é exatamente aquilo que você prevê, e que algo inesperado ou até chocante pode acontecer a qualquer momento. Há coisas até incômodas na maneira como a história se desenvolve, mas eu não vi o filme como um romance teen "corrompido", que não deveria estar lidando com os temas mais pesados que ele aborda, e sim como um romance dramático voltado para o público adulto (que poderia ter uma estética mais na linha de um As Pontes de Madison / Foi Apenas um Sonho) mas que acabou sendo vendido com essa embalagem florida água-com-açúcar pra quem sabe cair na graça das "swifties" e de nichos mais lucrativos. 

It Ends with Us / 2024 / Justin Baldoni

Satisfação: 7 

Categoria: Idealismo (pode ser um caso de Idealismo Imperfeito também, pois o filme flerta com o "cinema de conforto" desse que foca mais nos traumas da personagem pra fazer o público se sentir menos pior quanto aos seus etc., só que ao mesmo tempo, ele faz um esforço grande pra romantizar os personagens, tornar o drama e o universo da história glamourosos, e não caracterizar a protagonista como uma vítima indefesa, então a abordagem Idealista ainda me pareceu ser a mais dominante aqui)

Filmes Parecidos: Namorados para Sempre (2010) / Foi Apenas um Sonho (2008) / Nasce uma Estrela (2018) / O Segredo de Brokeback Mountain (2005)

domingo, 18 de agosto de 2024

Alien: Romulus

Vendo Alien: Romulus, fiquei lembrando da minha impressão de Doutor Sono — era como se eu não estivesse vendo um filme de verdade, e sim um cover, uma performance de karaokê de uma música de sucesso, que por mais que se esforçasse e fosse admirável tecnicamente, não conseguia ter personalidade própria, pois estava totalmente confinada dentro dos limites criativos estabelecidos pelos criadores originais. Em Alien: Romulus, até as coisas aparentemente novas que o filme traz pra franquia ainda estão dentro da categoria de novidade "permitida", que já funcionou antes, como as que tornaram Aliens - O Resgate uma das sequências mais memoráveis de todos os tempos (coisas do tipo: explorar melhor as instalações da Weyland; revelar um novo processo biológico do Xenomorph nunca visto antes; apresentar um bicho maior e diferente do Xenomorph; explorar a conexão humana entre a heroína e um coadjuvante inesperado, etc.).

Em termos de produção e visual, o filme é incrivelmente fiel à estética de Alien e Aliens, recriando até aqueles mínimos detalhes que só fãs mesmo notariam: como o fogo dos propulsores das naves, que parece respingar e tem uma textura meio aquosa. A estrutura geral do roteiro também é idêntica — demora uns 40 minutos até nos depararmos com as primeiras criaturas, o miolo da trama são os membros da equipe sendo eliminados um a um, e no final temos a inevitável contagem regressiva anunciando a explosão da nave, assim como o clímax duplo onde achamos que nos livramos do bicho, mas algo sobrevive pra um segundo confronto. Se esse esqueleto fosse preenchido por coisas realmente autênticas, divertidas, eu até não me incomodaria tanto. Mas quando o filme começa a querer impressionar roubando cenas e momentos específicos dos clássicos (chegando ao cúmulo de repetir o "Get away from her, you bitch!"), ele deixa de parecer um karaokê inocente de um fã que sabe seu lugar, e começa a parecer um sósia sem noção que quer assumir a identidade de seu ídolo. (Quando vejo Aliens , eu não sinto que o James Cameron é uma espécie de fanboy que se coloca abaixo do filme do Ridley Scott e quer apenas honrar sua obra. Eu sinto que ele está se apropriando da franquia pra fazer sua própria coisa; apresentar algo que pra ele é mais interessante até que o filme original. Eu sinto isso até no caso das sequências menos bem-sucedidas, como Alien 3, Alien: A Ressurreição, Prometheus, etc. Alien: Romulus é a primeira que me dá essa sensação de não ter alma própria, de estar querendo apenas agradar os fãs criando um pastiche de tudo o que já funcionou antes.)

O filme até que funciona bem na primeira parte, quando tudo ainda é promessa, expectativa (embora até aí eu já não estivesse muito empolgado com o casting e os personagens sem sal). Mas na hora de entregar os "thrills" e as grandes ideias, o filme é crescentemente frustrante. Uma das primeiras coisas que me incomodaram foi que embora os protagonistas aqui pareçam menos durões, menos inteligentes e preparados que os dos outros filmes, eles derrotam as criaturas com muito mais facilidade! Os clássicos criavam a impressão de um vilão implacável, quase indestrutível. Neste, logo no primeiro embate a equipe consegue se livrar de múltiplos facehuggers com relativa facilidade. Em Aliens, nós víamos especialistas implementando diversas táticas para conter as criaturas, e elas sempre surpreendendo, contornando a situação, o que enfatizava a força e inteligência da espécie ("What do you mean 'they' cut the power?!!"). Aqui, qualquer ideia de meia-tigela que um personagem dá parece já ser eficaz contra os aliens (congelar a cauda do facehugger; aumentar a temperatura da sala pra eles ficarem "cegos" etc.) o que diminui a estatura do vilão, o suspense, e a grandiosidade do conflito.

Há uma ou outra sacada original em Alien: Romulus (a mais memorável delas é uma cena envolvendo o ácido de vários Xenomorphs, que não chega a ser muito plausível ou bem desenvolvida, mas pelo menos apresenta um conceito interessante), mas depois de certa altura, meu desânimo já tinha se instalado e esses méritos pontuais não conseguiam mais me empolgar — geravam só a frustração de estar vendo uma ideia promissora sendo desperdiçada em um filme que não é digno dela.

Alien: Romulus / 2024 / Fede Alvarez

Satisfação: 5

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Doutor Sono (2019) / O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio (2019) / Star Wars: O Despertar da Força (2015)

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Armadilha

Durante os primeiros 3/4, estava achando Armadilha um dos filmes mais divertidos da carreira do Shyamalan. Embora alguns detalhes da trama sejam meio mal explicados (você fica se perguntando por que um show com 20 mil pessoas seria o melhor local pra se capturar um serial-killer), achei possível curtir o filme como um simples jogo de gato e rato onde um homem precisa bolar táticas engenhosas pra escapar de uma emboscada. Além da ambientação, que achei bem original, há várias sacadas espertas ao longo do enredo que mantém o filme estimulante, como o acidente que o Cooper (Josh Hartnett) provoca na cozinha pra despistar os seguranças, ou o plano que ele bola pra escapar pela única saída do estádio que não é vigiada. Outra coisa muito bem feita é o retrato do cenário pop atual. Tudo é super convincente — a filha do Shyamalan e as canções da "Lady Raven" (que ela mesma compôs) parecem realmente com hits atuais, e a filha do Josh Hartnett está perfeita como uma fã estilo "swiftie". Artisticamente, tudo é bem medíocre, inautêntico, "corrompido", mas é exatamente aquilo que veríamos se entrássemos em um show pra esse tipo de público hoje, o que dá bastante veracidade à situação (e por ser tudo mostrado pela ótica do pai, que é um peixe fora d'água ali, o filme permite que a gente olhe pro espetáculo com um certo distanciamento e deboche).

O problema, como sempre, é que no ato final, Shyamalan precisa lidar com todas as respostas que deixou suspensas ao longo do filme, e vai precisar bolar um final imprevisível também pra manter sua tradição. Aí tudo desanda, e a cada nova reviravolta é uma revirada de olhos que você dá. Antes eu achava que essa falta de lógica dos finais do Shyamalan eram deslizes dele, como se no fundo ele quisesse ser aristotélico, criar reviravoltas respeitando o princípio da plausibilidade, só não fosse um roteirista bom o bastante. Mas como disse na crítica de Batem à Porta, hoje já estou convencido que ele faz isso de propósito. Que o barato dele é justamente ir além do plausível. Um final inteligente, que surpreendesse o público mas deixasse as pontas bem amarradas, provavelmente seria frustrante pra ele. Ele precisa "extravasar", se desprender do provável para realizar sua visão. Armadilha é um dos únicos trabalhos do Shyamalan que não lidam com o sobrenatural, mas ainda assim, um certo misticismo não deixa de estar presente pela maneira como ele comanda a história.

Trap / 2024 / M. Night Shyamalan

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Imperfeito

Filmes Parecidos: Tempo (2021) / Fragmentado (2016) / Fuja (2020) / Voo Noturno (2005) / O Quarto do Pânico (2002)

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Livre-Arbítrio vs. Causalidade

Uma dúvida recorrente entre estudantes do objetivismo é a de como conciliar o conceito de livre-arbítrio com o conceito de causalidade — como refutar o determinismo humano e provar que o conteúdo da nossa mente não opera pelas mesmas leis de causa e efeito que governam o mundo material.

Intelectuais objetivistas têm uma resposta padrão pra isso, que é a de dizer que o princípio da causalidade requer apenas que as ações de uma entidade estejam de acordo com sua natureza e não contradigam sua identidade. E como a consciência humana teria propriedades especiais e uma natureza diferente da de objetos materiais, o livre-arbítrio não seria uma contradição.

Eu sempre achei essa resposta um pouco insatisfatória. A resposta não está errada necessariamente, mas acho que é preciso "mastigá-la" melhor para satisfazer a verdadeira dúvida daqueles que trazem esse tópico recorrentemente em Q&A's.

A maneira como eu pessoalmente lido com essa questão é lembrando como eu solucionei um "problema" que me afligia na infância/adolescência — uma ideia boba que vou chamar de "falácia da escada rolante": 

Quando subia escadas rolantes antigamente, às vezes eu pensava que o esforço que eu estava economizando ao usar aquela tecnologia era uma forma de "roubar no jogo", de burlar as leis da natureza. Mas como tudo tem seu preço na vida, e magia não existe, aquela energia toda sendo economizada por mim devia então ter sido gerada por outra pessoa no mundo, que precisaria ter trabalhado por mim, feito um esforço equivalente ao de subir uma escada normal, mas não colhido os frutos deste esforço. Desta forma, as "forças cósmicas" se equilibrariam (um pouco como a ideia de que as riquezas do Ocidente dependem sempre da exploração de crianças do 3º mundo).

Mas quando eu refletia sobre as milhares de pessoas que subiam escadas rolantes todos os dias em uma estação de metrô, essa ideia começava a parecer cada vez menos plausível, afinal, esses escravos invisíveis teriam que ser incrivelmente numerosos e fazer uma força sobre-humana praticamente pra equilibrar tantos benefícios imerecidos no mundo moderno. Quando comecei então a pensar na força exigida pra transportar pessoas por avião, a "teoria" finalmente caiu por terra. De fato era possível "roubar no jogo" e sair lucrando deste universo!

Não sei dizer ao certo de onde tirei essa ideia maluca. Posso ter partido do princípio que energia é algo que só pode ser gerado por organismos vivos, afinal, essas são as únicas coisas que eu via se mexendo sozinhas no universo — todas as outras coisas no mundo eram "mortas", estáticas, portanto, não poderiam fazer outras coisas se moverem. Mas a "teoria" pode ter vindo de algo puramente emocional também — uma tendência minha de achar que qualquer facilidade na vida não poderia ser merecida, justa, livre de consequências ruins (o "universo malevolente" que é comum dar as caras no fim da infância).

Por mais ridículo que pareça o equívoco, a dificuldade que muitos adultos inteligentes têm de conciliar o conceito de livre-arbítrio com o de causalidade não é muito diferente. A confusão depende também deles ignorarem fatos óbvios da realidade e lidarem com uma versão editada, mais pessimista dela — como se essa fosse a marca de um verdadeiro cientista. Eles subitamente ignoram toda a vida ao seu redor, e partem do olhar frio que o mundo deveria ser composto apenas de matéria "morta", e que portanto, seria ingênuo acreditar que coisas possam realmente ter iniciativa própria e agir contra a lógica puramente material.

Quem é cético quanto ao livre-arbítrio está preso em uma mentalidade que sugere que apenas a matéria bruta pode ser científica, verdadeira. Que a consciência e a vida, como ainda não têm origens conhecidas, não podem ser levadas a sério em discussões sobre o funcionamento do mundo. As tratam como forças "mágicas" que seriam boas demais pra serem verdade — assim como o poder da escada rolante me parecia bom demais pra ser verdade aos 10 anos de idade, o que me levou a pensar que esta facilidade só poderia ser explicada por algo banal e deprimente, como a simples transferência de energia mecânica de um homem para outro (tipo o momento "Pepe, já tirei a vela" do Chapolin).  

(Alguns ambientalistas, aliás, partem de uma versão ligeiramente mais sofisticada, mas não muito diferente da falácia da escada rolante — eles já aceitaram que os homens podem capturar energia do universo e fazê-la trabalhar para eles sem que eles tenham que punir outros homens, mas agora eles acham que, se humanos não estão sendo explorados, a vítima então precisa ser a "mãe natureza", as plantas, os animais — eles é que se tornam os escravos invisíveis pagando o preço pelo nosso conforto — ignorando que a energia do Sol e dos átomos é praticamente infinita, e no futuro não precisará nem vir de dentro da Terra pra poder nos servir. Sim, no fim a energia tem que vir de algum lugar, algo tem que "pagar o preço" — mas não seres vivos ou o nosso planeta necessariamente, como eles sempre fazem parecer pra gerar apelo emocional.)

Resumindo, quem tem problemas com o conceito de livre-arbítrio precisa em primeiro lugar aceitar o fato que o universo é "mágico" sim, que nós temos "superpoderes" — no sentido que se a pessoa está partindo da versão editada/pessimista de universo onde tudo deveria ser puramente material, "morto", a ideia de livre-arbítrio soará praticamente sobrenatural para ela (assim como a ideia da mente poder causar doenças físicas no corpo devia soar fantasiosa pra muitos médicos no passado). O curioso é que esses céticos costumam questionar apenas o livre-arbítrio, mas não negam a vida e a consciência como fatos da realidade, o que nunca fez muito sentido pra mim. Afinal, nenhuma dessas 3 coisas caberia na visão mecânica de universo onde tudo é explicável pelas leis de Newton. Se você aceita que a vida existe, você basicamente já aceitou a possibilidade do universo não se limitar à lógica das bolas de bilhar, onde tudo apenas reage de acordo com eventos externos e nada tem intenção própria. E se você já aceitou isso, por que é tão difícil aceitar que a mesma força responsável pela vida e pela consciência pode explicar também o livre-arbítrio?

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Cultura - Agosto 2024

5/8 - Festival de Cinema de Paraty

Estava em Paraty neste fim de semana enquanto rolava o 1º Festival Internacional de Cinema de Paraty. Não cheguei a assistir aos filmes competindo, mas assisti a algumas mesas com insiders da indústria falando sobre tópicos diversos (o Dalenogare inclusive participou de uma sobre o Brasil nas campanhas para o Oscar). É raro eu participar desse tipo de evento, e o que mais me marcou nessa experiência foi que em vez de eu ficar inspirado e me sentir mais próximo do meio, eu saí com uma clareza ainda maior de por que eu nunca me vi fazendo parte dele. As duas principais mensagens que absorvi vendo essas mesas foram:

1) Que pra você se destacar fazendo cinema no Brasil, o que importa no fim é ser bom em networking, ficar amigo das pessoas certas, saber cativar outros "insiders" mais influentes que você.

2) Que pra você ter um filme de sucesso, o que importa é entender das tendências de mercado, os hábitos do consumidor, estudar o que o seu "nicho" quer e prever o que estará na moda daqui a 2 ou 3 anos (considerando o tempo de produção de um longa).

Ou seja, se você é do tipo que acha que cinema é antes de mais nada uma arte, e que mesmo o entretenimento não pode ignorar questões como autenticidade, talento, imaginação, longevidade, você se sentiria um alien naquele ambiente. No mundo desses profissionais da indústria, os exemplos a serem seguidos do cinema brasileiro são os de filmes como a cinebiografia do Claudinho e Buchecha, que foi a maior bilheteria nacional de 2023, ou então o documentário Democracia em Vertigem da Petra Costa, que por ser bem conectada e boa em auto-promoção, conseguiu uma indicação ao Oscar em 2020. Esse é o tipo de projeto que eles veem como o suprassumo da produção nacional, o tipo de produto "sexy" que te abre portas, que as produtoras realmente cobiçam. Então se você aspira a algo diferente, ou se você acha que esse tipo de sucesso ainda não é bom o bastante, você fica parecendo um artista ingênuo, pouco prático, alguém que não entende realmente do negócio e que provavelmente não seria acolhido por ninguém no mercado.