Uma dúvida recorrente entre estudantes do objetivismo é a de como conciliar o conceito de livre-arbítrio com o conceito de causalidade — como refutar o determinismo humano e provar que o conteúdo da nossa mente não opera pelas mesmas leis de causa e efeito que governam o mundo material.
Intelectuais objetivistas têm uma resposta padrão pra isso, que é a de dizer que o princípio da causalidade requer apenas que as ações de uma entidade estejam de acordo com sua natureza e não contradigam sua identidade. E como a consciência humana teria propriedades especiais e uma natureza diferente da de objetos materiais, o livre-arbítrio não seria uma contradição.
Eu sempre achei essa resposta um pouco insatisfatória. A resposta não está errada necessariamente, mas acho que é preciso "mastigá-la" melhor para satisfazer a verdadeira dúvida daqueles que trazem esse tópico recorrentemente em Q&A's.
A maneira como eu pessoalmente lido com essa questão é lembrando como eu solucionei um "problema" que me afligia na infância/adolescência — uma ideia boba que vou chamar de "falácia da escada rolante":
Quando subia escadas rolantes antigamente, às vezes eu pensava que o esforço que eu estava economizando ao usar aquela tecnologia era uma forma de "roubar no jogo", de burlar as leis da natureza. Mas como tudo tem seu preço na vida, e magia não existe, aquela energia toda sendo economizada por mim devia então ter sido gerada por outra pessoa no mundo, que precisaria ter trabalhado por mim, feito um esforço equivalente ao de subir uma escada normal, mas não colhido os frutos deste esforço. Desta forma, as "forças cósmicas" se equilibrariam (um pouco como a ideia de que as riquezas do Ocidente dependem sempre da exploração de crianças do 3º mundo).
Mas quando eu refletia sobre as milhares de pessoas que subiam escadas rolantes todos os dias em uma estação de metrô, essa ideia começava a parecer cada vez menos plausível, afinal, esses escravos invisíveis teriam que ser incrivelmente numerosos e fazer uma força sobre-humana praticamente pra equilibrar tantos benefícios imerecidos no mundo moderno. Quando comecei então a pensar na força exigida pra transportar pessoas por avião, a "teoria" finalmente caiu por terra. De fato era possível "roubar no jogo" e sair lucrando deste universo!
Não sei dizer ao certo de onde tirei essa ideia maluca. Posso ter partido do princípio que energia é algo que só pode ser gerado por organismos vivos, afinal, essas são as únicas coisas que eu via se mexendo sozinhas no universo — todas as outras coisas no mundo eram "mortas", estáticas, portanto, não poderiam fazer outras coisas se moverem. Mas a "teoria" pode ter vindo de algo puramente emocional também — uma tendência minha de achar que qualquer facilidade na vida não poderia ser merecida, justa, livre de consequências ruins (o "
universo malevolente" que é comum dar as caras no fim da infância).
Por mais ridículo que pareça o equívoco, a dificuldade que muitos adultos inteligentes têm de conciliar o conceito de livre-arbítrio com o de causalidade não é muito diferente. A confusão depende também deles ignorarem fatos óbvios da realidade e lidarem com uma versão editada, mais pessimista dela — como se essa fosse a marca de um verdadeiro cientista. Eles subitamente ignoram toda a vida ao seu redor, e partem do olhar frio que o mundo deveria ser composto apenas de matéria "morta", e que portanto, seria ingênuo acreditar que coisas possam realmente ter iniciativa própria e agir contra a lógica puramente material.
Quem é cético quanto ao livre-arbítrio está preso em uma mentalidade que sugere que apenas a matéria bruta pode ser científica, verdadeira. Que a consciência e a vida, como ainda não têm origens conhecidas, não podem ser levadas a sério em discussões sobre o funcionamento do mundo. As tratam como forças "mágicas" que seriam boas demais pra serem verdade — assim como o poder da escada rolante me parecia bom demais pra ser verdade aos 10 anos de idade, o que me levou a pensar que esta facilidade só poderia ser explicada por algo banal e deprimente, como a simples transferência de energia mecânica de um homem para outro (tipo o momento "Pepe, já tirei a vela" do Chapolin).
(Alguns ambientalistas, aliás, partem de uma versão ligeiramente mais sofisticada, mas não muito diferente da falácia da escada rolante — eles já aceitaram que os homens podem capturar energia do universo e fazê-la trabalhar para eles sem que eles tenham que punir outros homens, mas agora eles acham que, se humanos não estão sendo explorados, a vítima então precisa ser a "mãe natureza", as plantas, os animais — eles é que se tornam os escravos invisíveis pagando o preço pelo nosso conforto — ignorando que a energia do Sol e dos átomos é praticamente infinita, e no futuro não precisará nem vir de dentro da Terra pra poder nos servir. Sim, no fim a energia tem que vir de algum lugar, algo tem que "pagar o preço" — mas não seres vivos ou o nosso planeta necessariamente, como eles sempre fazem parecer pra gerar apelo emocional.)
Resumindo, quem tem problemas com o conceito de livre-arbítrio precisa em primeiro lugar aceitar o fato que o universo é "mágico" sim, que nós temos "superpoderes" — no sentido que se a pessoa está partindo da versão editada/pessimista de universo onde tudo deveria ser puramente material, "morto", a ideia de livre-arbítrio soará praticamente sobrenatural para ela (assim como a ideia da mente poder causar doenças físicas no corpo devia soar fantasiosa pra muitos médicos no passado). O curioso é que esses céticos costumam questionar apenas o livre-arbítrio, mas não negam a vida e a consciência como fatos da realidade, o que nunca fez muito sentido pra mim. Afinal, nenhuma dessas 3 coisas caberia na visão mecânica de universo onde tudo é explicável pelas leis de Newton. Se você aceita que a vida existe, você basicamente já aceitou a possibilidade do universo não se limitar à lógica das bolas de bilhar, onde tudo apenas reage de acordo com eventos externos e nada tem intenção própria. E se você já aceitou isso, por que é tão difícil aceitar que a mesma força responsável pela vida e pela consciência pode explicar também o livre-arbítrio?