Produção muito bem feita de um roteiro pífio. Por se tratar de uma prequel mostrando a invasão a partir do dia 1, você naturalmente espera que o filme seja diferente dos outros dois da franquia, e vá mostrar como a civilização se transformou gradualmente no ambiente pós-apocalíptico que já conhecemos — como os humanos primeiro reagiram à descoberta de extraterrestres, quem primeiro percebeu que as criaturas caçam exclusivamente com base no som, etc. Mas após um prólogo no qual toda a invasão é resumida, em 15 minutos de filme praticamente já estamos de volta à mesma situação dos filmes anteriores: a cidade está devastada, as ruas estão desertas, os sobreviventes já estão num clima de rotina, usando tecnologias retrógradas pra se comunicar, e já é de conhecimento geral que todos precisam ficar em silêncio para despistar os aliens. Isso estabelecido, a protagonista decide partir com seu gato em uma jornada aleatória pela cidade (o velho clichê de filmes/séries tipo Amor e Monstros, The Last of Us), só que aqui o filme nem se preocupa em dar uma justificativa pra jornada pra que o espectador se envolva na história — Samira diz apenas que quer ir até o Harlem pra comer uma pizza (!) mesmo sabendo que estará arriscando sua vida e que qualquer restaurante provavelmente estará fechado. Pra piorar, mesmo que ela sobreviva aos aliens e ache a pizzaria aberta, ela está com câncer e provavelmente não viverá por muito tempo, então o espectador já sabe desde início que qualquer final pra essa história será melancólico ou ambíguo na melhor das hipóteses.
A premissa do filme é baseada na História Idealista #3: "Personagem gostável, vivendo uma rotina familiar pouco excitante, subitamente é jogado em uma aventura/situação inesperada, e acaba vivendo uma experiência extrema / grandiosa / fantástica / surpreendente / emocionante / impossível, que transformará sua vida para sempre". Só que o fato da protagonista estar deprimida, não ter esperança, não estar nem um pouco fascinada pelos eventos fantásticos ocorrendo ao seu redor, e estar focada apenas em seus traumas e feridas internas, é algo que corrompe totalmente a intenção do gênero. É um caso típico de Idealismo Corrompido: o filme escapista que é sequestrado pelo Senso de Vida Malevolente, pela moralidade altruísta, e que em vez de mostrar algo empolgante, vira uma história "terna" sobre a fragilidade humana, sobre relacionamentos, sobre os sacrifícios que os personagens fazem uns pelos outros etc.
A questão dos silêncios/barulhos continua não tendo a menor lógica, assim como nos filmes anteriores. Por exemplo: por que o som de uma camisa rasgando atrai os monstros enquanto barulhos muito mais potentes no mesmo ambiente não atraem (como o do gerador)? Por que o gato não mia o filme todo e ninguém toma qualquer precaução quanto a essa possibilidade? A ação do filme soa burra até quando não envolve a questão do silêncio. O roteiro é baseado em algo pior que clichês: algo que poderíamos chamar de "clichês flutuantes". É como se o diretor tivesse um arsenal de ideias e beats interessantes que ele viu sendo eficazes em outros filmes, e tentasse reproduzi-los só que agora fora de contexto. Por exemplo: a cena onde a Samira se esconde embaixo do carro e um homem desesperado começa a puxar a perna dela, e depois as rodas do carro começam a ceder ameaçando esmagá-la — todos já vimos cenas onde pessoas em pânico numa multidão ameaçam a segurança do protagonista, ou cenas onde um espaço estreito começa a se fechar e o personagem precisa sair antes de ser esmagado. Então nós entendemos o conceito da cena quando ela acontece, pois lembramos de situações parecidas em outros longas, só que nesse caso as complicações não têm o mesmo efeito — não só por serem ideias enlatadas, mas por não parecerem plausíveis no contexto da personagem embaixo de um carro.
O filme inteiro parece funcionar por este mesmo tipo de pensamento conceitual desconectado da realidade: a própria ideia da jornada rumo à pizzaria, a sequência do resgate do gato quando ele vai parar dentro da toca dos monstros, o ato de sacrifício obrigatório perto do clímax etc. E a moralidade do filme explica em grande parte essa falta de lógica na ação: como as próprias mensagens que o filme quer promover são irracionais, a realidade precisa ser distorcida pra que elas se concretizem.
A Quiet Place: Day One / 2024 / Michael Sarnoski
Satisfação: 3
Categoria: Idealismo Corrompido
Filmes Parecidos: Um Lugar Silencioso / The Last of Us (episódio dos gays) / Logan (2017) / Bird Box (2018) / Rua Cloverfield, 10 (2016)
2 comentários:
Concordo com tudo o que você disse. O filme foi uma total decepção, pois não foi nada diferente dos outros dois filmes. Talvez se esse spin-off não tivesse existido nem faria a mínima diferença.
Pois é... acho que o público acaba se deixando levar pelos méritos visuais da produção, e pela questão da mulher negra com câncer terminal, que dá uma certa "dignidade moral" pra história e disfarça a pobreza do roteiro.
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