terça-feira, 24 de maio de 2022

Filmes Autorreferenciais e a Descrença na Ficção

Embora filmes autorreferenciais não sejam novidade (nem necessariamente problemáticos), me preocupa um pouco o fato de tanta coisa no cinema hoje ser autorreferencial, da ficção estar sempre tendo que assumir a própria artificialidade pro espectador: Matrix 4 se passa num mundo onde existe uma trilogia MatrixPânico 5 se passa num mundo onde existe uma espécie de franquia Pânico, o live action Tico e Teco: Defensores da Lei se passa nos "bastidores" do desenho Tico e Teco, Nicolas Cage interpreta Nicolas Cage em O Peso do Talento, Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa reconhece a existência de outros Homens-Aranha em outros filmes, etc.

Isso reflete um público que parece ter perdido o fascínio pela ficção, o prazer (ou capacidade) de se deixar transportar para a realidade de um filme (o que não é surpreendente, considerando o declínio na qualidade média dos filmes), e que também está tão acostumado a acompanhar o dia a dia de seus artistas favoritos nas redes sociais, a ler na internet tudo sobre os bastidores de cada produção, que pra ele a magia do cinema se perdeu.

Não há mais uma grande divisão entre artista e espectador, entre espetáculo e bastidores. É como se agora estivéssemos vendo um show de mágica, mas com as luzes acesas, as paredes e cortinas removidas, revelando todos os truques e mecanismos, o mágico usando jeans e uma camiseta casual, e o palco estivesse liberado pra qualquer um subir e dar uma volta.

"O show business mudou e não é mais tratado de uma forma mágica e preciosa. Todo mundo quer saber como os truques são feitos e o que os atores fazem 24 horas por dia e isso meio que tira um pouco da diversão da experiência de ir ao cinema." - Julia Roberts

Tom Cruise é uma figura que chama atenção atualmente por tentar resgatar um pouco do fascínio que o cinema costumava causar no público; não só pelos heróis que interpreta, mas também por ele não se expor demais nas redes sociais, gostar de fazer aparições grandiosas em tapetes vermelhos (chegou pilotando um helicóptero na première de Top Gun: Maverick), etc. Lutar pela experiência em salas de cinema (vs. lançamentos em streaming) também faz parte deste pacote.

Será que estamos passando por uma maturação natural do entretenimento? Que isso é o que o espectador quer de fato consumir? A quantidade enorme de filmes que precisam apelar pra nostalgia pra gerar algum senso de encantamento é um bom sinal de que o que a cultura tem produzido de original não tem suprido as necessidades do público.

Ao mesmo tempo, o público (e os produtores) parecem achar impossível restaurar o encantamento de antes, assim como alguém não consegue se forçar a re-acreditar no Papai Noel (e o equivoco aqui é associar o desejo por esperança e encantamento a ingenuidade, misticismo, não a valores e a funções psicológicas legítimas). Há um certo resgate do nostálgico, mas esse resgate é automaticamente minado por autorreferências e atitudes que buscam "desmistificar" a ficção. (Idealismo Corrompido)

É importante reconhecer o perigo de 2 extremos nessa discussão: por um lado, há o perigo da ingenuidade extrema, como a do telespectador que xinga um ator de novela na rua por achar que se trata de um vilão — essas são as pessoas que não têm um senso mínimo de realismo, de pensamento científico, e enxergam tudo como um fenômeno mágico, sobrenatural, como tribos antigas que interpretavam trovões como mensagens dos deuses.

No outro extremo, existe o perigo do cinismo, da indiferença completa, algo mais próximo do espectador atual, que não enxerga encantamento em nada, que se esforça pra desmistificar tudo o que vê, como alguém que disseca um corpo humano pra provar pra si mesmo que não há nada de especial sobre a vida, que somos apenas um aglomerado vazio de matéria. É a velha (e falsa) dicotomia entre misticismo e materialismo.

Há algo de "religioso" na arte por sua capacidade de exaltar, projetar valores morais, ideais positivos. E assim como a revolução científica causou uma crise na religião na época do Renascimento (levando muitos a concluírem que, junto com o sobrenatural, teriam que abrir mão também dos ideais e de todos os valores associados à fé), é como se a atual geração, ao crescer já tão consciente de todas as engrenagens por trás da produção audiovisual, estivesse vivendo uma crise parecida no entretenimento; uma perda de "fé" na ficção.

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