sábado, 20 de fevereiro de 2021

Comédia, Fantasia e Terror

(Capítulo 27 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

COMÉDIA

Boas comédias costumam se basear em premissas engraçadas e situações engraçadas. Muitos filmes cometem o erro de achar que o que torna um filme engraçado são apenas as falas e o comportamento dos atores — contam histórias que não têm nada de engraçadas em si (são romances, ou tramas policiais comuns se você analisar apenas a sequência de eventos), e o que as tornam cômicas é apenas o fato de que os atores estão constantemente fazendo caretas, levando pancadas, falando tolices etc. São mais dramas bem-humorados do que comédias em si. Já um filme como Primavera Para Hitler (1968) é um tipo de comédia mais essencial, pois a premissa em si é cômica.

Existem exceções, comédias boas que não são baseadas em premissas high-concept como Primavera para Hitler. O grande problema hoje é que os roteiristas não só não conseguem pensar em premissas engraçadas e criativas, como eles também não conseguem tornar um filme engraçado com base em boas ideias e personagens genuinamente cômicos — acabam sempre apelando para o grotesco, para o vulgar, para o escatológico, que é a forma mais barata e preguiçosa de humor. No passado, comédias sempre estavam sempre entre as maiores bilheterias do ano, e eram filmes que podiam ser vistos em família sem grandes constrangimentos. Em algum momento, no fim dos anos 90, algo mudou, e de repente até as comédias românticas tinham que estar repletas de piadas de banheiro, situações sexuais bizarras, violência exagerada, e isso continua sendo o padrão até hoje. Outro tipo de humor preguiçoso são aquelas comédias baseadas em atualidades — comédias cheias de piadas sobre novidades tecnológicas, notícias do momento, tendências passageiras, coisas que tornarão o filme datado em cinco anos ou menos. Humor de qualidade é baseado em sacadas inteligentes, conceitos atemporais, e acaba sempre refletindo uma mente sofisticada por trás da piada.

É identificando o que há por trás das piadas que percebemos também os valores de uma comédia. Num drama, o artista expõe seus valores de maneira direta — se vemos um final feliz, isso pode ser interpretado como um reflexo real de otimismo, por exemplo. Agora em comédias, o que vemos são valores que o artista está negando. Se um protagonista é burro em uma comédia, isso não significa que o artista admira burrice, mas pode sugerir exatamente o oposto. Como os valores do artista se revelam apenas de maneira indireta, através de uma negação, não é tão simples identificar quais são os valores positivos do artista em uma comédia — estes acabam sendo revelados nas entrelinhas apenas, e precisam de uma interpretação mais cuidadosa. De qualquer forma, são esses valores indiretos que definem o Senso de Vida da obra: se pelas entrelinhas a obra sugerir um respeito por virtude, um certo otimismo em relação à vida, então ela estará alinhada com o Idealismo. Comédias Não Idealistas ou Anti-Idealistas irão indicar algo bem diferente.

O equivalente ao Naturalismo no contexto do humor seria o tipo de comédia onde o espectador ri por constatar que os personagens são “falhos como ele”. O tipo de filme que pede para o espectador rir de si mesmo, rir da “condição humana”, que busca dar um senso de alívio para o espectador mostrando que ninguém é perfeito, retratando dificuldades que passamos no dia a dia — por exemplo: comédias sobre os problemas da gravidez, ou sobre os problemas da velhice, ou sobre os problemas de ser pobre, ou sobre os problemas do homem com disfunções sexuais — onde o espectador dá risada das situações e ao mesmo tempo diz “é assim mesmo que acontece comigo”. Apesar do uso de exagero, o filme não exagera tanto a ponto de invalidar totalmente os personagens como sendo absurdos, irreais — ele quer que você se identifique com a situação e por isso dê risada dela, tenha um misto de desprezo e simpatia pelos personagens (e por si mesmo).

No humor compatível com o Idealismo, isso não ocorre. A situação até pode ser próxima da sua realidade, mas o sentido da risada será completamente diferente — o humor fará com que você se sinta por cima da situação, enfatizando sua superioridade, e não sua inferioridade ou sua identificação com as fragilidades dos personagens. A piada não tem a intenção de revelar algo negativo a respeito do espectador, expor suas falhas. Quando você vê Clark Griswold, em Férias Frustradas (1983), cometendo uma série de trapalhadas, você não pensa “é assim mesmo que acontece na minha vida”. A graça vem do personagem parecer completamente maluco, criar situações absurdas, extremas, que jamais vemos no dia a dia (pense em Chaplin ou nos Irmãos Marx). O personagem assume toda a culpa por suas tolices e loucuras, sem tentar diminuir em nada a autoestima do espectador.

Outra forma de identificar o humor Idealista é entendendo que apesar da função do humor ser subverter certos valores, o artista que simpatiza pelo Idealismo ainda terá vontade de te transportar para este universo de valores positivos. Algum problema ou “erro de cálculo” tornará a história cômica, absurda, mas você ainda estará por perto do Idealismo e das coisas que admira. Um artista nunca quer se distanciar demais de seus valores positivos. Como eu gosto do Idealismo, por exemplo, alguém poderia supor que, para criar a comédia ideal, eu teria que me aproximar do universo do Naturalismo, pois esses são os valores que eu quero negar e atacar. Isso até pode funcionar em alguns casos, mas, mesmo para negar certos valores, eu ainda não teria prazer em me aproximar demais do Naturalismo. Eu ainda iria querer ver Idealismo num nível concreto, imediato: atores com personalidades atraentes, uma trama excitante sobre eventos incomuns, personagens buscando sucesso, diversão, justiça, uma grande paixão etc. Levada da Breca (1938), por exemplo, se encaixa perfeitamente na História 3 que discuti no capítulo “As 5 Histórias Idealistas”. Coisas engraçadas estão acontecendo, mas você ainda está inserido numa narrativa Idealista, vendo ambientes e situações mais atraentes que as da vida normal, acompanhado de astros como Katharine Hepburn e Cary Grant.

Imagine ouvir uma paródia de uma música que você detesta e que experiência isso iria causar. Embora a intenção da paródia seja ridicularizar a música, e pode haver certa graça nisso, a verdade é que em muitos níveis você ainda estará consumindo a música que você detesta e sendo exposto a valores que não te agradam. A melodia, os timbres dos instrumentos — muitas coisas ainda estarão te fazendo engolir um Senso de Vida contrário ao seu, mesmo que a intenção da paródia seja atacar a obra original.

Paródias como Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu (1980) poderiam ser interpretadas como uma tiração de sarro do Idealismo, mas não são de fato. Se eu fosse humorista, eu adoraria fazer uma paródia de um filme clássico do qual eu gosto. Mas minha intenção não seria zombar do gênero, fazer uma crítica séria aos valores do filme. O alvo do humor seria a incongruência das situações, a suposta insanidade dos personagens ou do realizador em si — o ambiente da história seria apenas um palco atraente para as piadas. Comédias costumam precisar de um contexto sério, formal, para que daí alguma violação ocorra e gere as risadas. Por isso, telejornais sempre foram palcos favoritos para programas de humor (Saturday Night Live usa esse recurso desde sempre), pois eles já criam naturalmente um clima sério e formal. Em Apertem Os Cintos, o filme faz uma paródia de filmes de desastre, mas as piadas em si não vêm com um tom de desprezo pelo gênero. No máximo fazem uma crítica à pretensão excessiva de certos filmes ou de clichês desgastados. Mas, em geral, as piadas funcionam com base em incongruência, em falta de lógica — que contrasta de forma cômica com a atitude séria da produção. Há uma cena no filme onde uma senhora conservadora observa com ar de indignação um passageiro se servindo de álcool durante o voo, mas no instante seguinte é vista inalando uma carreira de cocaína. A cena é engraçada pelo simples choque de ideias, pelo absurdo da situação, e não reflete de uma avaliação negativa do autor em relação ao cinema catástrofe.

Já no caso do humor Anti-Idealista, se o filme se passar no universo do Idealismo, o humor será usado para ridicularizar heróis, zombar do gênero em si, e terá uma carga elevada de cinismo. Em filmes de super-heróis da última década, como Guardiões da Galáxia (2014) ou Deadpool (2016), o humor passou a ser usado para diminuir a estatura dos heróis e do gênero em si. Não são filmes de comédia de fato. São filmes predominantemente sérios, que querem prender o espectador com base na aventura, na ação, mas que constantemente fazem piadas para minar a superioridade do herói ou a seriedade da situação. Um filme como Os Caçadores da Arca Perdida (1981) tem alívios cômicos, mas o herói não é o alvo dele, nem o filme em si. A cena em que Indiana Jones se vê confrontado por um inimigo com um facão, e, em vez de duelar, ele apenas saca seu revólver e o mata à distância, é uma cena cômica, mas o humor é feito para realçar a superioridade de Indy em relação ao adversário e aliviar a tensão provocada. Já em Deadpool, o humor é usado para ridicularizar o conceito de herói, dar um senso de que o herói é cool e “moderno” por não se levar a sério, por ser decadente moralmente.

Em obras cômicas, o importante no fim é entender qual é o alvo da piada. Humor, assim como uma crítica, tem sempre uma vítima, um alvo. O que torna a piada bem-intencionada ou mal-intencionada é a natureza deste alvo. Rir da irracionalidade, do absurdo, da mediocridade, é algo positivo. Rir do sucesso, de virtudes, do ser humano em si, não é. Ayn Rand sintetiza essa diferença de maneira genial em uma passagem de A Revolta de Atlas: 

Em sua infância, Dagny observou que tanto Francisco quanto seu irmão James riam com frequência, mas eles riam de maneiras muito diferentes. Francisco ria como se ele enxergasse algo muito superior àquilo que o fazia rir. James ria como se ele não quisesse que nada fosse superior.

FANTASIA

Há quem pense que fantasia e escapismo possam ser prejudiciais por refletirem uma busca pelo impossível, pelo irreal. Mas, como já disse, a arte não deve ser interpretada de forma literal. Ela é assumidamente um faz de conta, não uma mentira. Brincar e exercitar a imaginação é um prazer natural do ser humano. Nós somos naturalmente atraídos pelo incomum, pelo fantástico, por possibilidades que vão além das familiares. Pense em como bebês e crianças pequenas são atraídos por brinquedos luminosos, por cores brilhantes, por ilusionismo, como eles estão sempre brincando com carrinhos, bonecos, criando realidades paralelas na imaginação. Isso não pode ser visto como sinal de que há algo de errado com o ser humano, se não estaríamos todos amaldiçoados desde o berçário. Fantasia só é prejudicial fora do contexto do “faz de conta”, ou quando essa busca pelo irreal se torna uma obsessão séria.

Um bom entretenimento, mesmo quando baseado em fantasia, se quiser envolver o espectador ainda terá que falar sobre coisas possíveis no mundo real e que sejam de interesse pessoal dele. Fantasia e escapismo divertem, mas só nos interessam até certo ponto. Para realmente nos importarmos por uma história, terá que haver algo nela compatível com o mundo real e que seja aplicável às nossas vidas. A boa fantasia irá estimular noções como autoestima, realização individual, otimismo, pois sabe que esses são valores importantes para a vida real do espectador.

Porém, existe sim o tipo de fantasia que não existe para dar prazer e inspirar felicidade no mundo real, e sim para proporcionar uma fuga da realidade — fazer o espectador se perder num universo paralelo para que ele se esqueça de sua vida e não tenha que pensar nas exigências do mundo real. Esse tipo de fantasia será tediosa para o espectador Idealista, pois não costuma ter narrativas estimulantes, personagens admiráveis, objetivos palpáveis com os quais ele possa se identificar. São obras feitas para o espectador “desligar o cérebro” e servem mais como um mecanismo para lidar com frustrações, depressão etc.

Um último ponto a se considerar a respeito da fantasia é que, quando você para pra pensar sobre o universo e sobre a vida, a realidade é sim mágica de certa forma. Num sentido profundo, a fantasia não é 100% mentirosa. Nós estamos o tempo inteiro cercados por coisas fantásticas, intrigantes, mas que com o tempo passam a ser normalizadas ou banalizadas por nossos cérebros (pense no tamanho do universo, na natureza da consciência ou da vida em si). Talvez essa atração do ser humano por fantasia seja reflexo de uma certa curiosidade que permanece no nosso subconsciente, que em algum nível entende que o universo vai além dessa realidade familiar e banal que observamos no dia a dia, e que deseja dar uma espiada no “lado de lá” de vez em quando para restaurar um senso de deslumbramento pelas possibilidades do mundo.

TERROR

Em um filme de terror compatível com o Idealismo, o vilão exerce a mesma função que um antagonista num filme normal — ele representa apenas um obstáculo que o herói precisa superar para atingir seus objetivos. A diferença é que no terror o obstáculo é particularmente assustador e há uma intenção de estimular os medos primitivos e irracionais do público, o que pode ser uma forma válida de entretenimento, assim como entramos numa montanha-russa ou em um trem fantasma para vivenciarmos emoções intensas e situações apavorantes num contexto controlado, onde sabemos que não estamos de fato em perigo (parte da diversão vem do senso de estarmos dominando certos medos irracionais que não deveriam nos assustar — agora se o terror é baseado em medos racionais, realistas, o senso de diversão vai se perdendo).

Para ser Benevolente, o terror deve ser usado com o desejo de entreter, fazer o espectador se divertir, gerar escapismo (reparem como a maioria das pessoas saem rindo de um trem fantasma), e não de perturbar seriamente, incomodar ou provocar sentimentos melancólicos e pessimistas. Outra exigência é que a natureza do monstro ou do vilão seja bem estabelecida (principalmente em histórias sobrenaturais, o que vale para filmes de fantasia também), de forma que o herói tenha que agir de maneira compreensível e racional para derrotá-lo. Além disso, o filme deve respeitar o pilar da Autoestima: num bom filme de terror, haverá sempre uma ênfase nas virtudes do protagonista (suas habilidades e qualidades superiores de caráter). Um bom exemplo é a premissa básica da série Sexta-Feira 13: reparem como os filmes são moralistas (no bom sentido) e vão sempre matando os personagens fracos, imorais, ou simplesmente comuns e desinteressantes primeiro — e como os personagens que sobrevivem são normalmente os mais virtuosos e atraentes. Num exemplo superior, pensem na atitude de Sigourney Weaver em Aliens – O Resgate (1986). Essa é a maneira ideal de projetar Autoestima numa história de horror. Vilões icônicos, poderosos, singulares, que demonstram suas forças de formas memoráveis, também são características do bom terror e estão relacionados ao pilar da Autoestima (é mais prazeroso ver o herói lutando contra um adversário de peso, com personalidade forte, num confronto épico entre “titãs”, do que contra alguém genérico e sem grande estatura). Cenas de morte memoráveis e um suspense crescente em direção a um confronto final também são características comuns do “terror Idealista” e estão relacionadas ao pilar da Excitação e a conceitos como Set Pieces e o Princípio da Ascensão.

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