sábado, 20 de fevereiro de 2021

Idealismo na Música

(Capítulo 28 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Neste livro não irei discutir como o Idealismo se aplica a todas artes, mas a música (em particular a música popular), assim como o cinema, é uma das artes mais influentes na cultura e uma das mais presentes na vida das pessoas, então, acho importante dar algumas indicações de como as ideias apresentadas no livro se aplicam a este contexto.

A primeira coisa que deve ficar clara é que não deveríamos pensar em música popular como “música” do mesmo jeito que pensamos a respeito de música clássica (apenas em termos de elementos sonoros). A música popular é um conglomerado de artes e criações, assim como o cinema, e se comunica com o espectador via múltiplos canais: visual, sonoro, verbal etc.

O ASTRO

Ainda que a composição seja o elemento mais fundamental de uma obra musical (assim como podemos dizer que o roteiro é a peça mais fundamental de um filme), o artista (o cantor ou a banda) tem um impacto fundamental sobre uma música, assim como o ator/personagem principal tem sobre um filme. Como disse no capítulo “As 5 Histórias Idealistas”, para querermos acompanhar uma história, primeiro precisamos nos identificar com um personagem gostável. Se você detesta o personagem, por melhor que seja a história, ela não terá um impacto tão forte sobre você. Na música popular, o cantor é como o protagonista da história, e sua identidade irá colorir toda a experiência, de forma que fique difícil de separá-lo da música em si.

Mesmo quando estamos apenas escutando uma música, sem referências visuais, em geral temos uma imagem mental de quem é o artista, de como é o clipe, a apresentação ao vivo, e isso define boa parte da nossa experiência. E mesmo quando nunca vimos o artista, ele já transmite inúmeras qualidades apenas pelo áudio, que irão sugerir uma personalidade e um estilo particular.

A música apenas não basta? Ela não é o bastante pra inspirar e dar prazer?

Sim, ela pode bastar. Mas, no contexto do Idealismo, a música, quando acompanhada de elementos narrativos, visuais, e da figura de um artista, tem o poder de proporcionar uma experiência ainda mais poderosa que a música pura, instrumental. E de todos esses elementos que vão além da música em si, nenhum é mais forte que a figura do artista. Então, assim como no cinema, queremos sempre astros protagonizando nossos filmes, atores com personalidades fortes, carismáticas, estes astros também são fundamentais na música para que ela consiga inspirar o espectador e criar experiências realmente impactantes (e quanto mais o artista refletir valores como Autoestima, Benevolência, mais ele estará em harmonia com os princípios Idealistas).

Além das qualidades visuais do artista, muitos valores já são transmitidos apenas através de sua voz. Não só através de seu timbre natural (que é algo não escolhido), mas daquilo que o artista escolhe fazer com seu instrumento vocal. Pela maneira como ele escolhe cantar, o artista pode projetar: força, controle, ambição, clareza, precisão, autoconfiança, alegria e intensidade. Mas também pode projetar: fragilidade, falta de ambição, amargura, imprecisão, cinismo, dor — muitos artistas distorcem de propósito suas vozes e cantam de maneira embolada, como se tivessem algum tipo de paralisia muscular, enfeiam conscientemente seus timbres para criar determinado efeito e transmitir um Senso de Vida mais malevolente.

Idealismo autêntico na música popular é algo raro hoje em dia, ainda mais que no cinema. Os poucos artistas pop que carregam um toque de Idealismo costumam cair na categoria do Idealismo Corrompido. Figuras como Bruno Mars e Lady Gaga têm talento, e certamente foram inspirados por artistas do período Idealista dos anos 70–90, porém eles raramente conseguem projetar os mesmos valores que seus ídolos. Acabam muitas vezes fazendo referência ao entretenimento do passado, mas incluindo uma atitude de cinismo, de autoparódia, homenageando e zombando simultaneamente do gênero, tratando aquilo como se fosse um guilty pleasure e não uma forma de arte importante e admirável. Assim como os super-heróis dos filmes atuais, eles não conseguem projetar uma verdadeira autoestima, livre de culpa, nem um verdadeiro senso de inocência ou otimismo. Eles não acreditam de fato nesses valores (ou não têm confiança o bastante para desafiarem o zeitgeist e irem contra o Anti-Idealismo da cultura atual).

Uma mistura de Idealismo com um Senso de Vida malevolente parece ser a norma do pop atual. As músicas muitas vezes irão expressar algo positivo através do arranjo, dos acordes ou da melodia, mas a letra será deprimente, assim como a atitude do artista, o clipe. Pegue o hit “Royals” da cantora Lorde — se a música fosse tocada no piano, sem a voz, sem a letra, ela poderia até dar a impressão de uma canção pop positiva, romântica, mas quando você acrescenta a letra, a performance, o arranjo, o clipe e todos os outros elementos, já se torna uma música sombria que reflete pessimismo e todas as desilusões da atual geração.

Outro perigo hoje é que a indústria descobriu que apenas o astro muitas vezes é o suficiente para vender e gerar sucesso comercial, independentemente da qualidade da música (mais uma vez, vemos não apenas uma perda de valores e ideais, como também uma perda de técnica e habilidade). O astro passou a ser o verdadeiro produto da música popular, e a música em si se tornou apenas uma trilha de fundo, um papel de embrulho para vender a personalidade. Boa parte do que faz sucesso hoje não é música de fato, são apenas sons bem produzidos que refletem certo estilo de vida e certa atitude. Então os artistas são como personagens carismáticos em um filme que não tem história — podem até vender, fazer sucesso momentâneo, mas logo se tornam descartáveis, pois o que faz um artista sobreviver ao tempo no fim das contas é a música — assim como um filme pode fazer sucesso por ser estrelado por certo ator, por ter um herói conhecido —, mas em pouco tempo ele se torna esquecido se não tiver um bom roteiro e uma boa história. Ou seja: ainda que o artista seja fundamental para a experiência, não devemos nunca colocar a música em segundo plano. É a união de um grande artista interpretando uma grande música que gera as melhores experiências.

ARTISTAS “COMPLETOS” VS. INTÉRPRETES

Assim como um filme tem mais força quando ele é a expressão autêntica de um artista central, um músico que é o criador de seus trabalhos também tem uma vantagem sobre cantores que são apenas intérpretes. A dificuldade na música é que é um feito extremamente raro um artista ter todas as qualidades que o tornam um bom intérprete (aparência, habilidades vocais, carisma) ao mesmo tempo em que ele tem todas as virtudes de um grande criador (especialmente no contexto do Idealismo, que exige que o artista tenha grandes habilidades físicas, uma personalidade magnética). Então, exigir que todo artista seja “completo” é quase como esperar que Arnold Schwarzenegger não apenas interprete o Exterminador do Futuro, mas também seja o roteirista e diretor do filme. São habilidades que nem sempre andam juntas. Quando acontece, é algo para ser admirado e aplaudido. Mas, na prática, muitas vezes os melhores artistas pop não são os verdadeiros visionários por trás de suas obras. E isso nem sempre diminui o impacto de seus trabalhos (especialmente quando o artista tem valores parecidos com os do trabalho que está apresentando, não é apenas uma marionete de um produtor fazendo algo contra seus princípios). Talvez Whitney Houston tivesse sido uma artista ainda maior se tivesse escrito todas as suas músicas —, mas ela é uma intérprete tão única e fenomenal que me parece quase uma heresia sugerir isso. O mais correto nessa situação me parece ser passarmos a ter uma apreciação maior pelo trabalho dos produtores musicais, e a enxergar a relação entre eles e o intérprete da mesma forma que enxergamos a relação entre heróis/atores e os diretores/produtores de um filme. É muito comum que os maiores Idealistas na música sejam os produtores, no fundo, não os artistas em si. Tanto que muitos artistas tendem a criar trabalhos mais Idealistas no início da carreira, quando primeiro explodem e ainda estão sob o comando de um produtor, mas depois de três, quatro álbuns de sucesso, quando ficam poderosos demais e decidem tomar as rédeas da própria carreira, começam a produzir trabalhos inferiores e menos positivos em espírito.

OS ELEMENTOS DE UMA BOA MÚSICA

Não tenho a pretensão de dar aqui uma aula de teoria musical, algo que não é minha especialidade, nem de dizer o que é esteticamente superior ou inferior nesta arte. Quero apenas dar uma noção básica de como enxergar a música por um prisma Idealista.

Lendo um livro sobre composição chamado How [NOT] to write a Hit Song! (de Brian Oliver) me deparei com um trecho que revela como mudanças no Senso de Vida de uma cultura se refletem em mudanças na composição:

Cada acorde tem um tom emocional diferente. Acordes maiores transmitem alegria, entusiasmo ou um sentimento positivo; acordes menores criam um senso de melancolia ou tristeza.

Em 2012, um estudo acadêmico revelou que o número de hits com acordes menores dobrou desde 1965, e menos canções de sucesso estão sendo escritas agora com acordes maiores.

O psicólogo musical E. Glenn Schellenberg e o sociólogo Christian von Scheve avaliaram mais de 1000 canções americanas que ficaram no Top 40 entre 1965 e 2012. O estudo mostrou que na segunda metade da década de 60, cerca de 85% das músicas que chegaram ao topo das paradas foram escritas no modo maior, mas no final da década de 2000, este número havia caído para apenas 43.5%. Assim como as letras das canções pop se tornaram mais autorreferenciais e negativas nas últimas décadas, a música também mudou — ela soa mais triste e mais ambivalente emocionalmente.

Em termos puramente musicais, nenhum elemento é mais básico e fundamental para determinar o Senso de Vida de uma música do que a progressão de acordes e as mudanças de acordes predominantes na obra. Acordes são mais importantes que a melodia nesse ponto: duas músicas com a mesma progressão de acordes, mas com uma linha melódica diferente, ainda costumam transmitir uma emoção parecida. Agora quando você preserva apenas a melodia, mas muda os acordes, você altera totalmente a emoção da música.

Os acordes se comunicam com nosso cérebro num nível primário, fisiológico, que transcende qualquer contexto social ou cultural — assim como um bebê, em qualquer parte do mundo ou época, já entende o que é doce ou amargo instintivamente antes mesmo de saber falar. Algumas mudanças de acordes são mais “doces” e prazerosas, outras são mais dissonantes, e incômodas — podemos dizer então que algumas progressões de acordes são mais Idealistas e outras menos Idealistas, se pensarmos que o objetivo do Idealismo é proporcionar uma experiência positiva para o espectador.

Se você vai de um acorde como o Dó Maior, por exemplo, e sobe um tom para um Ré Maior, você tem uma das mudanças mais prazerosas entre todas as combinações de acordes possíveis, que transmite um senso de harmonia e esperança (isso vale para qualquer mudança entre dois acordes maiores com uma distância de um tom). Algo quase tão positivo ocorre quando você parte de um Dó Maior e cai em um Fá Maior (ou seja, vai de um acorde maior, para outro acorde maior dois tons e meio acima). Já se você parte de um Dó Menor e sobe para um Fá Maior, você cria um clima de grandiosidade, um sentimento épico, também positivo, mas mais dramático do que o exemplo anterior, pois aqui você partiu de um acorde menor (que indica conflito) e foi parar em um acorde maior (mais ideal e harmonioso), sugerindo uma narrativa de superação. Outras mudanças de acordes já poderão transmitir sentimentos de conflito, melancolia, desencanto, e serão predominantes em músicas mais negativas. [confira minha tabela completa na postagem Emoções e Relações Entre Acordes]

Não sou contra o uso de acordes menores, da mesma forma que não sou contra momentos de tensão em filmes. Mas, assim como a tensão e a desarmonia não devem ser objetivo final de um filme, os acordes menores e as mudanças de acordes menos harmoniosas devem ser utilizados apenas como um contraste para as mudanças mais prazerosas, como um tempero — para tornar as músicas mais dinâmicas, mais ricas, e principalmente como forma de enfatizar os momentos mais prazerosos da música, realçando seu “sabor”.

Lembrando que a melodia também pode interferir muito no impacto dos acordes. Dependendo da linha melódica, uma sequência de acordes pode ter um efeito mais ou menos intenso. É muito poderoso, por exemplo, o uso das 2ªs, 4ªs e 6ªs notas (que não fazem parte da tríade básica do acorde) como forma de aumentar a emoção, dar um senso de intensidade — como se a tríade fosse pequena demais para conter as emoções do artista, e ele precisasse se “esticar” pra fora dela por um momento para expressar o que sente.

Música é algo complexo, e existem inúmeras maneiras de quebrar certas regras e ainda obter um resultado positivo. O importante é entender que música não é uma arte subjetiva, inexplicável. Se o público sente algo ouvindo uma música é porque elementos específicos na obra estão expressando valores e com isso estimulando esses sentimentos, de maneira verbal e não verbal, principalmente. Uma emoção (racional) só pode estar vindo da progressão de acordes, da melodia, dos timbres dos instrumentos, da letra, da performance do artista, ou de uma interação complexa entre todos esses elementos. Melodias estão fortemente vinculadas ao significado de sons na vivência humana, por exemplo. Melodias agudas, com notas curtas e rápidas, que nos remetem ao som de uma pessoa alegre, rindo, soarão mais divertidas do que melodias com notas longas, melosas, que se pareçam mais com o som de uma pessoa chorando. Notas graves e fortes soarão mais ameaçadoras do que notas agudas tocadas suavemente, afinal, este é o tipo de som que associamos a pais bravos, animais corpulentos e perigosos.

Conhecer contextos culturais pode ser importante para entendermos melhor uma determinada obra, mas a essência da música, quando compreendida objetivamente, é universal.

GÊNEROS MUSICAIS

Gêneros musicais costumam carregar um Senso de Vida próprio. A música Disco e a Motown, por exemplo, tinham algo de Idealista em suas essências: eram feitas com o intuito de dar prazer, criar um senso de alegria e excitação. Música Pop e Dance costumam ter um compromisso em entreter, criar uma energia positiva, mas já são mais abrangentes e variadas em termos de tom, e podem incluir artistas com diversos tipos de Senso de Vida, não apenas benevolentes. Bossa Nova, MPB, música folk (não coincidentemente, estilos bem populares nos anos 60) estão mais ligadas a valores Não Idealistas, e podem ser vistas como o equivalente ao Naturalismo no cinema. Música Country costuma ter toques de Naturalismo (principalmente nas letras e nas figuras dos artistas), mas melodicamente tendem a ser prazerosas, românticas e compatíveis com o Idealismo. Rock em geral valoriza virtuosismo, emoções intensas, mas transmite um Senso de Vida malevolente pela ênfase em agressividade, rebeldia, conflito, sentimentos de revolta, artistas que costumam criar uma persona decadente, mas existem exceções positivas (Rock lida bem com três dos quatro pilares, mas raramente expressa Benevolência). Rock Progressivo flerta com Experimentalismo/Subjetivismo e tende a ser Não Idealista. Rap/Hip-Hop quase sempre é Não Idealista, não só por transmitir uma visão negativa de mundo, mas também por colocar a comunicação verbal e o valor político/social da obra acima de (e em oposição a) prazeres musicais mais fundamentais (melodia, progressão de acordes, canto etc.) — traz um pouco da revolta do Rock, mas sem o mesmo respeito por habilidade e musicalidade.

A maioria dos princípios básicos do Idealismo podem ser aplicados à música. Vamos pegar o Princípio da Ascensão, por exemplo: de acordo com esse princípio, a obra deveria evoluir ao longo do tempo — dar um senso de que está crescendo em direção a um clímax, que está guardando o melhor para o final. Nos sucessos do passado, era comum você ter que esperar até o bridge ou o último refrão para ouvir seu trecho favorito da música — o momento mais virtuoso do vocalista, a variação mais bonita da melodia ou do arranjo. A música estava sempre evoluindo, apresentando novas ideias, novos prazeres — às vezes até durante o fade out, se você aumentasse o volume, era possível ouvir um último “momento”. Mas, alienados das necessidades básicas do público, muitos músicos hoje em dia ignoram esse princípio, e apenas seguem estruturas musicais clássicas (como a ABABCB: verso/refrão/verso/refrão/ponte/refrão), mas sem entender o porquê delas existirem e sem cultivar esse senso de evolução. O fato do refrão normalmente ser mais prazeroso que o verso geralmente já garante um elemento mínimo de ascensão em músicas populares. Mas se você ouve uma música até o primeiro refrão, hoje em dia, você provavelmente já ouviu tudo o que ela tem a oferecer em termos de energia e dinâmica. Os próximos versos e refrãos serão idênticos, “copiados e colados”, e não irão apresentar nada de novo ou de muito mais satisfatório musicalmente — você pode muito bem pular de faixa quando o primeiro refrão terminar que não irá perder nada.

Isso dificulta também a criação de ápices — instantes de puro êxtase e satisfação que é o que faz o espectador querer ouvir a música diversas vezes sem cansar, assim como grandes momentos e grandes cenas são cruciais em um filme.

Uma composição musical requer que você mantenha sua plateia mais interessada no que irá acontecer do que naquilo que está acontecendo agora. Mesmo quando um momento maravilhoso está ocorrendo numa canção, os ouvintes estão subconscientemente aguardando o próximo “momento”. É isso que significa construir energia ao longo de uma música, e é isso o que chamamos de “forma”. É indicar sutilmente que algo de bom irá ocorrer. Esse senso constante de antecipação é crucial. Seja na letra, na instrumentação, na dinâmica ou em outro aspecto da composição. — Gary Ewer

Exemplos de como cada pilar do Idealismo pode estar presente em uma música:

OBJETIVIDADE: composições com estruturas claras, melodias e ganchos facilmente reconhecíveis, temas recorrentes, letras que refletem racionalidade, coerência, precisão, instrumentos bem mixados, uma sonoridade limpa que dê um senso de ordem, integração, onde cada elemento sonoro tenha uma identidade e um propósito claro.

AUTOESTIMA: virtuosismo vocal, performances de alto nível, um artista confiante, habilidoso, original, com uma personalidade magnética, letras e arranjos que inspiram um senso de ambição, que tenham uma visão edificante da vida e do ser humano.

BENEVOLÊNCIA: mudanças de acordes predominantemente harmoniosas (como as já citadas), letras que inspiram algo de otimista, que foquem coisas positivas, um artista que transmite um Senso de Vida benevolente através de seu visual, sua atitude e sua voz.

EXCITAÇÃO: músicas que respeitem o Princípio da Ascensão, que busquem emoções extremas, que criem variedade, surpresa, picos de satisfação, que falem de situações e relações extraordinárias, incomuns, empolgantes.

Michael Jackson elevou a música pop para um novo patamar nos anos 80 criando uma nova forma de unir música, vídeo, narrativa, atuação e dança, que aproximou ainda mais a música popular de uma experiência multidimensional, completa, assim como o cinema. Michael é também um daqueles casos raros de um artista que une as qualidades de um criador genial, de um verdadeiro visionário, com as habilidades físicas e virtudes dos grandes performers.

ANÁLISE DO CLIPE “BEAT IT”

O clipe começa em uma cafeteria comum, num clima banal de cotidiano — um senso de realismo que serve como Contraste para o que irá ocorrer a seguir: a Excitação de quando a música começa e partimos para um universo de gângsteres, ruas esfumaçadas, pessoas que se movimentam de forma coreografada, saem de dentro de bueiros, o que transporta o espectador para uma outra realidade (Michael usa esse tipo de contraste em vários de seus clipes, como “Bad”, “Black or White”, “The Way You Make Me Feel”, que primeiro estabelecem um ambiente comum, realista, e a partir daí nos levam para uma realidade mais atraente).

Aos poucos, os membros da gangue vão se encontrando, se agrupando, dando a impressão de que a história está caminhando para algum lugar, que algum evento importante irá ocorrer, o que estabelece uma estrutura de Ascensão.

O fato do clipe ser sobre gângsteres pode passar uma ideia de agressividade, de que o vídeo tem um Senso de Vida malevolente, mas, na verdade, isso é apenas outro uso eficaz de Contraste. O clipe não é sobre glamourizar a violência, mas sobre Michael querendo criar paz entre as gangues e concretizar o valor da Benevolência. A história no fundo é sobre inocência, harmonia —, mas para ela ter uma narrativa eficaz, memorável, o clipe primeiro enfatiza o negativo, o obstáculo.

Michael é visto pela primeira vez dentro de um quarto, deitado na cama (ele não faz parte das gangues, do conflito), usando uma camiseta quase infantil — um detalhe que já indica um caráter mais inocente —, mas ao mesmo tempo Michael é confiante, canta com atitude, projeta um senso de Autoestima (não parece apenas um garoto ingênuo e indefeso).

Michael é um ótimo dançarino, como todos sabem (esse é um dos seus “superpoderes”, se pensarmos em artistas como heróis em um filme), mas observem que ele só começa a apresentar elementos de dança quase na metade do clipe — outra tática para criar uma estrutura ascendente e guardar o melhor para o final. Hoje em dia, muitos clipes mal começam e já mostram o artista numa grande coreografia com dezenas de pessoas, tornando o resto do vídeo tedioso e “mais do mesmo”.

Quando as gangues começam a caminhar pelas ruas, percebemos claramente as referências ao musical Amor Sublime Amor (1961). Michael foi pioneiro ao trazer para o universo de videoclipes (na época uma arte ainda pouco desenvolvida) referências de filmes clássicos, obras mais sofisticadas — uma atitude de alguém que queria elevar o entretenimento para um outro nível, queria que a música pop fosse tratada com respeito, e não como uma diversão descartável.

O momento em que as gangues começam a brigar e os dois líderes são amarrados pelo braço é um bom exemplo de como criar uma cena marcante e apresentar boas ideias dentro de um clipe. Muitos clipes são apenas uma colagem de imagens do artista cantando em locações diferentes, mas não criam momentos, não dramatizam eventos, e, portanto, soam genéricos, vagos — quando lembramos deles, não lembramos de nenhuma ideia em particular.

Durante a briga, as gangues já começam a se movimentar de maneira mais teatral, próxima de uma dança, criando um ar de fantasia (Excitação), algo típico do cinema musical. Essa ideia atinge seu clímax na cena-chave do clipe, que é quando Michael interrompe a briga, e em uma única cena consegue concretizar tanto Autoestima quanto Benevolência e Excitação, numa espécie de superclímax. Autoestima por Michael neste momento se tornar o líder das duas gangues; Benevolência pelo fato do “bem vencer o mal” finalmente e as gangues abandonarem a briga; e Excitação pela surpresa de todos entrarem subitamente em uma coreografia. A ideia de gângsteres durões entrando em um balé não só gera surpresa e fantasia (Excitação), como também transmite o valor da Benevolência, pelo fato do “mal” ter sido superado e da agressividade ter se transformado em algo lúdico e positivo (que é a mesma ideia dos zumbis dançando em “Thriller”, por sinal).


Nenhum comentário:

Postar um comentário