O impacto das redes sociais na cultura é um tema que parece nunca se esgotar. Nesse texto, queria discutir como algumas experiências pessoais — desde conflitos ideológicos na internet até episódios de cyberbullying — ilustram um padrão maior: como as redes sociais modificaram o comportamento humano, nossa percepção dos outros e alimentaram o mal-estar que definiu a última década.
Inicialmente, acho que as redes sociais estimularam a autenticidade mais do que a reprimiram. Pelo menos no meu caso. Antes do surgimento do Orkut, inconscientemente, eu tinha uma tendência de me ajustar aos ambientes em que estava — no colégio, eu tinha um tipo de atitude; com meus amigos de infância, uma ligeiramente diferente; com a família do meu pai, outra; com a da minha mãe, outra ainda. Não chegava a ser um
Zelig nem a mudar de caráter, mas, com a chegada do Orkut, foi a primeira vez que me vi forçado a ter uma identidade social integrada — a ser apenas um único Caio no meio de todas essas bolhas incompatíveis. E foi um bom exercício. Em vez de me esconder, comecei a me esforçar para me expor de um jeito que me parecesse internamente coerente, sem me preocupar tanto com o ambiente externo.
Isso funcionou bem por um tempo. Mas, em algum momento no início dos anos 2010, as coisas começaram a ficar meio tóxicas (cada vez mais começo a achar que as profecias estavam certas e que houve, de fato, um "fim de mundo" por volta de 2012). Vou discutir abaixo dois incidentes que mudaram minha percepção das pessoas e minha maneira de me portar em contextos sociais.
O primeiro, muitas pessoas devem se lembrar. Foi em junho de 2013, durante os protestos por causa do aumento de 20 centavos na passagem de ônibus. Protestos grandes impulsionados por redes sociais eram inéditos até então, e até esse evento — dia 13 de junho de 2013, pra ser exato — eu não sabia que praticamente metade do meu Facebook estava do lado oposto ao meu no espectro político. Foi um completo choque para mim. Claro, eu sabia que as pessoas tinham visões diferentes sobre política, mas não que tanta gente levava a sério certas ideias que, pra mim, passavam longe do consenso. Quando analiso minhas postagens do Facebook dessa época pra trás, fico sempre surpreso com a tranquilidade com que eu expressava ideias e opiniões, como se não houvesse controvérsia a respeito de nada. Eu me portava como quem acredita que as pessoas são basicamente compatíveis, que aquilo que chamamos de "bom senso" é amplamente compartilhado, e que divergências raramente passam certos limites. Mas, depois de junho de 2013, eu nunca mais senti aquele mesmo nível de despreocupação e, ao longo dos anos, fui ficando cada vez mais cauteloso e autoconsciente ao me expressar (os conflitos online durante as eleições de 2014 e o impeachment da Dilma só reforçaram as divergências que os protestos dos 20 centavos já tinham evidenciado).
O segundo incidente foi mais pessoal, mas mostra como certas "evoluções" nas redes sociais ao longo da década de 2010 abriram as portas para tensões que antes não existiam. Em 2014, criaram uma rede social chamada Secret, onde amigos podiam fazer postagens anônimas em uma timeline comum. A plataforma não durou muito, pois ela parecia promover o pior nas pessoas, e uma série de polêmicas levou ao seu fim. Dia 14 de junho de 2014, eu acabei sendo "alvo" de uma postagem anônima ridicularizando trabalhos musicais que eu estava lançando na época. Não dava para saber quem fez o comentário, mas o sistema permitia identificar se o autor era seu amigo no Facebook. No caso, era. Esse foi outro evento onde as redes sociais mudaram significativamente minha percepção da sociedade e do meu lugar nela. Assim como, até o incidente dos 20 centavos, eu achava que, intelectualmente, as pessoas eram mais parecidas comigo do que eram de fato, até esse incidente do Secret, eu acreditava que meus conhecidos eram mais confiáveis e benevolentes do que eram. Nunca me passava pela cabeça que, pelas minhas costas, pessoas próximas poderiam estar me julgando daquela forma, menos ainda que se sentiriam à vontade pra fazer isso em público. Eu tinha consciência de que, como artista iniciante, "produtor de conteúdo" amador, eu estava correndo o risco de cometer erros, criar coisas de má qualidade. Mas eu me sentia relativamente livre para experimentar, me expor, pois achava que eventuais deslizes seriam vistos com olhos mais generosos por aqueles que entendessem meu contexto. Mas a verdade é que, em alguns casos, não havia esse "desconto".
A partir desse incidente no Secret, espontaneidade artística se tornou um esforço consciente para mim. Autoexpressão e criatividade nesse novo ambiente social passaram a ter um risco emocional impossível de ignorar. (O Secret acabou, mas a facilidade de usar as redes pra atacar os outros, não). Com o tempo, fui me acostumando com essa nova realidade e ajustando minhas expectativas, meu comportamento, tentando preservar o máximo da minha autenticidade inicial. Mas já não era algo tão automático quanto antes — mesmo integridade artística e intelectual sendo valores de primeira importância pra mim. Imagine o que deve ter acontecido ao longo desses anos com pessoas que não tinham esses valores tão altos em suas hierarquias.
Ou seja, acho que a primeira fase das redes sociais foi de bastante liberdade criativa, experimentação e transparência. Mas isso rapidamente nos levou à era dos haters, do cyberbullying, dos memes involuntários, da polarização política, que colocaram um sinal de "perigo" no território. Lembram de fenômenos como Rebecca Black, Edineia Macedo e Nissim Ourfali? Eles só poderiam ter ocorrido nessa época, quando "tudo era mato" ainda nas redes sociais, e as pessoas ainda eram inocentes em relação ao julgamento, ao hate. Depois disso, todos foram vacinados, e as pessoas passaram a pensar dez vezes antes de se expor, e a manipular cada vez mais suas imagens por medo da ridicularização, da condenação moral, e de outros riscos sociais que antes pareciam improváveis.
Além da perda da espontaneidade, uma tendência que ocorre quando você está sob risco de humilhação e ataques pessoais, é você se tornar menos transparente, e também menos positivo — adquirir uma imagem mais misteriosa, dark, agressiva, cínica (apresentar uma imagem cool e "respeitável" se torna uma prioridade muito maior do que conteúdo, talento, proporcionar prazer, etc.) o que pode explicar certas tendências estéticas da última década. (Pra quem acompanhou minha fase musical e lembra do período em que comecei a esconder o rosto com uma balaclava, ou de quando lancei a música "Tudo" — aquela mudança de tom certamente não teria acontecido se não fosse por tecnologias como seções de comentários, perfis anônimos, que tornaram desagradáveis as experiências anteriores com trabalhos mais genuínos).
Não estou dizendo que as redes sociais são um fenômeno completamente indesejável, anti-natural. Se formos pensar, as pessoas nunca foram 100% espontâneas em público — elas já moldavam suas aparências antes, não expunham certas intimidades, adotavam certas convenções culturais com base no que achavam que seria aprovado ou condenado socialmente. O que mudou agora é que passamos a ter muito mais insight sobre o que se passa na cabeça dos outros. Sabemos em mais detalhes o que é aceitável ou condenável socialmente. A invenção de outros meios de comunicação em massa no passado deve também ter causado uma expansão nessa percepção da sociedade, e levado a ajustes de comportamento — a um certo amadurecimento em relação ao período anterior.
Mas há uma diferença crucial das redes sociais para a televisão ou até mesmo pra internet pré-redes-sociais: elas aumentam significativamente as experiências de
rejeição pessoal no dia a dia da população. E não só porque agora podemos saber muito facilmente o que se passa na cabeça dos outros, mas também porque as redes sociais alteram nosso comportamento — tornam as pessoas mais hostis do que seriam naturalmente, em interações presenciais. Pense no seu comportamento no trânsito. Se alguém te dá uma fechada, sua hostilidade em relação ao outro motorista é muito maior pelo fato de você não estar diante de uma pessoa de carne e osso. O carro reduz o motorista a uma ideia, a um estereótipo. Da mesma forma, quando você está interagindo com alguém pela internet, até mesmo com um amigo, você está reagindo a uma versão reduzida dele — a um nome, uma foto de perfil, uma memória, não à pessoa inteira. E quem representa melhor quem você é? A pessoa que reage quando está no trânsito, em seções de comentários? Ou a pessoa que reage presencialmente? Se, além da buzina, seu carro "facilitasse" a comunicação e te permitisse enviar mensagens personalizadas para os outros motoristas, isso revelaria melhor quem você é? As consequências dessa tecnologia seriam saudáveis para o trânsito?
Por isso, a "transparência" criada pelas redes sociais não é totalmente racional. As redes sociais são como um telescópio, mas com uma lente quebrada: ao mesmo tempo em que revelam coisas que antes eram invisíveis (algo bom, se você valoriza a verdade, não acha que "ignorância é uma bênção"), elas apresentam a realidade de maneira distorcida.
A percepção de desarmonia social e as experiências de rejeição fomentadas pelas redes sociais estão por trás de vários problemas culturais que se intensificaram a partir dos anos 2010. Inúmeros estudos comportamentais apresentam gráficos que "disparam" por volta de 2011, 2012, 2013 e 2014. Palavras como "racismo", "sexismo" e "homofobia" começaram a aparecer com muito mais frequência em jornais. Problemas psiquiátricos entre jovens aumentaram. E não foi a política ou a natureza humana que mudaram drasticamente nesse período — foi a introdução dessas novas tecnologias de rejeição nos bolsos das pessoas.
Se as redes sociais revelassem apenas a verdade sobre os outros, talvez elas deixassem de ser uma fonte de mal-estar após uma ou duas gerações. Seriam como descobertas científicas desafiadoras, mas que eventualmente passam a fazer parte do senso comum. Mas, se for verdade que elas criam o mal-estar, estimulam uma desarmonia que vai além do natural, então elas continuarão sendo problemáticas no futuro e, eventualmente, terão que ser reformadas — se quisermos acabar com a polarização, com o clima de pessimismo cultural, teremos que trazer as experiências de desentendimento e de rejeição para níveis que eram normais no passado. E, pra isso, certos recursos que são padrão hoje nas redes sociais terão que seguir o mesmo caminho do Secret.