Num sistema 100% capitalista, baseado em livre-mercado (como eu apoio), não haveria financiamento público da cultura, e nem mesmo leis como a Rouanet (baseadas em isenção fiscal) pois o governo não estaria taxando empresas em primeiro lugar.
Mas considerando que não vivemos sob tal sistema, como alguém que defende liberdade deveria julgar casos onde artistas usufruem de editais ou leis de incentivo à cultura de alguma forma?
Como o governo já suga trilhões em impostos da população, já interfere na economia, e essa intervenção causa enormes distorções na área da cultura, impedindo muitas vezes o surgimento de uma indústria robusta baseada em livre iniciativa, nem sempre é condenável um artista "usufruir" de editais ou leis de incentivo (mais ou menos sob a lógica do sequestrado que aceita um prato de comida do sequestrador).
No caso de editais, se uma verba já vai ser gasta de qualquer jeito pelo governo na área da cultura, e a única diferença é qual artista será beneficiado, você ou um concorrente, não vejo grandes problemas em você tentar ser o beneficiado — mas desde que você:
- Não apoie publicamente a ideia de incentivo à cultura.
- Não incentive novos gastos além daqueles já predeterminados pelo governo.
- Não esteja produzindo uma obra sob encomenda para o governo, inserindo mensagens políticas/sociais inautênticas só para ser selecionado.
- Não use táticas desonestas pra ser selecionado (subornos, favoritismos etc.).
- Procure ter uma carreira sustentável que não dependa do governo, e não use dinheiro público de forma leviana, quando houver alternativas privadas igualmente viáveis (é mais aceitável alguém ir atrás de um edital pra financiar um longa-metragem, do que a Claudia Leitte querer 300 mil pra lançar uma biografia, ou Maria Bethânia captar R$1,3 milhão pra um blog de poesias).
Algumas pessoas parecem ver a Lei Rouanet mais positivamente que editais, por ser um incentivo baseado em isenção fiscal, e não dinheiro tirado diretamente dos cofres públicos (que supostamente poderia ir pra educação, saúde etc.). Mas não vejo uma distinção tão fundamental aqui.
Como o governo já tem um orçamento definido para a cultura, um artista particular se abster de um edital não fará o dinheiro subitamente ir pra áreas "mais importantes" como saúde e educação. Fará apenas ele ir para outro artista.
A diferença da Lei Rouanet é apenas que ela permite que o artista pegue o dinheiro de impostos direto nas empresas, antes dele chegar nas mãos do governo. Mas continua sendo dinheiro "público". Se você for pensar, talvez esta seja uma opção até pior pra quem acha que saúde, educação e outras áreas são mais importantes que cultura — pois o dinheiro que a empresa deixa de pagar em impostos, e reverte para a cultura através da Lei Rouanet, não necessariamente iria para a cultura em primeiro lugar. Passa a ser um gasto extra com cultura; uma porcentagem maior de impostos acaba indo para a cultura, em relação ao orçamento original.
Em qualquer caso, ainda estamos falando de arte financiada com dinheiro "público". Embora o empresário pareça ter mais opções neste caso, isso ainda está longe de liberdade econômica. Não estamos falando de investimentos inteligentes, estratégicos, visando lucro, que são indispensáveis pra qualquer indústria crescer.
CPI do Sertanejo:
Em polêmicas como a do CPI do Sertanejo, o debate muitas vezes se perde em meio a trivialidades. Pra quem acredita em livre iniciativa, o importante é ter em mente que:
- Num sistema de livre mercado verdadeiro, nenhuma confusão do tipo ocorreria, pois não haveria nem dinheiro para "mamatas", nem dinheiro para ser desviado ilegalmente. Portanto, só quem se opõe às leis de incentivo pode criticar esses escândalos sem ter o "rabo preso" com nenhum dos lados.
- Um sertanejo de sucesso fazer show pra prefeitura não é necessariamente errado ou hipócrita, pois ele pode estar de acordo com as condições listadas anteriormente.
- Receber pagamentos altos também não o torna automaticamente culpado (muitas pessoas parecem achar que alguém receber R$1 milhão por um show já é em si prova de corrupção).
- Gastos exagerados e indevidos com projetos culturais indicam corrupção mais da parte do governo do que da parte dos artistas (e como corrupção anda sempre de mãos dadas com dinheiro público, alguém que defende que a cultura seja financiada pelo governo não pode dizer que sua prioridade é acabar com a corrupção).
Produtores vs. Parasitas:
O principal ponto que muitos desejam camuflar nesse debate é a diferença entre Produtores e Parasitas. Quando um artista "grande" é pego fazendo algo de errado, aqueles que são a favor dos "pequenos" comemoram, como se subitamente estivessem todos no mesmo barco, e isso provasse que os famosos e bem sucedidos são todos hipócritas, e igualmente dependentes.
Mas a verdade é que, mesmo que diversos artistas famosos sejam corruptos e tenham feito fortunas só por conta de favoritismo do governo, isso não oblitera o fato que existem muitos outros artistas que fazem sucesso por merecimento, que conquistam público honestamente, e que são capazes de se sustentar sem prejudicar ninguém, de gerar riqueza, lotar plateias etc.
Um artista de sucesso pode até acabar "usufruindo" de leis de incentivo às vezes, pois, como disse, num sistema como o atual, é impossível evitar totalmente o estado. Mas isso não quer dizer que ele seja dependente, um parasita, que não merece o sucesso que conquistou. Muitos seriam igualmente bem sucedidos (ou até mais) num sistema sem interferências do estado. Já outros, apenas conseguem dinheiro por causa de esmolas do governo, pois o público jamais pagaria voluntariamente pelo que eles fazem.
Quando algumas pessoas se posicionam contra "mamatas", é essa distinção entre Produtor vs. Parasita que elas geralmente estão tentando fazer. É uma discussão sobre mérito, mas que se confunde quando alguns Produtores (artistas de sucesso) são acusados de corrupção — um tema relevante, mas que faz parte de um debate posterior.
Obviamente, é hipócrita um sertanejo que enriquece com base em dinheiro público acusar outros artistas de "mamarem nas tetas do governo". Ambos são parasitas, apenas de perfis diferentes. Mas quando o "argumento da corrupção" surge em discussões do tipo, muitas vezes o que está ocorrendo é uma tentativa de camuflar a diferença essencial entre Produtores e Parasitas (isso quando não se trata de um ataque gratuito ao artista de sucesso, baseado em ressentimento).
Ao sugerir que até os bem sucedidos sobrevivem às custas do governo, é como se os defensores dos "pequenos" quisessem provar que todos somos parasitas no fundo, que todos dependemos do estado, e que, portanto, o fomento à cultura é legítimo e indispensável.
O problema óbvio, é que isso é como sugerir que ninguém pode ser bem sucedido de fato, que nenhum artista ou produtor é capaz de atrair público honestamente, gerar riquezas, que todos no fundo roubam uns dos outros, o que não tem lógica.
Mesmo num país pobre, a maior parte da população aprecia cultura, entretenimento, e algum dinheiro estaria disposta a reservar para isso. Portanto, alguns artistas sempre seriam capazes de atender a essa demanda, e teriam público de forma honesta. A única questão é qual seria o tamanho desta indústria, e que artistas especificamente seriam os "escolhidos" do público. Mas não faz sentido sugerir que ninguém faria sucesso honestamente, que todos são dependentes, e que sem incentivo não haveria produção cultural.
A "necessidade" do financiamento público:
As queixas daqueles que se opõem à livre iniciativa costumam girar em torno de argumentos do tipo:
- Sem o governo, não haveria cultura para a população consumir
- Sem o governo, não haveria cultura de qualidade para a população consumir
- Sem o governo, o artista não conseguiria expressar sua arte
- Sem o governo, o artista não conseguiria se sustentar com sua arte
- Não haveria cultura para a população consumir: não acredito, pois continuaria existindo TV, rádio, internet (com conteúdo financiado de forma privada), e acesso ao que é produzido ao redor do mundo. Uma pessoa pobre hoje tem muito mais acesso a livros, filmes, música, do que uma pessoa rica tinha 50 anos atrás, e isso não é por conta de ajuda do governo.
- Não haveria cultura de "qualidade": não acredito, pois na área do audiovisual, por exemplo, o que o Brasil produziu nas últimas décadas com recursos do governo, é muito pior em média do que o que é produzido habitualmente pela Globo (novelas, etc.), ou pela Netflix, mais recentemente. Em praticamente todas as áreas, o que é feito com interferência do governo é inferior ao que é feito no setor privado, e na cultura não é diferente. Além disso, ninguém tem o direito (ou capacidade) de forçar o público a consumir coisas "sofisticadas" determinadas por uma elite, pelas quais ele não se interessa.
- O artista não conseguiria expressar sua arte: não acredito, ainda mais levando em conta as tecnologias atuais. Canais do YouTube não são financiados pelo governo, e ainda assim, YouTubers produzem milhares de horas de conteúdos interessantes todos os dias. Pra alguém com uma ideia na cabeça, há infinitas formas de expressá-la hoje sem grandes investimentos. Por que será que uma área desregulada como o YouTube tem uma criação tão grande de conteúdo, que realmente atende os interesses do público, e está sempre evoluindo, enquanto o cinema brasileiro, tão amarrado ao governo, entrega produções medíocres que ninguém quer ver na maior parte dos casos? Eu mesmo me coloco de exemplo: apenas com recursos pessoais, sem equipe, e gastando muito pouco, já fiz curtas-metragens, lancei livro, produzi músicas, e esses trabalhos estão disponíveis no mundo todo graças à Amazon, Spotify, YouTube, etc. (se eu não tenho um grande público, isso não é responsabilidade de ninguém). Não ter grandes investimentos não impede quase ninguém de se expressar artisticamente (o que também não é nenhum direito divino). Tudo é uma questão de escala: se não tenho muito dinheiro, não vou ter uma orquestra sinfônica tocando em minhas músicas. Terei que me contentar com instrumentos virtuais. Não vou poder imprimir milhares de livros em capa dura, mas posso ter infinitas cópias de um e-book, etc.
- O artista não conseguiria se sustentar com sua arte: pode até ser verdade em muitos casos, mas o problema aqui é a suposição de que alguém deveria ter o direito de ganhar dinheiro com o que faz, independentemente de mérito ou dos interesses do consumidor. Em nenhuma área existe tal garantia. Na arte ainda menos, pois é uma área que sempre foi particularmente difícil de se ganhar dinheiro, por diversos fatores intrínsecos à atividade — como o fato dela exigir uma quantidade muito menor de profissionais que outras áreas. Por exemplo: cada bairro de cada cidade precisa de um padeiro, e as pessoas consumirão pão mesmo que ele não esteja entre os melhores do país. Já o mesmo não vale pra área da cultura, pois 1 artista pode satisfazer a necessidade de milhões de pessoas, cruzar fronteiras, criar obras que duram décadas, portanto o espectador não precisa consumir um artista local medíocre quanto ele já tem acesso ao que há de melhor no país e no mundo.
Ganhar dinheiro com arte sempre foi pra uma minoria, assim como viver de esporte, ser apresentador de TV, YouTuber etc. São profissões mais "elitizadas" de certa forma, que ninguém passando necessidade deveria considerar antes de ter outras formas de se sustentar.
Ou seja, ao financiar a cultura, o governo não supre uma necessidade básica, um mínimo absoluto sem o qual não haveria cultura. Sem o governo, ainda teríamos cultura, produções de qualidade, e os artistas teriam inúmeras formas de produzir e divulgar seus trabalhos. O "problema" é que isso ocorreria de forma orgânica (ou seja, justa). O financiamento público da cultura é indispensável apenas para os artistas que, além de não quererem produzir arte numa escala modesta inicialmente, e além de não conseguirem ninguém pra patrocinar seus projetos voluntariamente, possam produzi-los mesmo assim, em "grande estilo", e ser remunerados por isso.
Não é muito diferente de alguém que sonha em ganhar a vida como "digital influencer", mas não quer começar produzindo conteúdo com um celular ruim, não quer ter poucas visualizações inicialmente, não quer passar pela etapa de ganhar seguidores de forma orgânica — quer fazer algo já tão profissional e ter tanto alcance quanto influenciadores estabelecidos.
Num nível mais profundo, o que o governo faz ao interferir na cultura (e na economia como um todo) é jogar uma névoa sobre a relação entre oferta e demanda: é distorcer a realidade pra que coisas que
não foram demandadas sejam produzidas e consumidas, permitindo que o "parasita" possa sobreviver às custas do "produtor" sem ter sua natureza exposta (como discuto no texto
Racionalizações).
Com isso, ele asfixia a cultura, dificultando o desenvolvimento de uma indústria sólida, baseada em oferta e demanda, que iria prosperar e eventualmente se sustentar sozinha.
(P.S. - Como exemplo do que pode ocorrer quando a cultura é deixada livre (junto com o empreendedorismo), basta ver como o cinema americano evoluiu no final do século 19. Os primeiros "filmes" duravam apenas em torno de 15 segundos, e só podiam ser vistos por 1 pessoa de cada vez nos Kinetoscopes, máquinas inventadas por Thomas Edison. Depois, vieram os Nickelodeons com os primeiros filmes projetados, que duravam entre 15 e 20 minutos, e eram mais lucrativos pois podiam ser exibidos para centenas de espectadores de uma só vez. O que começou como um "wild west" do entretenimento, uma arte chula feita primeiramente pra fisgar o público e ganhar dinheiro — filmes que não eram mais que TikToks primitivos, em preto e branco, e sem som (mas que já eram uma febre e resultaram num mercado altamente lucrativo) — em 10 anos já estava produzindo longas-metragens mais complexos como
O Nascimento de uma Nação, em 20 lançava
Em Busca do Ouro de Charles Chaplin, em 30, entregava uma animação musical e a cores como
Branca de Neve e os Sete Anões, e pouco depois tinha um ...
E o Vento Levou.)