Há toda uma geração que não viveu o fenômeno de
Titanic no final dos anos 90 (um evento que ainda não se repetiu no cinema) e muitos adolescentes ainda nem viram o filme. Na última década as pessoas se habituaram a um nível tão inferior de entretenimento que qualquer coisa um pouco mais ambiciosa já ganha status de fenômeno cultural. Então é muito bem vindo um relançamento como esse (agora em 3D e também em IMAX, com qualidade técnica superior à do lançamento original), pra relembrar as pessoas do que os filmes podem ser - que é possível ser inteligente, original, tecnicamente brilhante, autoral, sério e ao mesmo tempo inspirar, divertir e projetar valores positivos - integridade, independência, ambição, felicidade - em vez de cinismo, naturalismo e as contradições comuns nos filmes chamados de "entretenimento" hoje em dia.
O filme todo mundo conhece e tem tantos méritos que não consigo cobrir todos em alguns parágrafos. Mas dessa vez vi todo o filme focado num ponto específico - a história de Rose; uma garota da alta sociedade, ainda com algum resquício de individualismo, mas que está quase sucumbindo às pressões sociais; aos valores falsos e às tradições superficiais de sua família e cultura - e que é salva (de diversas formas, como aponta a velhinha) por um rapaz pobre numa viagem tanto física quanto simbólica à América.
Notem como o tema é bem integrado à trama, à ação física, aos personagens, e como ele é concretizado nos conflitos e em cenas brilhantes como a do primeiro beijo: Rose, ao ver uma garotinha sendo "catequisada" pela mãe - treinada pra se tornar mais uma do grupo, pra se submeter às expectativas da sociedade - tem um sentimento profundo de alienação e finalmente decide se entregar a Jack, na clássica cena da proa, num "vôo" rumo à Estátua da Liberdade - e à sua própria independência, felicidade, abandonando a prisão de uma cultura que ela despreza.
Muita gente diz que o romance de
Titanic é "brega", "fútil", "superficial", quando não há nada de superficial aqui - o romance de Rose e Jack é tão detalhado, bem caracterizado, psicologicamente convincente quanto deveria ser. Nós acompanhamos cada etapa do romance com absoluta clareza; cada expressão no rosto, cada diálogo, cada ideia que caracteriza o processo de encantamento de uma pessoa por outra (vemos eles descobrindo que têm opiniões compatíveis sobre arte, o mesmo senso de humor, que gostam do mesmo tipo de diversão, ou seja, que têm a mesma visão de mundo) - tudo é muito consistente com o caráter de cada um e com o tema do filme - e o naufrágio não é apenas uma ação vazia; serve pra intensificar o conflito e forçar Rose a tomar decisões importantes.
O que as pessoas querem quando dizem "superficial" na verdade é fazer um protesto contra a visão benevolente, não-trágica, não-melancólica de amor que o filme projeta e que a maioria das pessoas abandonou em algum ponto da juventude, depois de muitas decepções - um amor ligado à admiração, ao compartilhamento de ideais positivos. Essas pessoas geralmente passam a considerar um filme trágico, melancólico, essencialmente mais profundo e significativo do que um otimista - não por ele ser mais elaborado, por ter mais realismo psicológico, por ser ilustrado com mais riqueza de detalhes, mas pelo simples fato de ser trágico.
(Não confundam o fato de Jack morrer com a ideia de tragédia - ele morre heroicamente, lutando por seus valores. O relevante é que ele existiu e que, depois dessa experiência, Rose não pode descer de volta ao mundo em que vivia - Jack morre mas seus valores vencem e sobrevivem nela, que é o que ouvimos em "My Heart Will Go On".)
Recomendo fortemente assistir em IMAX 3D - a sequência do naufrágio continua sendo uma das mais espetaculares já filmadas.
Titanic (EUA / 1997 / 194 min / James Cameron)
NOTA: 10.0