sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Um Homem Diferente

Não é fácil encarar um rosto desfigurado como o do protagonista de Um Homem Diferente, e eu tinha uma certa preocupação de que este filme se tornasse apenas uma lição de moral sobre aqueles que sentissem qualquer desconforto visual ao longo da projeção. Mas o filme lida com a questão de maneira bastante razoável, inclusive explicando as origens genéticas e involuntárias dessa reação. Em vez de um teste moral, o foco do filme se torna a engenhosidade da própria trama, que busca aquele tipo de inversão irônica bem explorada no ano passado em Ficção Americana.

Nesse aspecto, o filme começa muito bem, mas não sabe exatamente o que fazer com a premissa a partir da metade. A sacada central do roteiro é que o personagem encontra a cura para sua doença, mas, em vez de vencer na vida, acaba sendo superado por outro personagem que tem a mesma condição que ele tinha.

Vejo dois caminhos interessantes para um filme com essa premissa. O primeiro seria uma crítica à sociedade — uma sátira no estilo de Ficção Americana, onde um personagem que deseja realizar algo virtuoso acaba ficando para trás em uma cultura que não valoriza mais o belo. O segundo seria uma história de ascensão e queda sobre um homem com uma falha de caráter que acredita que vencerá na vida por meio de mudanças externas, superficiais, mas acaba sendo derrotado por seus fantasmas internos.

O diretor e roteirista Aaron Schimberg, que também sofre de um tipo de desfiguração facial, talvez não tenha o distanciamento necessário do tema para optar pela primeira opção. Assim, a história vira uma discussão sobre a importância do caráter diante do material. O problema é que o roteiro falha em estabelecer um problema de caráter para o personagem. No início da história, Edward (brilhantemente interpretado por Sebastian Stan) não tem nenhuma "falha trágica" que ele equivocadamente tente superar através da mudança de aparência. Ele é um cara perfeitamente digno, cujo único problema parece ser sua condição rara de saúde. E é uma condição tão grave que nenhuma reviravolta irônica do roteiro consegue fazer o espectador acreditar que, assim como em A Substância (2024), teria sido melhor o protagonista não ter passado pelo procedimento e aceitado sua aparência original. O roteiro acaba forçando uma série de situações para conseguir dar o fim trágico desejado a Edward, mas perde a credibilidade.

É pouco convincente, por exemplo, que Edward forjaria a própria morte, assumiria uma nova identidade e, mesmo assim, se interessaria em estrelar a peça de teatro da ex-amiga sobre sua vida. A maneira como seu rival, Oswald, consegue levar uma vida leve, socialmente movimentada e cheia de oportunidades profissionais, apesar do rosto desfigurado, também parece forçada — seria convincente se esse exagero fosse um comentário sobre as inversões de valores da sociedade atual, mas o filme não tem essa proposta.

Há vários bons filmes em que um personagem se torna rico, mas descobre que dinheiro não é tudo, ou conquista a tão sonhada liberdade, mas acaba perdendo seu propósito de vida. Em Um Homem Diferente, não cola a ideia de que a cura de Edward não teria servido para nada, já que, no fim, caráter é o que importa.

Na cultura atual, aliás, é ainda mais desafiador acreditar que as pessoas enxergariam além da condição de Edward ou Oswald. É curioso, por exemplo, que vários filmes de 2024 sejam sobre pessoas mudando de vida por uma transformação radical na aparência — Um Homem Diferente, A Substância, Emilia Pérez, Feios. Ao mesmo tempo que essas histórias expressam um desejo de priorizar o caráter, elas também refletem uma cultura onde a aparência física se tornou uma enorme preocupação e, para o bem ou para o mal, um fator cada vez mais determinante na vida social e econômica das pessoas.

A Different Man / 2024 / Aaron Schimberg

Satisfação: 6

Categoria: Idealismo Crítico

Filmes Parecidos: Ficção Americana (2023) / O Homem dos Sonhos (2023) / A Substância (2024) / Desculpe te Incomodar (2018)

5 comentários:

  1. Acho que tu entendeu muito do filme, mas não entendeu totalmente o filme. Perdesses vários detalhes. Um deles foi o fato de que Edward era vitimista e passivo diante da aparência dele, como frisou a vizinha. Ele se abateu com a confiança e extroversão do Oswald. Essa parte fala sobre satisfação. Ele era insatisfeito emquanto desfigurado. Após reverter a desfiguração, ele seguiu insatisfeito porque encontrou um desfigurado que sempre soube lidar com a condição melhor do que ele. O filme NÃO fala apenas com as pessoas que não apresentam deficiência, não se limita a criticar o capacitismo, o filme fala também com as pessoas com deficiência, para que elas não deixem se limitar pelas suas condições ou pelo capacitismo. E isso não serve apenas para pessoas com deficiência, mas para toda e qualquer pessoa que se sente marginalizada, inferiorizada, menosprezada. De fato precisa haver mais humanização e empatia, mas as pessoas precisam lidar de uma forma mais positiva com as situações, não se deixar abater pelas circunstâncias difíceis da vida. O Edward era tão passivo que tinha um buraco imenso no teto e demorou muito para repará-lo, e o buraco literalmente jogou coisas na cabeça dele.
    E sobre a crítica aos exageros do filme, o filme usou o exagero como metalinguagem do início ao fim. Se tivesse usado só 1 vez pra tentar tapar algum buraco, como alguns filmes já fizeram, aí concordaria com a crítica, mas o filme É SOBRE COMÉDIA DE ERROS, então os exageros são parte da narrativa, como na cena em que ele fica todo engessado, naquele momento ele tinha perdido emprego, identidade, autoestima, perdeu a vizinha que ele gostava, perdeu tudo, mas ainda assim tinha saúde (novamente o filme falando sobre satisfação), mas o Edward continuou se vitimizando, colocando a culpa das tragédias pessoais dele no Oswald, e acabou perdendo a saúde. O filme é irônico já no título "Um Homem Diferente". Ele achou que seria diferente como Guy, mas como o Oswald disse na última cena, o Edward continuava igual, nunca aceitando aquilo que ele é, sempre querendo ser alguém diferente, sempre esperando que o mundo o aprove e o aceite, o Edward nunca consegue viver a vida dele simplesmente, não consegue despertar pra realidade, sempre vivendo uma vida idealizada, ao ponto de não conseguir escolher o prato do cardápio.

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    1. Concordo com tudo que tu disse! Ótima crítica!

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  2. Pelo visto, você acha que a condição de Edward não justifica seu comportamento mais inseguro... Acha que ele deveria ser confiante, agir como uma pessoa de aparência normal e que sua "falha de caráter" foi ter se deixado abalar por sua desfiguração? Entendo que essa possa ser a intenção do filme. Só não acho realista nem dramaticamente convincente, pois me parece natural que alguém com essa condição seja mais reservado socialmente. O fato dele ainda circular por aí, ter certa independência e equilíbrio emocional já me parece, na verdade, uma conquista. Condená-lo por não ser confiante como Oswald seria até cruel.

    O problema do exagero na caracterização de Oswald, pra mim, tem a ver com a mensagem que o filme quer passar com esse exagero. Sei que o filme não busca ser realista, mas quando ele mostra um homem como Oswald sendo super extrovertido, popular, cercado de mulheres, isso só faria sentido pra mim se fosse um filme no estilo Ficção Americana, onde a premissa é que os valores da sociedade estão tão distorcidos que o belo virou feio, o feio virou belo, etc. Aí acharia engraçado o exagero. Mas essa não é a intenção do filme. Ele parece exagerar a personalidade de Oswald para evidenciar a fraqueza de caráter de Edward, para mostrar que ele era um loser por ter sido retraído a vida toda por conta de sua desfiguração. E aí voltamos ao mesmo ponto: dá pra culpá-lo por não ser confiante, mulherengo?

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  3. Não foi isso que eu disse, Caio.
    Eu não disse que uma pessoa deve deixar de ser passiva e vitimista e passar a ser extremamente confiante igual o Oswald.
    Edward e Oswald são dois extremos.
    O filme usou de exageros pra escancarar as deficiências de personalidade, que é o que realmente deveria importar.
    Não existe só extremamente passivo ou extremamente confiante. Tem várias nuances nesse meio que deveria ser buscada pra alcançar um mínimo de equilíbrio emocional.
    A comparação com Ficção Americana foi muito boa. É esse o ponto. Nem tanto se apegar as regras que ditam o que é belo, nem tanto desrespeitar e não aceitar o diferente tachando como algo feio e repugnante.
    É a defesa do meio termo mesmo.
    O protagonista de Ficção Americana se achava superior e foi "atropelado" pela realidade atual do cenário da arte globalizada e inclusiva. O Edward se achava inferior e foi "atropelado" por alguém que soube lidar de forma mais positiva com as dificuldades da vida.

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    1. Você viu o Edward como um extremo de alguém passivo e vitimista. Já eu, considerando a doença rara dele, achei ele até saudável emocionalmente, alguém cujas inseguranças são totalmente justificadas pelas circunstâncias. Pra eu ver o filme da maneira como você viu, teria que ter sido algo do tipo: uma mulher normal, que se acha horrorosa porque está uns quilinhos acima do peso, se mata o filme todo pra tentar emagrecer, e no fim, conhece uma mulher acima do peso super feliz, plena, enquanto ela continua insegura. Aí eu veria o filme como você viu Um Homem Diferente. Mas, no caso do Edward, achei natural e aceitável a insegurança dele, pois não se trata de uns quilinhos a mais, mas de algo extremo que realmente cria impedimentos e desvantagens em vários aspectos de sua vida - relacionamentos, carreira, saúde, etc. Achei aquele nível de "complexo de inferioridade" compreensível, perdoável... se eu estou vendo um filme sobre judeus na 2ª guerra, eu não os julgo moralmente se eles parecerem mais submissos e temerosos que uma pessoa comum. Pra insegurança do Edward ser digna de riso, pra mim ela teria que ser em grande parte injustificada, subjetiva, não-séria... tipo a insegurança do Nicolas Cage em Adaptação.

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