sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guerra Civil

Vi diversas críticas dizendo que Guerra Civil era um filme neutro politicamente, que seu foco estava mais nos personagens, na homenagem ao jornalismo — a grande divisão parecia ser que alguns críticos achavam isso bom e outros achavam essa neutralidade ruim, covarde. Mas pra minha surpresa, logo na primeira cena, o filme deixa bem claro seu posicionamento ao estabelecer o "vilão" como um presidente de direita estilo Trump, que se recusou a deixar a Casa Branca após o fim de seus dois mandatos. Em inúmeras cenas, pela maneira como o filme caracteriza o conflito, fica óbvio que o inimigo aqui se trata de um governo de direita levado ao extremo, de acordo com a ótica da esquerda.

Exemplos:

- No discurso inicial, o presidente golpista fala em Deus, pátria, exalta a América, os Founding Fathers, os americanos "de bem" — um discurso totalmente conservador.

- O presidente é um tipo vaidoso, que tende a se auto engrandecer, e não aceita resultados de eleições — uma comparação clara com Trump.

- A bomba que explode no primeiro combate matando várias pessoas é detonada por um extremista que chega segurando uma bandeira americana (assim como no Brasil, a bandeira nacional foi capturada pela direita nos EUA e transformada em símbolo partidário).

- As personagens da Kirsten Dunst e da Cailee Spaeny se referem aos seus pais como pessoas alienadas, que vivem em fazendas nos estados do interior dos EUA — estão falando de Republicanos.

- Quando há conflitos nas ruas com policiais e o filme quer ilustrar quem é o lado oprimido, em mais de uma cena ele destaca uma mãe negra na multidão como representante das vítimas — nunca alguém com um perfil típico de eleitor Republicano.

- Quando os protagonistas passam por uma cidadezinha que parece estar vivendo uma rotina normal, ignorando o caos no país (ninguém está em festa exatamente, mas alguns moradores estão caminhando na calçada, e há uma loja de roupas aberta tocando música pop) isso é mostrado como um absurdo, um exemplo de alienação, como se o correto fosse o país inteiro estar em modo "lockdown" em respeito às regiões que estão em conflito — um posicionamento que reflete muito o da esquerda durante a pandemia de COVID. 

- A figura mais vilanesca do filme é o soldado interpretado pelo Jesse Plemons — um extremista loiro, racista, com uma metralhadora na mão, que protege pessoas nascidas em estados do interior dos EUA, mas executa um homem que se revela um imigrante chinês — ódio à China é algo associado a Trump.

- O local mais seguro e benevolente do filme é uma espécie de acampamento da ONU que oferece ajuda humanitária (organização que é associadas a políticas Democratas).

- As mortes ao longo do filme são mostradas em tom trágico, como coisas cruéis, injustas. O filme só se permite ter certo prazer com a violência no caso das cenas em que os tais "Republicanos" são mortos. Essas parecem vinganças justas, apoiadas pelos protagonistas.

Não estou dizendo que o fato do filme ter um lado o torna bom ou ruim. Mas me intriga o fato de tanta gente ter achado o filme neutro, apesar de todos esses elementos. É como se para boa parte do público, só valesse como posicionamento aquilo que é comunicado num nível verbal, explícito. Mas é óbvio que o poder do cinema vai muito além disso, e que sua influência maior ocorre no nível não-verbal. Se o governo autoritário mostrado no filme tivesse similaridades com uma ditadura comunista, e o presidente tivesse características e políticas que remetessem às do Biden, duvido que a esquerda chamaria o filme de neutro — considerando que ela não perde a chance de taxar um filme de racista, por exemplo, se ele mostrar personagens negros sob uma luz pejorativa, mesmo que ele não faça nenhuma afirmação preconceituosa.

Isso acontece porque a esquerda é bem melhor que a direita no que diz respeito às entrelinhas, à comunicação indireta — por isso ela domina as artes, a mídia. Já a direita precisa de palavras, formulações "oficiais" pra entender algo, por isso ela fica perdida diante de um filme como Guerra Civil, que transmite suas mensagens todas por baixo do radar, sem oferecer essas formulações. (E por isso a direita ficava irritada com quem dizia que Som da Liberdade era um filme conservador, não um thriller neutro sobre tráfico de menores.) De fato, Guerra Civil não apresenta nenhum argumento intelectual contra os Republicanos, não diz o que exatamente causou a guerra, quais políticas ele acha que deveriam ser implementadas etc. Ainda assim, cena após cena, o filme está associando a imagem dos Republicanos aos agressores, autoritários, desumanos, alienados, ao lado que representa uma ameaça existencial para a América (lembrando que este é ano de eleição nos EUA).

Para ser realmente neutro, o filme teria que ter atribuído aos "monstros" do filme características que fossem estranhas a ambos os partidos, ou então características de ambos os partidos, criando uma salada para realmente confundir. Por exemplo: além de patriota e religioso, o presidente golpista poderia também ser um ambientalista radical, alguém que pretende taxar os ricos; entre as vítimas, poderíamos ver, além de mães negras, um empresário que teve seus bens confiscados pelo governo; quando a Cailee Spaeny cita um certo "massacre da ANTIFA", em vez de deixar a fala vaga, o filme poderia dizer que a ANTIFA foi quem cometeu o massacre etc. Não precisaria de muito — bastaria 1 única cena em que alguém com características ou pautas Democratas fizesse algo maligno para essa neutralidade do filme se tornar crível. Eu não vi nenhuma. O grande álibi do filme é o fato dele dizer que o Texas e a Califórnia estão lutando juntos contra o governo. Mas por tudo que ele mostra na prática, fica mais fácil você concluir que o Texas virou Democrata no universo alternativo do filme do que achar que Republicanos e Democratas estão realmente lutando lado a lado contra uma 3ª força.

Falando da qualidade do filme em si, a decisão de situar a história no meio de uma guerra civil americana acho que acabou sendo prejudicial e se tornando uma distração, já que o filme não pretende engajar realmente com ideias políticas; apenas usar isso como pano de fundo para um road movie cujo foco está mais nos personagens e nos desafios da profissão. O verdadeiro tema de um filme é aquele que emerge das ações e dos conflitos vividos pelos protagonistas. Nesse sentido, o tema de Guerra Civil seria os desafios do jornalismo de guerra, e também o "mal da guerra" de forma geral. Mas esse tema não requer que a história se passe especificamente numa guerra civil americana fictícia, resultante da atual polarização política. Se a ação se passasse no Iraque ou na Ucrânia, o conteúdo não mudaria muito. Então há uma falta de integração entre essas duas intenções do roteiro. Fica a impressão que Alex Garland se encantou com sua ideia original de mostrar uma guerra civil nos EUA atual, mas não tinha coragem de escrever um roteiro que expressasse suas opiniões sobre o assunto abertamente. Então ele inventou uma historinha qualquer que se passa no meio de uma guerra civil moderna, e dá a ele a oportunidade de explorar este cenário, fazer uma série de insinuações pelas entrelinhas, mas sem ter que realmente se comprometer.

Ou seja, o filme é dissimulado ao estruturar sua história ao redor do jornalismo, de relações humanas, quando fica claro que é sobre o "pano de fundo" mesmo que Garland queria discutir (Zona de Interesse pelo menos foi mais honesto, deixando óbvio que o filme não era sobre nada além do pano de fundo). Um sinal óbvio é que o título do filme é "Guerra Civil", não algo que enfatiza o jornalismo ou o conflito pessoal das protagonistas. E o pôster, que deve resumir visualmente a essência de um filme, mostra dois atiradores em cima da Estátua da Liberdade — uma cena que nem existe no filme, mas que é extremamente simbólica e política. Por causa dessa desonestidade quanto ao verdadeiro tema que quer discutir, o filme acaba não dando atenção o bastante aos personagens e à suposta narrativa central, a ponto da história funcionar independentemente do interesse ideológico. Como road movie intimista, o filme é superficial, episódico, tem personagens mal desenvolvidos, e os poucos momentos em que ele flerta com uma trama revelam o roteirista frágil que Garland se mostrou em Men (2022) — como na reviravolta forçada na estrada onde a personagem sai pela janela do carro.

Guerra Civil é bem produzido, tem um bom elenco, algumas cenas tensas de combate (introduzindo o "tiro jump-scare"), e em termos de construção de universo, há ideias interessantes, detalhes que dão realismo à situação. Mas, como de costume, Alex Garland pegou um tema que parece ambicioso demais pra sua profundidade como escritor. O filme acaba parecendo o equivalente cinematográfico do "postei e saí correndo" — a pessoa que joga uma frase polêmica nas redes sociais só pra causar, se divertir com a confusão, mas que não pretende de fato elaborar suas ideias.

Satisfação: 4 (Idealismo Corrompido)

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