Estreia notável da diretora Arkasha Stevenson, que só tinha dirigido curtas e séries de TV até agora. O filme não é livre dos clichês irritantes do gênero — as alucinações que só servem pra gerar um jump-scare inútil, os desenhos infantis que sempre revelam algo sinistro etc. — só que o resto do filme é tão autêntico pros padrões atuais, tão cheio de detalhes e decisões ousadas, que você conclui que esses clichês devem ter vindo mais das exigências do estúdio do que de uma falta de imaginação da própria cineasta. Nas mãos de um diretor mais comum, o filme seria apenas o que ele aparenta ser à distância — mais uma produção de "pedigree" duvidoso que só existe pra lucrar em cima de uma franquia popular. Mas em vez de entrar no piloto automático, Arkasha Stevenson (que me parece acima do material artisticamente) decidiu levar o filme a sério e aproveitar a oportunidade pra mostrar seu potencial como realizadora. A primeira coisa que me chamou atenção foi que o filme traz uma epistemologia bem mais racional que de costume pro gênero. Não há aqui, por exemplo, aquele clima tenebroso constante que dá a impressão que os personagens já sabem desde o início que estão num filme de terror. Há diálogos descontraídos e até bem humorados na introdução, que criam um universo crível e personagens mais fáceis de gostar. A religião também é mostrada por uma lente mais real — a igreja aqui existe dentro de um contexto político/histórico reconhecível, está sujeita a erros, corrupções, as noviças são mostradas como jovens devotas, mas que ao mesmo tempo questionam a igreja em certas áreas, têm vida privada, impulsos sexuais normais etc. O elenco também é um destaque. A protagonista Nell Tiger Free está muito bem, mas me chamaram a atenção especialmente alguns coadjuvantes como a amiga dela interpretada pela Maria Caballero — uma atriz com uma presença marcante e um rosto que a tornaria perfeita para um biopic da Elizabeth Taylor ou da Viven Leigh. Sônia Braga como freira do mal foi outra escolha de casting inusitada que funcionou melhor do que se poderia esperar. O material não permite que a cineasta salve completamente o filme, mas mesmo os clichês ela faz uma espécie de alquimia cinematográfica pra tentar transformar em algo mais interessante. Há uma cena de parto, por exemplo, que acaba não passando de uma dessas alucinações bobas — mas que apresenta uma das imagens mais horríveis (no bom sentido) que vi no terror recentemente. Em outro momento, a personagem precisa ficar fazendo aqueles contorcionismos nonsense de mulher possuída, e a cena poderia muito facilmente ter caído no ridículo, pois dura vários segundos e foi filmada em plano aberto, com poucos cortes, o que evidencia qualquer defeito. Mas a cena acaba funcionando por conta da direção cuidadosa, e se tornando até intrigante do ponto de vista técnico/"coreográfico". Acabei procurando uma entrevista depois com a Arkasha Stevenson pra saber quem era ela, e o que ouvi só confirmou minha impressão de que o filme, apesar dos problemas, tinha sido feito por um cineasta mais inteligente e autêntico que a média, com boas premissas cinematográficas (o oposto do que senti quando vi entrevistas com o David Gordon Green depois de O Exorcista: O Devoto).
The First Omen / 2024 / Arkasha Stevenson
Satisfação: 7 (Idealismo Imperfeito)
Nenhum comentário:
Postar um comentário