terça-feira, 23 de abril de 2024

Ibsen, Rand e Tubarão

A peça Um Inimigo do Povo de Henrik Ibsen, escrita em 1882, é provavelmente a obra mais "randiana" não escrita por Ayn Rand que eu já li, e parece até ter sido o protótipo do tipo de história que Rand viria elaborar depois em A Nascente e A Revolta de Atlas, que apesar de serem muito mais complexas e profundas filosoficamente, lembram muito Um Inimigo do Povo em intenção e estrutura.

A trama da peça gira ao redor de um cientista que descobre que um balneário de importância crucial para a cultura e economia da cidade está com suas águas contaminadas e precisa ser fechado para reforma, o que desagrada aqueles que contam financeiramente com o balneário. A partir disso, a peça vai elaborar seu tema central: o conflito entre o homem racional, honesto, íntegro, e os homens guiados por convenções sociais, emoções cegas e ignorância, que acabam comandando a sociedade por estarem em maioria.

Como a peça de Ibsen é crítica em relação a valores importantes da sociedade como religião e altruísmo, imaginei que, assim como no caso das obras da Rand, adaptações de Um Inimigo do Povo para o cinema seriam difíceis de serem feitas. Por curiosidade, acabei assistindo às duas adaptações mais relevantes:

O Inimigo do Povo de 1989, dirigido por Satyajit Ray (o cultuado cineasta indiano da Trilogia de Apu) transporta a história de seu ambiente original para a Índia contemporânea, e não só é um filme bastante medíocre em estilo, lembrando produções baratas de TV, como também deturpa toda a filosofia da história — transforma o herói num homem mais convencional, moderado, que não faz jus ao título da peça, e reduz tudo a um debate sobre ciência vs. misticismo (fazer uma crítica à religião pelo visto era aceitável na Índia em 1989, mas a crítica que Ibsen faz às massas, à "maioria coesa", esta é totalmente abafada).

O Inimigo do Povo de 1978, com o Steve McQueen no papel de Stockmann, já é bem superior tanto em estilo quanto em conteúdo. Visualmente, a produção te transporta muito melhor para o universo da peça, e as mensagens também são bem mais próximas do texto original. Porém, as passagens que criticam a religião e a "maioria coesa" de forma mais aberta foram amenizadas, especialmente durante o discurso de Stockmann, que não chega nem perto do original em impacto, ainda que não subverta sua intenção básica.

Se a intenção dessas amenizações era tornar a história mais palatável pro grande público, isso não foi o bastante. Ambos os filmes foram fracassos de público e crítica.

Rand é uma figura controversa por inúmeros motivos, então às vezes fica difícil entender o real motivo de suas obras terem dificuldade de serem adaptadas para o cinema e de penetrarem a cultura mainstream. Por isso, Um Inimigo do Povo acaba sendo um bom estudo de caso. Ibsen é um dos dramaturgos mais importantes de todos os tempos, uma figura bem aceita no meio artístico, e a peça defende uma série de valores compatíveis com os de Rand, mas em uma linguagem menos desafiadora, mais acessível, e sem ir a fundo em tópicos como política etc. Se o problema fosse apenas a figura pessoal de Rand e a maneira provocativa com que ela expressava suas ideias, Um Inimigo do Povo estaria livre de qualquer controvérsia. Mas pelo que observei, este não é o caso. Questionar valores como religião e especialmente a "santidade" do povo parece ser sempre um tabu, independentemente de quem você é e da maneira como você o faz.

O enredo de Um Inimigo do Povo só conseguiu encontrar seu caminho para o sucesso no cinema quando passou por uma série de metamorfoses, foi despido de seus elementos mais socialmente incômodos, e teve o antagonista modificado — em vez da "maioria coesa", passou a ser as "elites corruptas": o resultado foi Tubarão (1975), um filme que não é uma adaptação direta, mas que é frequentemente citado como uma modernização da peça de Ibsen.

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