quinta-feira, 25 de julho de 2024

Deadpool & Wolverine

Sabe aquela pessoa que tem um defeito físico aparente, e que quando está em um contexto social, faz piada do defeito antes de todo mundo pra reduzir sua ansiedade? Deadpool & Wolverine é uma manifestação cinematográfica dessa mesma estratégia. O filme fica rindo do começo ao fim de tudo aquilo que é visto como medíocre no cinema da Marvel, tentando fingir que, ao reconhecer o problema, o filme está automaticamente transcendendo o problema. Mas isso é pura enganação. O filme não faz absolutamente nada pra elevar o cinema da Marvel — ele no máximo evita de ser trash como Quantumania ou Thor: Amor e Trovão, mas continua dependendo e investindo nos velhos truques baratos que degradaram a imagem da Marvel esses anos todos: fan-services, multiversos, cameos, clichês etc. O humor autorreferente acaba ganhando uma qualidade triste e detestável — podemos ver o desespero por trás das piadas, e também a falta de honestidade com o público. Por exemplo: o filme debocha da maneira como a Marvel passou a apelar para "multiversos" o tempo todo — mas a premissa básica de Deadpool & Wolverine já não é um apelo para o multiverso?

Talvez seja o filme mais descaradamente dependente de artifícios como fan-services e cameos que já vi — ou seja, de qualquer coisa exceto do roteiro. Os produtores sabem que a história aqui é o de menos, e que seu público não vai ao cinema para "ver filmes" de fato, e sim para engajar com a "comunidade", se atualizar com os novos "conteúdos" produzidos por suas empresas e "influencers" favoritos. As quebras de quarta parede e constantes piadas internas fazem D&W parecer uma mescla estranha de cinema com conteúdo de rede social, refletindo o que discuti no texto Filmes Autorreferenciais e a Descrença na Ficção.

Eu não dei uma risada o filme inteiro. Sempre achei o humor da franquia Deadpool destrutivo, "anti-idealista", além de simplesmente fraco, mal escrito — a ideia da terra deserta pra onde vão os personagens descartados até podia ter gerado boas sacadas, mas aqui vira uma variação preguiçosa e sem graça daquilo que foi muito melhor explorado em filmes como Tico e Teco: Defensores da Lei (2022) ou até Divertida Mente. Os banhos de sangue Tarantinescos ao som de "música pop engraçadinha" continuam sendo usados incessantemente como se fossem sinônimos de originalidade e "ironia inteligente". E quando o filme dá uma pausa nas piadas (afinal, Deadpool não é literalmente uma comédia) e arrisca expressar algum valor "positivo", ele revela de onde vem a malevolência do humor, partindo pro velho culto ao auto-sacrifício, aos sofredores, a todos os não-herois entre nós etc.

Deadpool & Wolverine / 2024 / Shawn Levy

Satisfação: 1

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo

Filmes Parecidos: Guardiões da Galáxia Vol. 3 (2023) / O Esquadrão Suicida (2021)

16 comentários:

Dood disse...

O Deadpool é o arquétipo do anti-herói elevado à enésima potência, a ponto de tudo ao seu redor também ser elevado a isso. Então, é um universo anti-heróico com um anti-herói. Nem mesmo os fãs mais antigos da Marvel apreciam o personagem. Lembro sempre de um conhecido acompanhando uma saga da Marvel. Quando há uma saga, todas as edições dos personagens trazem uma parte dessa história. Então, você tem que comprar o gibi do Homem-Aranha, Capitão América etc. para acompanhar toda a saga. Lembro desse conhecido escolhendo revistas pela capa, procurando aquelas que continham informações da saga corrente, e quando pegou uma capa específica, ele disse: "Eu vou ter que ler Deadpool?" Tamanha é a falta de apreço que o pessoal da velha guarda tem pelo herói.

O Deadpool consegue ser mais caótico que o Esquadrão Suicida, e em certos pontos, do mesmo nível do Lobo. Mas sabe aquele personagem feito só para avacalhar o tempo todo, sem uma história coesa, que se sustenta apenas por fanservice? Esse é o Deadpool. Ele só serve para ligar o modo Garth Ennis, de adolescente revoltado. Nada do que ele faz é relevante, é só "foi mal, tava doidão". O que você lê dele é tão irrelevante que não justifica a agitação em torno de um produto cinematográfico dele. As pessoas estão curtindo porque ele é culturalmente visto como o famoso anti-lacração (pelo menos é o que dizem desse filme até o momento), mas, no embalo, ele acaba sendo anti-tudo e, no final, não é nada.

E olha que eu gostava do personagem, mas sabe aquele tipo de personagem que você gosta por um momento e não tinha motivações concretas para gostar tanto assim. Pra mim é o Deadpool.

Caio Amaral disse...

Ola Dood! Pelo visto, o sucesso dos filmes acabaram dando ao personagem uma estatura maior do que ele tinha antes só nos quadrinhos né?

Pensando em arquétipos, vejo o Deadpool como um "trickster". E há tricksters no entretenimento que acho divertidos, como o Pernalonga, Pica-Pau, Ferris Bueller, Groucho Marx etc. O problema de Deadpool pra mim é que 1) o filme fica em cima do muro na questão da comédia - ele às vezes é sentimental, quer levar a sério a ação e fazer com que a gente se preocupe com o personagem num nível dramático/sentimental, algo que um filme dos Irmãos Marx não faria, por exemplo. E 2) Deadpool é um trickster de má índole, que reflete essa mentalidade de adolescente niilista revoltado que você citou.. não se trata de um espertalhão benevolente como os que citei, cuja graça vem da maneira criativa e surpreendente (e leve!) com que eles superam os vilões. abs!

Dood disse...

Exatamente: o Deadpool não é um trickster bem-intencionado. Não é como os arquétipos que você menciona, e ele não chega a ser um paspalho anárquico como o Lobo da DC - um caçador galáctico de recompensas insano, mas que tem o mínimo de bom senso e respeita figuras idealistas desse universo, como o Superman. Até porque os dois já tiveram embates.

Na verdade, os filmes incentivam o engajamento do normie: fãs que não são tão conhecedores das HQs, que não acompanham as sagas e não sabem dos clássicos embates e afins. O cara vai em busca de um entretenimento frugal, e ele não vai lembrar desse filme depois.

Eu estava conversando com um criador de conteúdo de games que estava criticando o último Mortal Kombat, que está colocando personagens de outros universos sem pensar no contexto do jogo: estão colocando o Homelander (Capitão Pátria de The Boys), Omniman da animação/HQ Invincible, Pacificador do Esquadrão Suicida, etc. Personagens de universos que não cabem ali. Porque há justamente uma normatização do universo nerd - todo normie se diz nerd e se volta para o "consoomer" - consumir por consumir. Não se pensa em qualidade, mas em quanto dinheiro se pode arrancar desse público. Mesmo que se use da guerra cultural para isso. O Deadpool é uma peça usada para isso.

Caio Amaral disse...

Lobo da DC acho que ainda não conheço..!
Mas tudo isso é reflexo dessa industrialização total do cinema né.. associada às tendências anti-idealistas da cultura.

Dood disse...

A fragmentação dos personagens da Marvel entre diferentes estúdios (Sony, Fox e Disney) criou uma dissonância significativa em relação ao que é estabelecido nos quadrinhos. Na SDCC desta semana, vimos Robert Downey Jr. vestido como Doutor Destino (Dr. Doom). Somente agora, após a aquisição da Fox pela Disney, que detinha os direitos do Quarteto Fantástico e seus vilões, estão correndo atrás desse vilão para os filmes. Isso é preocupante, pois na Marvel, o vilão de um herói muitas vezes é a peça central de uma equipe, como Lex Luthor é para a Legião do Mal, adversária da Liga da Justiça.

As histórias com o vilão Dr. Destino são até bacanas, girando em torno de sua posição como ditador da Latvéria e suas relações com personagens como o Pantera Negra, que originalmente era um vilão nos quadrinhos. Como fã, antes eu vibrava com essas novidades. Hoje, sinto-me apático e vejo isso como um fanbait frívolo. Prefiro me concentrar nos quadrinhos, especialmente nas boas sagas, pois temo que a cultura atual influencie pesadamente no produto final dos filmes.

Caio Amaral disse...

Eu vi que fez muito barulho esse anúncio do Robert Downey.. Não entendi se ele vai interpretar um personagem totalmente desconectado do Homem de Ferro... ou se vão usar o multiverso pra justificar essa escalação... de qq forma, fica óbvio que a prioridade aqui não é consistência narrativa, integridade artística etc.

Dood disse...


A aparição de Robert Downey Jr. como Dr. Destino é a Marvel/Disney tentando desesperadamente reconquistar a fanbase: "Olha, vamos trazê-lo de volta, numa nova saga com um vilão icônico do nosso universo. Nos dê uma chance, POR FAVOR, EU IMPLORO!" Após produções como "The Marvels", "Thor: Love and Thunder", "Quantumania", entre outras, que não agradaram, parece que estão tentando mais um bait.

Depois que acabar o hype do Deadpool, que só serve como ponto de discussão na polarização nerd entre os "Lacrates" (muitos neo-nerds que cresceram com esse MCU) e os "Nerdolas" (o nerd mais conservador, que prefere o material original das HQs, como eu), a Marvel vai precisar de algo realmente novo. Eu, pelo menos, não caio mais nessa.

Caio Amaral disse...

Um "bait" foi o que me pareceu também.. Só que minha queixa não seria do tipo: "Vingadores 1, 2, 3 e 4 foram clássicos do cinema, mas agora a magia acabou".. pois pra mim, a maioria desses filmes já pareciam baits na época também. Então vejo como mais do mesmo... a única diferença é que agora eles têm menos star power com a saída de muitos atores. Mas em termos de roteiro, produção, direção, não acho que seria difícil eles fazerem algo no mesmo padrão dos anteriores.

Hehe, não sabia que tinham dado nome já pra essas facções do universo nerd.

Dood disse...

Sendo sincero, só assisti "Vingadores 1" e "Vingadores: Era de Ultron". Fiquei no hype de "Guerra Infinita" e "Ultimato", mas não corri atrás para ver. Da mesma forma, só vi o primeiro "Guardiões da Galáxia" e o primeiro "Homem-Formiga". Nunca vi os filmes do Capitão América nem do Thor, embora falem bem de "Capitão América: Soldado Invernal". Vi a trilogia do "Homem de Ferro", mas só gostei realmente do primeiro, talvez pela empolgação da época.

Como nerd e fã de quadrinhos, acompanhei alguns filmes de heróis sempre que podia, mas com a renda curta nos últimos tempos, não vi todos. Também não vi os últimos filmes do Superman e do Batman porque a estética me parecia esquisita. Gostaria de ter visto o primeiro filme da Mulher Maravilha.

Meu receio com esses filmes é que, com o passar dos anos, muitas dessas produções serão esquecidas. Num podcast de um jornalista que acompanho, ele chamou a década de 2010 de "década perdida", e há um fundo de verdade nisso. As poucas produções do MCU que assisti, vi sabendo que seriam uma visão diferente do material original devido aos direitos dos personagens estarem com estúdios diferentes. Por exemplo, o Dr. Destino é um vilão importante para o universo Marvel original (HQs) e está atrelado ao Quarteto Fantástico, então não poderia ser utilizado pela Disney na época em suas produções. Eles usaram o que tinham, e não um material memorável para quem realmente curte as HQs. Claro que os fãs ficaram encantados, mas mais por ver seus heróis na tela do que pela qualidade das histórias.

A Disney quer repetir isso "ad infinitum", mas devido à recepção das produções anteriores, está mais comedida. Há receio com as substituições que ela fez de alguns personagens, como Thor Mulher e o Capitão América sendo substituído pelo Falcão, um personagem negro. O novo filme do Capitão América foi até adiado e está sendo refilmado. Até lançaram os brindes do McDonald's em maio deste ano, mas a Disney recuou seu lançamento, provavelmente pela rejeição nas sessões de teste. Ele é chamado pelos nerdolas carinhosamente de "Capitão América Sem Soro".

Tudo isso faz parte de uma guerra cultural explícita no entretenimento. Eles precisam chamar atenção para algo. Usar dois ícones, Dr. Destino devido ao seu protagonismo nas HQs da Marvel e Robert Downey Jr. devido ao seu marcante Homem de Ferro no MCU, é uma cartada final da empresa. A Disney está desesperada. Só cai nessa quem quer.

Caio Amaral disse...

Eu acho bem estranha essa questão dos direitos de personagens do mesmo universo ficarem nas mãos de empresas diferentes.. Outro dia estava vendo trechos daquele vídeo épico da menina do YouTube que visitou o "hotel Star Wars" na Disney.. e só aí que fiquei sabendo que essas terras de Star Wars na Disney não podem representar personagens clássicos como Luke Skywalker, Darth Vader, Princesa Leia, por causa de conflitos de licenciamento. Quer dizer, eu entendo que legalmente esses conflitos possam ocorrer.. O que eu acho bizarro é que, se eu fosse a empresa, meu raciocínio seria: "vou tentar conseguir os direitos, se não, não vai dar pra construir a atração". Não me ocorreria a 3ª possibilidade: "vou construir a atração mesmo assim, mas sem todos os personagens principais"! Mas pelo visto, Bob Iger e CEOs do tipo são muito mais "criativos" que eu nos negócios, rsss.

Dood disse...

O caso do George Lucas aparentemente é que a Disney tem que pagar uma porcentagem pelos personagens clássicos: Luke, Han Solo, Vader, Leia e afins. Por isso, eles insistem em forçar novos personagens e séries como Accolade (quero dizer, Acolyte). Querem evitar ao máximo pagar esses custos, mas nada do que eles fazem tem alma ou criatividade, aproveitando o universo da franquia. Ninguém que está lá parece se importar em fazer algo realmente coerente. E depois da entrevista dos criadores da última série baseada nesse universo, parece que eles não fazem tanta questão assim. Eles compram as franquias, aceitam os termos, às vezes nem tudo pode ser usado (vide Marvel), mas eles querem lucrar assim mesmo. É desastroso analisar essas coisas mesmo.

Caio Amaral disse...

Pois é... é um desafio ser um defensor do capitalismo diante desse povo hehe.

Dood disse...

A questão não está necessariamente ligada ao capitalismo em si, pois este é um sistema de negociação livre que preza pela liberdade de escolha. As pessoas aceitam as condições porque querem e usam os bens adquiridos da maneira que acham melhor. O problema está na intenção por trás dessas negociações. Quando Stan Lee vendeu os personagens da Marvel, ele sabia o que estava fazendo, assim como quem comprou. Maus negócios podem resultar em "elefantes brancos" ao invés de agregar valor. O que pode parecer um bom negócio a curto prazo, a longo prazo pode se revelar um problema, dependendo das circunstâncias.

Stan Lee não foi um santo, pois ele não criou todo o universo Marvel sozinho. Ele foi co-criador de muitos personagens, dando apenas uma pincelada aqui e ali. Sua visão de mercado era voltada para a expansão, algo que os outros não tinham. George Lucas, por outro lado, criou uma condição de continuar ganhando após a venda, capitalizando o legado dos personagens que ele criou. Provavelmente, ele vendeu o universo e o conceito, enquanto quem comprou busca lucro acima de tudo, acreditando que pode criar algo melhor ou de igual sucesso.

Esse empenho em forçar qualquer coisa, utilizando ideologia e marketing para emplacar, revela um problema humano ou de uma ideologia que subverte a sociedade. Não é um sistema econômico que resolverá questões éticas e morais; pensar assim é como achar que um martelo pode resolver algo em um procedimento cirúrgico.

Caio Amaral disse...

Sim.. pelo meu histórico ideológico, achei que entenderia o fundo de ironia no comentário hehe. Ainda assim, não deixa de ser um fato que é mais fácil convencer os outros dos benefícios do capitalismo quando você tem exemplos como Steve Jobs ou Walt Disney. Agora quando a maioria dos homens de negócios que você vê caem pra essa linha Bob Iger / Kevin Feige.. os benefícios são menos óbvios. É aquela coisa da pessoa saber aceitar que não é porque algo é repulsivo ou até imoral que é uma boa ideia proibi-lo por lei, defender o intervencionismo etc.

Dood disse...

Pior que eu entendi: é que eu debato tanto com pessoas, principalmente de esquerda, que criticam o capitalismo e que isso sai instintivamente. E meu gatilho: imagina você crescer odiando uma coisa e descobre que isso é uma sabotagem que fizeram. Eu me refinei muito, e você é um dos responsáveis por isso.

Falando em Walt Disney recomendo o canal Leone Freq ele conta um pouco dessa era da Golden Age dos desenhos, fala de Tex Avery e de Walter Lantz, esse último tem uma história de carreira tão boa quanto o Disney.

Caio Amaral disse...

Hehe que bom 🙏

Vou dar uma checada no canal. Não sei nada sobre a vida do Walter Lantz, apesar da minha assinatura ter sido subconscientemente inspirada na assinatura dele que aparecia no desenho do Pica-Pau! rss. abs.