Temos visto cada vez mais pessoas realizando trabalhos artísticos com o uso da IA. Isso vem levantando uma série de discussões a respeito do papel da arte, mas nenhum debate pode ser satisfatório se ignorar um princípio central: certos produtos humanos — como a arte — não são meramente utilitários. Não são como um pedaço de pão, que serve apenas para matar a fome, sem que importe de onde ele veio, quem o preparou etc. Certos produtos têm valor porque refletem as virtudes e qualidades pessoais do criador — seu interesse não está meramente no objeto à sua frente, mas também no que ele revela a respeito da pessoa que o criou.
Fazendo uma analogia, o valor de uma fotografia não está apenas no prazer que as cores e formas que ela revela provocam nos seus olhos. Boa parte do valor está na suposição de que aquela imagem representa algo que existe no mundo real. Se você adultera totalmente a foto, ela perde esse valor documental. Já quando vemos uma obra de arte — uma pintura, por exemplo — não assumimos que ela reflete uma realidade física exata. Seu valor depende de ela refletir outro tipo de realidade — a do artista: o que inclui não apenas suas ideias, visões e valores, mas também suas capacidades e talentos.
Frequentemente, somos inspirados mais pelas virtudes do artista representadas em uma obra do que pela "mensagem" em si ou pelo conteúdo. Pense nos seus artistas favoritos e no quanto o fato de eles demonstrarem habilidades extraordinárias em seu trabalho pesa na sua admiração. O Davi de Michelangelo teria grande apelo se tivesse sido feito por uma impressora 3D, e tivéssemos que avaliá-lo apenas pela ideia do criador, e não também pela execução?
Pra mim, esta é a discussão central no que diz respeito à IA e à criatividade. As virtudes e habilidades reais do artista importam? Ou apenas a intenção, a visão geral? Quem não vê problema em criar arte com IA parte do princípio de que apenas a visão geral conta — o “gosto” do artista — pouco importando suas reais capacidades. Já para quem acha que a arte deve refletir os talentos do artista, criar com IA parece uma espécie de fraude — quebra o contrato implícito que sempre existiu entre artista e espectador: o de que a obra reflete tanto a visão quanto as habilidades do criador. Pra esse espectador, apreciar arte criada por IA é como estar na posição de um professor corrigindo redações escritas com o ChatGPT: tentando se concentrar apenas na intenção e nas decisões amplas que governam o texto, mas sem ter como saber se o aluno entendeu a matéria, se sabe escrever ou se é semi-analfabeto.
Acho que é um engano pensar que o artista que cria com IA será admirado pelo seu “dom” de criar prompts, da mesma forma que um diretor de cinema é celebrado como o autor de um filme, mesmo dependendo de outras pessoas para executar sua visão. A partir do momento em que você introduz a IA no jogo, o espectador já não confia mais na autenticidade plena da obra. Ele não tem como saber se a IA está apenas executando as ideias originais do autor ou se está “tendo ideias” por ele (copiando de outras obras). Assim, a arte deixa de refletir a realidade interna do artista e perde um de seus atributos mais essenciais — como no caso de falsificações.
Não acho que a IA generativa deva ser banida. Mas acho que se tornará crucial para o espectador saber quando um trabalho criativo foi feito com a ajuda de IA — e o que exatamente a IA fez (por exemplo: se um roteirista a usou apenas para correções ortográficas, se a usou para criar diálogos ou se a premissa inteira do filme foi baseada na IA).
Se o mundo começar a ser inundado de arte criada por IA e o devido crédito não for dado, será como viver em um mundo distópico no qual não confiamos mais em fotos, vídeos e em nenhuma forma de registro. Nada mais será um reflexo confiável da realidade ou das capacidades de ninguém. A pessoa que quiser ser apreciada por suas reais capacidades terá que achar formas de provar que não usa IA — da mesma forma que cantores talentosos hoje precisam divulgar que não usam autotune e não fazem playback em shows, pois o normal é o público já desconfiar. A IA é o "autotune do cérebro" — uma ferramenta que permite que você pareça virtuoso em inúmeras atividades nas quais não é. Portanto, devemos usá-la com prudência e evitá-la quando a presunção do público for a de que aquelas são as suas habilidades.
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