segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Ruído Branco

Noah Baumbach sempre me passou uma visão lúgubre da vida, mas seus dramas focados em conflitos pessoais e relacionamentos costumam ter bastante riqueza psicológica, o que torna as obras proveitosas em algum nível. Aqui, ele tenta algo diferente; um filme interpretativo, alegórico, onde o foco são as críticas à sociedade, as ideias filosóficas, e não os personagens. Assim, ele eliminou o elemento humano que era o que salvava seus filmes do completo vazio espiritual.

O filme mostra uma família americana de classe média nos anos 80, e tem uma série de elementos que remetem a produções do Spielberg, sucessos de bilheteria da época, mas diferentemente de filmes que fazem isso por um senso de nostalgia, o filme recria esse ambiente apenas como um alvo pra suas críticas. Assim como muitos filmes usam os anos 50 como um cenário ideal pra fazer uma crítica ao "american way of life", os anos 80 são outro período que cineastas adoram pegar pra fazer um ataque aos EUA, justamente por ser um período no qual o otimismo americano estava em pleno vigor.

O filme começa fazendo uma análise esperta, porém cínica, da violência nos filmes americanos — sugerindo que acidentes de carro no cinema são na verdade otimistas, pois foram transformados numa espécie de espetáculo acrobático por Hollywood, um feito admirável do ponto de vista técnico, que inspira o público mais do que choca. É uma análise que eu poderia concordar totalmente, exceto que o tom cínico indica que na verdade o filme pensa o oposto disso. Ele traz diversas outras críticas à "cultura do espetáculo", chegando a traçar um paralelo entre Elvis Presley e Adolf Hitler pelo fanatismo que ambos conseguiam inspirar no público. Tudo o que simboliza a cultura ocidental é condenado pelo filme — entretenimento, o "consumismo", supermercados, alimentos industrializados, petróleo, pessoas que fazem dieta, pessoas que comem carne, remédios psiquiátricos, televisão, e até mesmo a igreja, que o filme parece colocar na mesma categoria de supermercados — no fim, tudo não passa de uma forma de "escapismo", da tentativa fútil do ser humano de evitar a morte, de buscar falsas esperanças num universo essencialmente maligno e sem sentido.

Infelizmente, o filme se resume a criticar, a expressar seu desprezo pelo mundo, pelo ser humano, pela busca da felicidade, mas não dá nenhum argumento pra explicar por que ele acha essas coisas condenáveis, e qual seria a alternativa, uma forma melhor de viver. Por eliminação, podemos sempre concluir que é o socialismo, mas o filme prefere ser sutil nesse ponto. Até temos as TVs de fundo com mensagens políticas indiretas, as menções irônicas a Ronald Reagan, mas mesmo nesses detalhes o filme é mais discreto que o normal, como se ele estivesse se dirigindo a um público tão "entendido", que é como um casal que está junto há décadas e já consegue se comunicar por códigos — basta um leve aceno com os olhos pro outro entender exatamente o que ele quer dizer. (Lembro quando pequeno que saquei algo sobre os adultos: sempre que eles estavam rindo, usando termos misteriosos, e eu não entendia a piada, era porque se tratava de sexo. Algo parecido ocorre na arte: quando um filme é meio sem pé nem cabeça, parece esconder uma série de mensagens obscuras nas entrelinhas, o assunto normalmente é socialismo.)

Em vez de uma crítica inteligente, desafiadora para os tempos atuais, o filme acaba parecendo intelectualmente datado (a cena dos créditos finais consegue ser mais vergonha-alheia que o filme brasileiro 1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras) falando de pautas que talvez fossem quentes quando o livro White Noise foi publicado em 1985, mas que hoje é como falar em buraco na camada de ozônio, "bug do milênio" — discussões que não devem empolgar nem aqueles que concordam com a visão de mundo básica do autor.

White Noise / 2022 / Noah Baumbach

Satisfação: 2

Categoria: AI

Filmes Parecidos: Armageddon Time (2022) / Pequena Grande Vida (2017) / Não Olhe para Cima (2021)


4 comentários:

Leonardo disse...

Olá, Caio.

Curioso tu mencionar a sacada com os filmes que escondem o socialismo de forma obscura. Também notei algo parecido no ensino regular. Alguns pacientes e pais me pedem ajuda para responder certas questões de história ou de filosofia de ensino médio. Porém, a elaboração das questões soa algo de nível doutorado. O que acontece é que parece que os professores sabem que os alunos já estão espertos o bastante para rejeitar a mensagem deles se eles usarem palavras diretas como socialismo, comunismo e capitalismo. Então como ‘workaround’, criam perguntas gigantescas com definições complexas e confusas como esse tipo de coisa aqui (tem vários, mas este textinho aqui achei especialmente interessante e como gostei da piada, vou compartilhar contigo):

-”As lógicas de consumo ocidentais da era da pós-verdade promovidas pelas nações e povos mais desenvolvidos, logo, opressores, e que não responde às necessidade dos mesmos povos nem das massas internacionais, apesar de seus avanços tecnológicos e aparente conforto que nunca é obtido pela classe não-dominante” - na pergunta significa Capitalismo;

-”O pensamento histórico-crítico das coletividades que foi subjugado pela intervenção do binômio produção-consumo e que interfere no levante social” - aquele conceito de alienação de Marx;

-”A perda de subjetividade cultural após o advento da máquina a vapor causou padronização das experiências do viver social. As lógicas de consumo… [primeiro parágrafo ali] …não-dominante, tornou o consumo cultural não-consciente, seriado e importado como um produto enlatado dos próprios controladores. [...] o consumo midiático é prejudicial à toda subjetividade social enquanto populações menos-favorecidas são introduzidas desde jovens às lógicas de consumo. [...] cabe a pergunta: como o estado democrático de direito pode exercer sua função representativa das coletividades e pensar junto com os movimentos sociais uma nova forma de empoderar a sociedade sobre a cultura e a educação sem que as lógicas de consumo as dominem?” - Ditadura… a resposta é ditadura. A questão toda racionaliza a necessidade de totalitarismo, pois a cultura americana de consumo destruiu a cultura nacional, impediu revoluções armadas e as novas gerações estão mais interessadas em celulares e em redes sociais do que na ditadura do proletariado.

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo, kkk... bem isso mesmo, é como se fosse um segredinho sórdido que só pudesse ser comunicado de forma contorcida. Na época da ditadura, achava-se que os artistas da mpb camuflavam as mensagens nas músicas por uma questão de proteção.. mas mesmo sem ditadura, os rodeios ainda parecem necessários rs.

Anônimo disse...

Ruído Branco se tornou um pouco mais atual agora, infelizmente. Na região onde o filme foi feito em Ohio houve no início deste mês um descarrilamento ferroviário que ocasionou um grande vazamento de produtos químicos perigosos, muito similar ao descrito no livro e no filme.

https://www.cnnbrasil.com.br/saude/desastre-quimico-nos-eua-moradores-vivem-cena-de-filme-apos-descarrilamento-de-trem/

Pedro.

Caio Amaral disse...

Sim, impressionante ter sido no mesmo estado.. teve até uma alta na procura pela crítica do filme nessa última semana rss.