quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Avatar: O Caminho da Água

James Cameron sempre foi um dos meus cineastas favoritos, mas como comentei na crítica recente, Avatar é um filme que, apesar dos méritos técnicos, tem uma série de fraquezas narrativas que foram ficando mais evidentes pra mim em revisões, e essas fraquezas continuam presentes agora na parte 2.

Em termos de CGI, a produção é obviamente um espetáculo, e até supera o primeiro em realismo e em quantidade de detalhes. Mas eu não sou o tipo de espectador que se deslumbra demais com efeitos gráficos, a não ser que estejam atrelados a um ótimo roteiro. E em termos de história, personagens, trama, mensagens, O Caminho da Água é mais problemático que o primeiro filme.

Ato 1:

O filme começa nos mostrando o que houve com os Sully desde os eventos da parte 1. Agora eles têm uma porção de filhos, e demora um pouco até a gente se familiarizar com os rostos, entender a estrutura da família, pois há filhos biológicos misturados com adotivos, irmãos de criação, e no meio disso temos que absorver ainda uma série de detalhes expositivos.

Os Sully estão felizes, tiveram pelo menos uns 15/20 anos de paz, mas agora o Povo do Céu está de volta pra destruir Pandora — um detalhe meio exagerado é que só pra pousar uma das naves (são inúmeras que chegam), os humanos causam uma devastação na floresta que parece 3x mais cataclísmica do que tudo que ocorreu no primeiro filme.

E aqui começam alguns dos meus problemas com o ambientalismo de Avatar, que não quer simplesmente passar uma mensagem positiva de preservação da natureza, mas mistura isso com um certo anti-humanismo; a visão de que o ser humano (e o progresso humano) são como um câncer pro planeta; que evoluímos não através de inteligência, ciência, produção, mas através de crueldade e exploração, e que de alguma forma não fazemos parte da natureza. Gostaria que houvesse um pouco mais de nuance nessa caracterização dos humanos no filme, pois desta forma, Avatar apenas empodera a ala niilista do movimento ambientalista do mundo real, que é muito influente (e perigosa) hoje politicamente.

Esse encanto de Avatar pelo primitivo, pelo não-civilizado, me impede de me envolver com alguns elementos da história. No primeiro filme, os humanos queriam destruir o lar dos Na'vi pra extrair minerais do solo, então pra mim era perfeitamente legítimo eles se rebelarem contra os humanos. Já agora, vemos os Na'vi explodindo trens, atacando tudo que é dos homens, mas não fica claro que os humanos estavam sendo violentos com os nativos em primeiro lugar ou invadindo a propriedade deles. Fica parecendo apenas um vandalismo gratuito, e o filme espera que a gente ache tudo justo, pois os humanos são inerentemente maus.

Por conta dessa rebelião (liderada por Jake), os humanos clonam Quaritch, o coronel linha dura da parte 1, e o trazem de volta com um pequeno exército pra dar um jeito nos "hostis". E uma das grandes fraquezas do roteiro de O Caminho da Água, é que temos um filme de mais de 3 horas baseado numa rivalidade entre Jake e Quaritch que simplesmente não tem carga dramática o bastante. Vejo Quaritch muito mais como um soldado, alguém que segue ordens, do que como um vilão motivado por valores odiosos, alguém que tem um antagonismo pessoal com Jake realmente convincente. Sem falar que este nem é mais o Quaritch original. Apenas um clone, que provavelmente pode ser clonado infinitas vezes caso esta unidade seja eliminada. Então o filme não funciona direito como trama de vingança. O real conflito de Jake é com os humanos. Se ele matar Quaritch, isso não resolverá nem dramas pessoais, nem questões práticas de sobrevivência. Passamos o filme todo aguardando esse grande combate no fim, mas sabemos que isso não será realmente significativo no contexto geral da saga.

Ato 2:

A parte do filme que mais gostei foi quando os Sully se mudam para o arquipélago e somos apresentados ao mundo das águas. Um detalhe que me parece um furo de roteiro nesse ponto é o fato de Jake colocar em risco o Povo do Recife indo se esconder no meio deles, sendo que uma das justificativas pra ele ter ido embora da floresta era justamente o perigo que sua presença representaria para os Omaticaya — uma atitude que não faz Jake parecer especialmente brilhante ou responsável. Mas é um momento agradável do filme onde o CGI brilha, os personagens podem se divertir um pouco, e Cameron exibe suas criações novas pro universo de Pandora (assim como no original, o "planeta" às vezes me gera mais encanto que seus próprios habitantes).

Mas aí nós vamos pro 2º ato do filme que é extremamente caótico narrativamente. O conflito com Quaritch (que já não é tão forte) é deixado um pouco de lado, e o filme passa a focar nos dramas familiares, nos conflitos dos Sully com o Povo do Recife, e se perde em uma série de subtramas que parecem totalmente dispensáveis.

A falta de protagonista ajuda esse miolo do filme a ficar sem forma, pois a história fica saltando de um personagem pro outro, de um drama pro outro, sem nenhum senso de hierarquia.

Um dos dramas explorados é o bullying sofrido pelos filhos de Jake e Neytiri no novo lar, mas o desenvolvimento disso é tão clichê quanto o de qualquer seriado de high-school. O forte de Cameron nunca foi diálogos, sutilezas de caracterização, e Pandora deve ser um universo confortável pra ele enquanto roteirista, pois agora ele só precisa lidar com povos "simples", que falam frases genéricas, vivem conflitos sempre muito básicos e universais (aquela caricatura que Hollywood sempre fez de estrangeiros).

Outro drama é o da filha Kiri (Sigourney Weaver) que parece meio "brisada" o filme todo. Ela sofre por se sentir diferente de todos por ter uma conexão especial com a natureza — mas é um conflito que pra mim não faz o menor sentido, considerando que todos os habitantes de Pandora têm uma conexão mística com a natureza.

Sabendo que as plateias são segregadas hoje politicamente, muitos blockbusters adotam a tática de andar numa corda bamba, e dar "biscoitos" pros dois lados pra ter um público mais amplo (o que costuma resultar em dois públicos levemente insatisfeitos). Então pra contrabalancear o ambientalismo e os temas mais de esquerda da história, temos aqui uma ênfase em valores familiares, no retrato de uma família nuclear tradicional que deverá apaziguar o público mais conservador. Mas pelo visto, uma família nuclear saudável pro filme é uma onde o pai está sempre dando uma dura nos filhos, impondo sua autoridade, sendo rígido, mesmo quando suas atitudes são totalmente injustas.

Jake já não era um herói muito carismático no primeiro filme, mas aqui ele está ainda menos gostável, principalmente pelas atitudes questionáveis em relação aos filhos, por ser submisso demais ao Povo do Recife, e por estar sempre preferindo se esconder e fugir das batalhas em vez de resolver o problema.

Neytiri eu sempre achei uma personagem meio irritante. Enquanto Jake ainda tem um pouco do humano que ele já foi, ela é alguém que devemos admirar por ser puro instinto, pura "raça", não ter sido tocada pelas impurezas dos homens. Ao contrário de heroínas antigas de Cameron como Ripley, que se guiavam pela razão, Neytiri encarna uma romantização do homem primitivo: ela ruge, vira bicho quando ameaçada, sabe que medicina ancestral é melhor que ciência moderna, não confia em quem não seja de sua tribo, e tem uma aversão (meio suspeita moralmente) até ao Spider por conta de sua raça, apesar dele ser alguém que cresceu no meio de seus filhos.

Spider, aliás, é outro personagem problemático. Primeiro porque ele está sempre semi-nu na tela, o que se torna uma distração (e o fato de ser um ator tão jovem cria um incômodo no estilo "Lagoa Azul" onde você não tem certeza do quão apropriado é sexualizar um corpo desta idade). Mas fora isso, incomoda a falta de posicionamento do personagem. Ele está sempre tendo atitudes que parecem traiçoeiras em relação aos Sully, mas no minuto seguinte muda de atitude e está de novo do lado certo. A gente nunca sabe se deveria ou não estar gostando dele. A câmera tenta explorar o máximo do carisma do ator, mas faz isso em momentos onde ele está sendo duvidoso moralmente, o que cria dissonância sempre que ele está em cena. Não fica claro qual o seu arco dramático; se a ideia do filme é a de um jovem sendo seduzido pelo "lado negro da foça", ou se ele está apenas sendo esperto e fingindo ser amigo dos humanos pra ganhar tempo.

Pra mim o ponto baixo do filme é quando a história começa a explorar a amizade de Lo'ak com a baleia (Tulkun). Parece o tipo de coisa que você vê nas Cenas Deletadas do DVD e entende por que não entrou no corte final. Não só a baleia fala, divide com Lo'ak seus traumas do passado, como os dois se conectam por serem ambos "outcasts" (Cameron parece ter percebido que o público atual se conecta mais com Heróis Envergonhados do que com personagens excepcionais, pois faz vários acenos aqui aos "excluídos", aos "diferentes", algo que não era comum em sua filmografia).

O filme salta de cenas desnecessárias como essas pra desenvolver outros conflitos pouco importantes (Kiri tendo ataque epilético, etc.), depois tenta de novo nos deixar deslumbrados com a paisagem de Pandora (a essa altura essas cenas já não têm o mesmo efeito), daí volta pra falar dos traumas da baleia, criando um ritmo truncado que dá a impressão do filme não estar caminhando pra lugar algum.

Ato 3:

Depois de muitos rodeios, finalmente Quaritch sai à procura de Jake no arquipélago, e os encontra com uma facilidade surpreendente (a primeira ilha que eles param já é a do povo que está abrigando os Sully; e logo eles colocam um localizador numa baleia que por sorte é a amiga do Lo'ak).

O terceiro ato é pura ação, mas apesar de tudo ser muito intenso e grandioso, não há nenhum Set Piece realmente memorável, o que costumava ser um dos grandes talentos de Cameron. Boas sequências de ação geralmente têm um conceito simples, envolvem poucos elementos físicos, algo visualmente marcante... Mas aqui, em geral temos perseguições complexas envolvendo dezenas de pessoas, com veículos de diversos tipos se chocando, e água espirrando por todos os lados.

Um desvio de trama que acho bem desnecessário nesse início do terceiro ato é toda a caça às baleias no trajeto dos vilões até o arquipélago, que parece ocorrer só porque os donos do barco no qual Quaritch pega carona precisam "bater a meta" e pescar algumas baleias pra justificar a viagem. É uma forma de reforçar a ideia dos homens como criaturas cruéis, mas que não é bem integrada à trama como um todo.

A luta final entre Quaritch e os Sully no barco naufragando parece o sonho que alguém teria ao ir dormir logo após maratonar todos os filmes de Cameron. As ideias parecem recicladas de vários de seus filmes, mas não estão à altura daquilo que já vimos no passado. Temos Neytiri indo resgatar sua filha pequena, que é sugada pra dentro de uma mega-estrutura prestes a colapsar... Mas ele já fez isso muito melhor no final de Aliens, e não tem como competir com aquela sequência. Temos um naufrágio com compartimentos sendo inundados e personagens tentando achar uma saída... Mas nenhum naufrágio vai chegar aos pés do de Titanic. Temos cenas envolvendo afogamento, falta de ar, mas nada será mais angustiante que a cena do submarino de O Segredo do Abismo. Então Cameron não pode ir a fundo em nenhuma dessas ideias. Ele só cria uma edição paralela mostrando um pouco de cada situação, mas não vem com um conceito realmente único para o clímax deste filme.

No fim, Quaritch continua vivo (não acho 100% convincente a atitude de Spider de salvá-lo, até por Spider ser um personagem mal definido), e Jake resolve fugir mais uma fez. Se você for pensar, a espinha da trama não é das mais interessantes, e pode ser resumida assim: os Sully estão vivendo em paz, até que Quaritch volta pra matar Jake; eles tentam se esconder; são encontrados; mas após uma luta, conseguem fugir e se esconder de novo. Os personagens agem apenas por uma motivação negativa — evitar o vilão — mas não buscam nada interessante que irá melhorar suas vidas.

Considerações finais:

A impressão que tenho é que Cameron passou esses anos todos pensando muito mais num novo universo pra mostrar (e em mensagens ambientais pra passar) do que em uma nova história pra contar. Acumulou centenas de ideias a respeito de como tudo funcionaria nesse novo mundo de Pandora (os animais que permitem respirar debaixo d'água, os diversos barcos, os submarinos em forma de siri, o ciclo diário de eclipses, o detalhe da visão das baleias que é amarelada fora da água, talvez pelo "white balance" delas estar ajustado para o fundo do mar — se bem que debaixo d'água elas continuam vendo tudo azul), e tentou inserir todos esses elementos num intervalo de 3 horas, em vez de construir uma linha narrativa forte e coesa primeiro, pra depois ornamentá-la com as ideias de criação de universo que coubessem. O filme foca em conflitos que parecem pequenos demais perto da escala grandiosa da franquia; como se fosse um episódio de novela que apenas desenvolve dramas pequenos em núcleos secundários, mas não faz muito pela trama central.

Apesar da excelência do CGI, não é um filme que acho tecnicamente brilhante do ponto de vista cinematográfico. A técnica que admiro no cinema não tem a ver com qualidade gráfica, mas com a técnica a que Hitchcock se refere quando diz que o que importa num filme não é o que acontece, mas como acontece. Avatar é um filme pra espectadores que se interessam mais pelo "o que" do que pelo "como". Cameron como realizador aqui busca apenas abrir uma janela na parede do cinema e te inserir naquele mundo, mostrar o que está acontecendo de maneira eficiente e grandiosa, mas ele exercita muito pouco seus poderes como contador de história. Em nenhum momento de O Caminho da Água eu me peguei pensando "que enquadramento inteligente", "que uso de música / luz ousado", "que movimento de câmera impactante", "que transição de cena criativa". Pra um filme realmente me estimular, ele precisa funcionar tanto no nível do conteúdo quanto no nível do estilo; as intervenções criativas do cineasta precisam me fascinar tanto quanto a jornada dos personagens. Mas em Avatar, meu lado que aprecia a técnica e a linguagem do cinema não é tão recompensado quanto em outras obras de Cameron.

Ainda assim, O Caminho das Águas tem seus méritos. É uma aventura com um tom mais romântico e Idealista que a maioria das franquias atuais; apesar dos problemas, ela resgata um pouco do espírito do cinema dos anos 80/90, e Cameron mesmo quando não está nos seus melhores dias ainda é muito mais magnético que a maioria dos diretores, pois seus filmes têm sempre bastante imediatismo e presença — num filme de Cameron, mesmo quando o conteúdo não é dos mais ricos, cada segundo na tela conta e parece trabalhado, pensado pra capturar sua atenção naquele instante, eleva as barreiras técnicas, te mostra algo diferente e intenso; algo bem diferente do blockbuster rotineiro de Hollywood, que te proporciona uma experiência de névoa mental, onde tudo é vago, distante e descartável na tela.

Avatar: The Way of Water / 2022 / James Cameron

Satisfação: 6

Categoria: I- / IC

Filmes Parecidos: Duna (2021) / Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma (1999) / Alita: Anjo de Combate (2019) / As Aventuras de Pi (2012) / O Segredo do Abismo (1989)


3 comentários:

Anônimo disse...

Essa idéia de clonar o Quaritch realmente não tem sentido. Um clone é outro indivíduo, embora tenha o DNA do ser original. Um clone não vem com os conhecimentos, as experiências ou as motivações do fornecedor do DNA. No filme "Os Meninos do Brasil" isso era conhecido, e por isso na trama era preciso que os nazistas matassem os pais adotivos dos clones de Hitler na idade certa (a idade em que Hitler ficou órfão na vida real) para tentar reproduzir sua personalidade. Talvez esse novo Avatar tenha imitado aquele filme absurdo do Schwarznnegger, "O Sexto Dia", onde havia uma tecnologia impossível que "escaneava" a mente das pessoas, para implantá-las em clones que já nasciam adultos. Enfim, seria simples e mais lógico arrumar novo vilão para ser o comandante. Mas hoje muitos espectadores parecem aceitar qualquer coisa, infelizmente.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Oi Pedro.. Eu não expliquei em detalhes.. na verdade eles clonam o Quaritch num corpo Avatar/Na'vi (tem o rosto parecido, traços físicos iguais, mas é azul) mas o mais importante é que a corporação tem um backup da consciência do Quaritch que eles implantam nesse corpo. Então ele vem com os conhecimentos e motivações sim.. a questão é que isso dilui um pouco o drama pro espectador.. não tem o mesmo senso de realidade.. a gente não sabe se encara o personagem como um ciborgue com "dados" do Quaritch.. ou como um ser real com a mesma "alma".. E se a consciência do Quaritch tem backup.. quer dizer que o mal que ele representa é imortal teoricamente.. não adianta matar só esse Avatar.. o Sully teria que ir lá na Terra destruir o backup, rss. Abs!

Caio Amaral disse...

Isso não impede você de acompanhar a história, se envolver na ação.. só acho que torna tudo um pouco menos denso.. o principal pra mim é o vilão ser muito superficial, caricato.. não haver um conflito pessoal mais convincente entre ele e o Sully.