quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Priscilla

Um dos filmes mais medíocres e sem razão de existir que eu já vi. Não é sobre a "grande mulher por trás do grande homem"; se a ideia do filme era empoderar alguma mulher, eu saí dele com a impressão (que eu nunca tive antes) que Priscilla Presley era uma garota vazia, superficial, sem personalidade, cujo maior mérito foi ter nascido com a aparência ideal pra posar como uma esposa clichê dos anos 50/60, e que seu casamento com Elvis foi igualmente vazio de qualquer conteúdo.

O filme é muito mais uma tentativa de diminuir Elvis do que de valorizar Priscilla, mas nem isso ele consegue fazer bem, afinal nada que Elvis faz aqui surpreende ou vai além do pacote básico de imoralidades que fazem parte da biografia de qualquer superastro da música (drogas, infidelidades, descontroles emocionais pontuais etc.). Você tem a impressão constante que está tudo caminhando pra algo trágico, que uma verdade terrível está prestes ser revelada, mas nada de significativo realmente acontece. E essa "tensão" (provocada mais pela ausência de coisas na tela do que pela presença) permite que o filme enrole o público por 1h53min com cenas vazias, diálogos superficiais, conflitos repetitivos, caracterizações que oferecem zero insights sobre a psicologia de qualquer um, atuações sem carisma, uma performance digna de Framboesa de Ouro da Cailee Spaeny... tudo passa pois há uma "crítica profunda" sendo feita, como se houvesse algo automaticamente brilhante em menosprezar as conquistas de um homem de sucesso, e voltar os holofotes pra sua esposa subvalorizada, ainda que ela não faça nada de interessante o filme todo.

Sofia Coppola se mostra aqui uma niilista cansada, alguém que até tem um leve impulso de destruir, de atacar virtude, mas que não tem a energia de uma Emerald Fennell, por exemplo, então acaba fazendo tudo de maneira preguiçosa, anêmica, se contentando apenas em adicionar pequenas manchas à imagem de Elvis, mas nada que vá fazer qualquer diferença.

E é com essa mesma energia anêmica que ela dirige o filme. Há diversas cenas e planos que merecem ser estudados isoladamente como exemplos de mediocridade cinematográfica. Sofia não parecia saber que tipo de filme ela queria fazer: se ela queria subverter a forma Hollywoodiana e fazer uma biografia mais desconstruída à la Spencer, ou se ela queria tentar uma linguagem mais formalista, do tipo que requer uma integração cuidadosa de imagem, trilha sonora, montagem etc., pra criar os efeitos desejados e transportar o espectador pra certa "realidade fílmica". Ela fica alternando entre essas intenções opostas, sem nunca se comprometer com nada, resultando em cenas que deixam você se perguntando se o desleixo é parte do conceito ou se é resultado de pura incompetência. Há diversas montagens — uma envolvendo o casal jogando no cassino, outra envolvendo uma viagem de LSD, outras envolvendo apresentações de Elvis — que flertam com uma linguagem mais formalista, só que em vez de se tornarem sequências realmente dinâmicas, com movimentos de câmera interessantes, ritmo, imagens ricas, cortes bem planejados (pense em Scorsese + Cassino ou no próprio Elvis do Baz Luhrmann) você tem apenas algumas escolhas visuais esquisitas que vão nessa direção, mas que não são suficientes pra criar o efeito final. O resultado é como alguém que é convidado pra uma festa à fantasia e, não conseguindo decidir entre ir fantasiado ou ir com roupas casuais, escolhe uma opção intermediária que é a única objetivamente errada.

Se ao menos o filme apresentasse uma visão compreensiva do casamento de Elvis e Priscilla, nos fizesse entender melhor o que arruinou a relação, que conflitos mais fundamentais de valores estavam na base das incompatibilidades entre os dois — ele teria algum interesse, ensinaria algo pro público. Mas o filme não tem nenhuma teoria sobre o que houve. Apenas vemos Priscilla com cara de desiludida em uma série de eventos episódicos que não evoluem pra nada surpreendente (afinal, desde o começo já fica óbvio que existe um abismo emocional entre os dois), e tudo é mostrado por aquele olhar Naturalista distante, superficial, pretensioso, que parece achar que ao recriar cenários, figurinos, músicas da época, e fazer um registro externo da situação, que o significado interno dela se revelará magicamente pro público, livrando o cineasta de ter que entendê-lo.

Priscilla / 2023 / Sofia Coppola

Satisfação: 0

Categoria: AI / NI

Filmes Parecidos: Spencer (2021) / Blonde (2022) / Maria Antonieta (2006)

7 comentários:

Caio Amaral disse...

Oi Leonardo! Não lembro qual era a dificuldade exata que te falei na época.. Mas estava precisando dar uma pausa mesmo pra recalcular a rota, agora que eu tava chegando perto da minha meta inicial (de fazer vídeos consistentemente por 1 ano pra ver no que dava).

Escrever aqui no blog pra mim ainda é infinitamente mais natural do que gravar pro YouTube.. Se eu fosse dessas pessoas tipo o Yaron que produzem 3 horas de vídeo diariamente se divertindo no processo, eu permaneceria lá numa boa, independentemente do alcance dos vídeos. Mas como este não é o caso.. só valeria a pena pra mim continuar lá se houvesse um benefício grande em termos de alcance. No formato atual, eu ainda não vejo um potencial de crescer e de me tornar um canal desses que têm 100, 200 mil seguidores, que conseguem monetizar o conteúdo etc. Ainda não vi um canal de críticas grande que não acabe tendo que ser condescendente com pelos menos 1 das grandes "tribos" de espectadores (geeks, conservadores, progressistas). Se souber de um, me fala..

Mas valeu pelo feedback…! Achei legal também o formato do vídeo do Napoleão, embora seja mais trabalhoso pra editar.

Mary Poppins pode render uma discussão bem mais ampla, pois tem questões que me incomodam um pouco no filme (e em outras histórias infantis de origem europeia) que nunca discuti aqui acho.. Mas o que torna a personagem mais artificial no antigo pra mim, é que ela parece estar performando/fingindo o tempo todo. Fazendo coisas excêntricas pra surpreender as crianças — e não só as crianças: ela é uma incógnita também pros adultos da casa, e até quando não tem ninguém assistindo ela performa pro espectador (conversando com o papagaio do guarda-chuva, por exemplo). Isso cria um certo distanciamento. É uma atitude que me remete àqueles adultos que interagem com crianças exclusivamente na base do humor, do faz de conta… Tipo o "tio engraçado" que tem um arsenal de piadas, truques, mas que nunca tem um momento de sinceridade, não cria real conexão ou intimidade com as crianças. A Mary Poppins de 64 pra mim cai um pouco nesse estereótipo (vejo ela como um Willy Wonka feminino). Enquanto a de 2018 tem um lado mais humano, afetuoso, que vai se revelando ao longo da narrativa (mais próxima de uma Noviça Rebelde). Nós na plateia conseguimos ver uma mulher mais sensível e consciente por trás daquela caricatura. Se quiser, depois posso tentar destrinchar melhor o que causa essa diferença (nem sei se vc concorda que há uma diferença). Acho que vão desde detalhes físicos.. a Emily Blunt às vezes usa figurinos que não são tão caricatos e deixam ela mais natural.. até à maneira como ela interage com as crianças. Na cena "The Place Where Lost Things Go", por exemplo, ela se mostra atenta aos problemas emocionais das crianças, está presente ali no momento, e traz uma solução filosófica/psicológica bem sensível pra ajudar as crianças a lidarem com a ausência da mãe. A Mary Poppins antiga parecia estar sempre numa outra frequência.. sempre cantando, fazendo truques, mas meio desconectada das necessidades das crianças.

Caio Amaral disse...

- Na cena do Rocky, vejo com certeza a música alegre e o voo.. agora não lembro se o treino está servindo pra ele se recuperar de uma lesão, ou alguma dificuldade estabelecida antes.. se a cena surge num contexto de “restauração”, aí acho que seria uma forma de cura tb!

- Eu sempre resisti fazer postagens no blog que não caíssem na categoria de crítica ou de texto teórico formal.. mas gostaria de naturalizar esses posts mais casuais sobre atualidades, cultura, questões estéticas/filosóficas aleatórias etc! Estou preparando alguns já, aliás.

- Usei "formalismo" nesse sentido mesmo de cinema formalista vs. cinema realista, como discuti no vídeo de introdução ao Idealismo.

- Legal que foi ver Godzilla! Eu acho que vc faz bem mesmo em ser seletivo.. Como falei no texto sobre I.A., acho que o cinema hoje está perto daquele estágio lamentável onde a indústria inteira já foi dominada pelos "medíocres", e as pessoas que poderiam fazer algo melhor se sentem repelidas.. quase como um "brain drain".

- Eu nunca li o Journals of Ayn Rand. Tenho um pé atrás, pq é uma coleção de anotações pessoais que ela não pretendia publicar.. Só nesse sentido que seria algo "avançado"; não pela complexidade do conteúdo, mas pq apenas alguém muito imerso no meio objetivista iria ter interesse em ler algo assim. Eu tenho aquele Ayn Rand’s Marginalia, mas me arrependi de ter comprado.. dei uma folheada só, mas não achei interessante ler anotações desestruturadas, fora de contexto.. e me senti invadindo a privacidade dela.

- Sobre o Pen Drive.. fiz a imagem com a Inteligência Artificial do Bing! Não sei há algo intrinsecamente menos "especial" num pen drive do que numa fita cassete ou DVD.. exceto que há algo de lúdico no fato da fita e do disco terem que girar, fazer um movimento pro filme surgir na tela. Mas muito do que tornava essas mídias especiais era tb a caixinha, o encarte.. Mas enfim, nem pensei no pen drive por achá-lo uma mídia atraente, e sim por pensar que a conexão USB seria uma maneira muito prática de ter uma mídia física de amplo alcance hoje, sem exigir que todo mundo compre um novo tipo de player etc. Com os streamings e a facilidade de baixar torrent, hoje ainda fica parecendo algo supérfluo.. mas estou imaginando um futuro onde o torrent tenha sido banido, e vc tenha acesso só ao que está disponível nos streamings.

- Sobre o Mapa de Valores, legal o interesse dos seus pacientes e essa função alternativa que ele ganhou! Vou dar uma olhada nos meus arquivos originais aqui e ver se enxergo uma maneira legal de encaixar os parágrafos no mapa.. Depois nos falamos!

Anônimo disse...

Em Mary Poppins de 1964 era tudo tão artificial que era difícil extrair qualquer lição de vida...

Cinebiografias infelizmente muitas vezes tendem à superficialidade e/ou a visões muito seletivas dos aspectos das figuras abordadas. Um exemplo disso a meu ver foi O Aviador do Scorsese, um filme que até hoje não tive paciência de assistir inteiro, que, além de parecer ainda mais longo do que é, cada minuto parecendo cinco, tende a uma mitificação de Howard Hughes evitando qualquer aspecto controverso da carreira dele.
Pedro.

Caio Amaral disse...

Nossa, não lembro nada disso sobre O Aviador.. pra mim era um filme que enfatizava muito mais as fobias, as paranoias, o TOC, os problemas de relacionamento dele, do que o lado admirável e bem-sucedido. Mas só assisti na época que saiu..

Leonardo disse...

Oi, Caio!

Você havia me falado de algumas dificuldades bem pessoais e me deu valiosas dicas em como superá-las. Mas isso é particular nosso, então vou deixar quieto.

Vi um youtuber falar que ser bom, consistente, virtuoso hoje em dia é pedir para sofrer. A mediocridade e a ausência de esforço que são recompensadas nas redes sociais. Imagino como foi pra ti este ano de vlogs. Tem algum pensamento para o futuro? Voltará a fazer videoclipes e seus curtas?

Infelizmente desconheço canais neutros. Me pergunto como os que são condescendentes vivem seu dia a dia. Será que aqueles youtubers que só falam de quadrinhos pensam em como são inautênticos, rasos, em como seu talento e carisma são desperdiçados? Será que em algum momento eles já se compararam com prostitutas? Será que já quiseram ser sérios mas se sentem mais como reféns de seu público do que como criadores?

Quanto à Mary Poppins, gostaria sim que tu destrinchasse mais as diferenças, que explorasse mais estas histórias infantis europeias. Há anos aguardo a sua análise idealista sobre a Coca-Cola.

Agora que tu tornou explícito, penso que concordo contigo quanto à personagem. Há uma diferença enorme sim entre as duas versões. Sempre tive a impressão de que a Mary Poppins fosse aquela pessoa que alguém descreve fragmentos de memória da infância, consciente de que a memória foi adulterada pela cognição infantil e que aquela pessoa não deve ser assim mesma depois de adulta. Como se o filme fosse uma narrativa do ponto de vista das crianças depois que elas cresceram. Os irmãos adultos, sentados em um almoço de família no domingo, a relembrar fragmentos sobre aquela babá curiosa que uma vez apareceu na vida deles. Quando penso neste Mary Poppins, penso que o filme é sobre o “passado”, tanto em termos de época relativa ao material original, quanto dos envolvidos na produção e até nas emoções que tenta projetar no expectador.
Em 2018, quando vi sua nota 10 no novo Mary Poppins, fiquei incrédulo. Ansiei pelas suas anotações, mas era somente a nota sozinha. Acho que vi umas 4 vezes no cinema. Imagine a briga com meus conhecidos quando eu disse que o melhor filme de 2018 foi Mary Poppins e não Vingadores rsrsrs.

Leonardo disse...

-Quanto ao Rocky, perguntei para ter certeza de que eu estava “calibrado” rsrsrs. Agora eu procuro cenas que lembrem vôo, cura e música em tudo o que eu assisto. De Volta Para o Futuro, por exemplo. Nem sei se encaixa aqui. Na cena do Johnny B. Goode, a insegurança do pai e aquele “complexo de enfermeira” da mãe que são curados. Por consequência toda a vida do Marty presente. E no final aparece um DeLorean voador.
*Só pela curiosidade. O leitor anônimo que lhe perguntou sobre o padrão na postagem Os Intocáveis era eu mesmo. Só optei pelo anonimato. rsrsrs

-Que bom que retornou com suas postagens teóricas. Acredita que sofri Padrãofobia esta semana mesmo? Kkk. Resolvi mudar toda a minha imagem como psicólogo, usar umas roupas mais formais, mais caras, cortar o cabelo comprido, etc. Só ouvi críticas e ataques por entrar no “estereótipo de psicólogo padrãozinho”.

-Eu também prefiro ler as publicações “oficiais” da Rand e depois as aplicações práticas dos objetivistas a assuntos concretos. Pensei em comprar o Marginalia para saber o que ela pensa do Ação Humana do Mises. Mas depois de ler o Ação Humana, imagino que seria bastante óbvio o que ela pensaria.

-Quando eu alugava filmes, os trailers, a apresentação cuidadosa dos menus do DVD (gosto muito dos menus do Indiana Jones) e o aspecto lúdico que mencionou davam uma impressão mais oficial de cinema. Como se fosse o evento de ir ao cinema, mas em miniatura. O filme era mais “filme”. Mais importante do que apenas selecionar qualquer coisa na Netflix. Hoje, até a apresentação dos filmes nos streamings é estranha e tira a importância (não usam os pôsteres oficiais, mas uma cena aleatória, o trailer é um trecho inteiro dublado horroroso, todas as outras sugestões de filmes ao lado, como se fosse a prateleira da locadora, são desinteressantes e não dá vontade de "voltar lá semana que vem", etc).

-Fico agradecido por qualquer sugestão quanto aos parágrafos no mapa. O que eu havia pensado era literalmente jogar no word, imprimir, plastificar e colar na parede ao redor do quadro.

Caio Amaral disse...

Quanto ao Rocky, está calibradíssimo! Em De Volta para o Futuro dá pra pescar esses padrões em algumas cenas.. na cena do DeLorean no fim há uma associação entre voo e final feliz, vitória. É que o que me chama atenção em certos filmes, e que me levou a fazer o comentário original na crítica de Intocáveis (legal que foi você - acabou sendo citado indiretamente no livro!), é quando um único personagem ou evento que surge na vida do protagonista traz todas essas coisas.. Acho que eu tava querendo quase que inventar um sub-gênero de filme, ou uma sub-categoria da História Idealista #1: "personagem gostável desiludido tem sua vida transformada positivamente quando figura "x" surge em sua vida trazendo voo, cura e música alegre", rs. Se você começar a abstrair demais, daí claro, qualquer trilha sonora alegre em um momento positivo da trama será um aspecto deste padrão; qualquer casal que briga e faz as pazes terá uma forma de "cura". Daí fica mais vago, ainda que possam ser manifestações isoladas desses valores.

Que bom que entendeu o sentido mais amplo da "padrãofobia"; estava com receio das pessoas fixarem demais no lado genético mais estreito do fenômeno por conta do termo que usei. Mas é daí pra baixo mesmo! Atitudes como a que vc teve podem sutilmente revelar a padrãofobia dos outros, rs.

Os streamings entraram na "guerra pela atenção" que as redes sociais tornaram regra.. O cartaz de um mesmo filme muda às vezes de semana pra semana (como um YouTuber que experimenta thumbnails diferentes pro mesmo vídeo pra ver qual engaja mais).. o lance do trailer começar com áudio e tudo quando o cursor para em cima do filme.. os "pop-ups" que surgem logo que entram os créditos finais sugerindo novos conteúdos. Isso vulgariza de fato a experiência. Muita coisa hoje me dá a sensação de estar num desses shoppings chineses clandestinos.. que todo mundo fica gritando pra tentar te vender algo primeiro.

Eu testei uma versão do mapa de valores aqui com os parágrafos dentro dele já.. vou te mandar depois. Mas se vc não quiser imprimir um mapa grande novo, poderia te mandar só os parágrafos isolados quem sabe, com a fonte certa etc. Abs!