Há muita discussão hoje sobre o impacto dos celulares e das redes sociais na saúde mental da população, algumas um tanto tendenciosas, mas este livro
The Shallows do Nicholas Carr conseguiu fortalecer minha impressão de que a internet, smartphones e as redes sociais são alguns dos principais "vilões" por trás da decadência cultural das últimas duas décadas. É uma teoria bem mainstream, mas que é frequentemente menosprezada no meio objetivista, que costuma atribuir tudo a intelectuais e correntes filosóficas.
Continuo achando que a geração Millennial foi azarada e estava fadada a um certo pessimismo na vida adulta pelas razões que discuto no vídeo
Idealismo Platônico. Este seria um fator importante também, mas entre os dois "vilões", as mudanças promovidas pela tecnologia me parecem ainda mais fortes e permanentes.
Muitos rejeitam a ideia de que a tecnologia poderia fazer as pessoas mudarem de valores e comportamento, pois a tecnologia seria apenas uma ferramenta. Estes "instrumentalistas" acham que, se as pessoas mudam, então a culpa seria da fraqueza de caráter delas, não da ferramenta. Mas é justamente neste ponto que o livro mergulha a fundo, demonstrando como invenções simples como o relógio, o mapa ou o livro transformaram para sempre a maneira como o ser humano vive e pensa. O autor não se mostra contra o progresso, contra o capitalismo, nem é um "determinista tecnológico". Mas ele aponta como cada tecnologia nova que invade nossas rotinas carrega uma "ética intelectual" particular, que pode ser tanto positiva quanto negativa, na medida em que seu funcionamento incentiva ou desincentiva hábitos intelectuais saudáveis no usuário — e sua tese é que a internet teria adquirido uma péssima ética intelectual, que promove uma série de problemas cognitivos: a mera presença do celular no nosso campo de visão, mesmo desligado, já demonstrou em experimentos ter o poder de diminuir nosso desempenho em atividades intelectuais.
A mídia de massa do século 20, especialmente a TV, já foi alvo de críticas parecidas no passado, e o autor não ignora isso. Porém ele discute como o impacto da TV nos hábitos cognitivos do espectador era limitado se comparado ao da internet, já que ninguém andava com uma TV no bolso 24h por dia. Além disso, a TV nunca se tornou um bom substituto para a leitura de livros. Ao longo do século 20, livros continuaram sendo vistos como as melhores fontes de conhecimento. Mas a internet mudou tudo — a infinidade de conteúdo relevante (porém rápido e fragmentado) que ela disponibiliza, fez da internet a primeira grande ameaça existencial para o livro e para a leitura linear e focada que era parte de sua "ética intelectual".
Outro livro que li sobre o tópico, Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier, discute mais como as redes sociais (e empresas como Google, que também se baseiam na "economia da atenção") criaram um modelo de negócio que, além de fragmentar o pensamento do usuário e promover hábitos cognitivos ruins, promove também polarização social, desentendimento, pessimismo, baixa autoestima, já que elas são serviços gratuitos que lucram com base em anúncios, e os algoritmos provaram que emoções negativas geram mais engajamento e tempo de tela que emoções positivas.
Ou seja, muitos os problemas ideológicos e estéticos que venho apontando no universo da arte na última década — problemas ligados à
Não-Objetividade, ao
Idealismo Corrompido, ao declínio dos padrões de qualidade — se não foram diretamente criados, foram no mínimo potencializados pela internet e pelas redes sociais.
Vou dar alguns exemplos abaixo de como isso pode ter ocorrido:
- Por conta da neuroplasticidade, o uso constante da internet e dos smartphones muda a maneira como usamos nossos cérebros, de forma que passamos a dar preferência pra certos padrões de pensamento mesmo quando estamos desconectados: a maneira fragmentada, descontextualizada, veloz e constante com que informações chegam até nós via a internet faz com que a gente se habitue a esse estilo caótico de pensamento, e vá perdendo aos poucos a disciplina de pensar de forma linear, focada, de ter momentos silenciosos de observação, reflexão etc.
- Ao olharmos cada vez mais para telas e menos para o mundo físico, nos habituamos a um universo altamente volátil, em constante mudança, e que se apresenta de maneira diferente/customizada para cada usuário — o que faz as pessoas sentirem que a realidade em si é subjetiva e instável, que não existe uma única verdade. (Se considerarmos certos clássicos da ficção-científica como indicadores dos hábitos cognitivos dos espectadores em diferentes décadas, daria pra fazer uma análise fascinante começando com 2001: Uma Odisseia no Espaço, passando por Matrix, A Origem, e terminando em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo).
- A sobrecarga da memória de trabalho faz com que a gente tenha menos capacidade de aprender, absorver e processar informações. Algumas das coisas que mais sobrecarregam nossa memória de trabalho é o multitasking, a atenção dividida, e estar com o cérebro no modo "solucionar problemas" — estados mentais constantemente estimulados pela internet.
- Há estudos que mostram que a facilidade de encontrar informações a qualquer momento e em qualquer lugar faz com que as pessoas aprendam menos e tenham menos memória.
- Conteúdos criados na era da internet tendem a ser menos precisos e profundos, já que a internet é uma "editora" que te permite publicar tudo instantaneamente, sem custo, editar e reeditar seu material quantas vezes for preciso, mesmo depois de publicado. Quando isso tudo tinha um custo, as pessoas precisavam ser muito mais disciplinadas com o que elas produziam, e pensavam mais a longo prazo. Mas a internet normalizou o conteúdo imediato, descartável, e essa mentalidade passou a afetar também o que se cria fora da internet (eu mesmo, que escrevo primeiramente em um blog, sei que não desenvolvi disciplinas importantes que críticos que escrevem para jornais e revistas tiveram que desenvolver).
- Por motivos já óbvios, as redes sociais tornam as pessoas mais inseguras, não só porque agora elas são constantemente expostas a milhares de pessoas ao redor do mundo melhores que elas em diversos aspectos, mas também porque a ética intelectual das redes sociais (ênfase em imagens, likes, seguidores, engajamento rápido, etc.) treina as pessoas a estarem sempre pensando sobre suas imagens e sobre a opinião dos outros a respeito delas (pense em como a qualidade e a quantidade de câmeras num celular se tornou um atrativo maior do que qualquer outra funcionalidade). O fato de tudo que fazemos na internet ser avaliado publicamente e gravado pra posteridade é um agravante — faz com que as pessoas sejam menos espontâneas, menos autênticas, e fiquem sempre preocupadas com possíveis deslizes que possam arruinar suas reputações no futuro. No passado, apenas artistas e figuras públicas tinham que ficar pensando constantemente sobre suas imagens e lidando com câmeras — e existia uma barreira maior entre eles e seus possíveis críticos. Mesmo assim, vale lembrar que essas pessoas sempre tiveram uma tendência ao desequilíbrio emocional. Hoje, quase todo mundo precisa ter um lado artista/figura pública, e estamos muito mais expostos a críticas e julgamentos. Há aquele ditado que devemos ouvir mais do que falar, já que temos 2 ouvidos e apenas 1 boca. Se há algum sentido nessa associação entre biologia e ideais de comportamento, é interessante pensar que temos apenas 2 olhos, e que nenhum deles está voltado para nós mesmos. Além disso, não existe espelho no mundo natural. Portanto, daria pra supor também que a preocupação constante com autoimagem e com o olhar do outro não é natural nem saudável.
- A internet também torna as pessoas mais pessimistas e irritadas, não só porque agora temos um contato infinitamente maior com o lado podre do ser humano, com a infinidade de pessoas de valores malignos no mundo que antes nem saberíamos que existiam, mas também porque os algoritmos lucram em cima dos sentimentos negativos e conflitantes do usuário, que são mais eficientes em prendê-lo nas plataformas e fazê-lo visualizar mais anúncios. Boa parte do mal-estar social que existe hoje se deve a isso. No livro Dez argumentos, o autor Jaron Lanier explica que qualquer notícia ou assunto relevante que surge na mídia, mesmo que comece como algo neutro politicamente, é rapidamente transformado em uma polêmica por causa desta lógica fria dos algoritmos. Se, por exemplo, os algoritmos entendem que meu perfil é de um usuário com uma inclinação a apoiar Israel em conflitos do oriente médio, ele tem um incentivo a fazer surgir na minha tela alguma postagem ou comentário irritante de uma pessoa pró-Palestina, pois seus cálculos mostram que este tipo de postagem me fará ficar alguns minutos a mais na plataforma.
- A internet desincentiva o talento e a expertise. Como sucesso no mundo da internet é baseado em visualizações, engajamento — que dependem de imagem, da captura da atenção e de coisas extremamente efêmeras — o incentivo para alguém estudar e se tornar um expert em qualquer coisa hoje é muito menor. Por conta disso, uma série de indústrias, atividades e profissões começaram a ficar mais superficiais e a adotar táticas vulgares para se adequarem ao novo modelo de sucesso. Isso contribuiu para a queda dos padrões estéticos na arte, da qualidade dos serviços, da confiabilidade das informações na mídia. Faz também com que as pessoas se sintam mais impotentes, sem saber o que fazer para garantir um futuro de sucesso. No passado, quando seu sucesso (ou fracasso) era mais baseado em mérito e performance, seu destino parecia mais sob seu controle — você poderia usar racionalidade e bom senso para entender o que precisava ser feito para melhorar sua performance. Hoje, não há uma relação tão clara entre performance, mérito e resultados. Sucesso profissional vem se parecendo cada vez mais com sucesso no cassino — e quem irá dedicar anos e anos ao estudo, à prática, ao aprimoramento, se um amador que é bom com imagem e algoritmos pode ter as mesmas chances de sucesso que você; e se todo seu esforço pode ir por água abaixo da noite pro dia por causa de um cancelamento arbitrário?
- A facilidade de se criar conteúdos na internet pode também saciar precocemente os impulsos criativos de artistas, fazendo com que menos e menos pessoas achem necessário produzir algo profissional, duradouro, de alto valor estético. Ao gravar um podcast, criar um vídeo para as redes sociais, escrever um "textão", você muitas vezes dá vazão ao desejo de produzir, de se expressar, de ter visibilidade, de se conectar com um público, e perde a energia necessária para realizar uma obra de maior impacto cultural.
- O estatismo, a organização da sociedade em tribos, o autoritarismo/intervencionismo na política, a cultura woke, políticas de "Diversidade, Equidade e Inclusão" e outros fenômenos modernos como o das Fake News são todos também consequências de uma população que se tornou mais pessimista e insegura, tanto emocionalmente quanto cognitivamente.
Estamos tão habituados aos estímulos constantes da internet que às vezes eles podem parecer inofensivos. Mas outro dia relendo um trecho de The Art of Non-Fiction, da Ayn Rand, ela me lembrou do quão sensível nosso subconsciente pode ser a estímulos externos, e o quão destrutivos eles se tornam quando não tomamos a iniciativa de impor certos filtros. O trecho me chamou atenção especialmente pelo livro The Shallows ter descrito o computador moderno como "um ecossistema de tecnologias de interrupção":
Se acordo pela manhã e sei, por exemplo, que terei um compromisso às 16h, eu não consigo escrever naquele dia. É como se minha mente se fechasse e se recusasse a trabalhar... Para escrever, você precisa se concentrar e manter seu subconsciente aberto, para que ele formule as ideias que você precisa. Se você sabe que em algum momento este processo poderá ser interrompido, independentemente do seu progresso, isto irá te travar completamente. Por isso, eu não aceito compromissos diurnos exceto quando são absolutamente inescapáveis... Preparar a mente para escrever é como esquentar um forno de fundição, que leva semanas até que ele chegue na temperatura certa para derreter aço. Requer um nível tão alto de concentração que uma interrupção é como o forno subitamente ficar frio. O tempo que leva pra você conseguir voltar a trabalhar é muito maior do que o do compromisso que causou a interrupção. Não só você não conseguirá trabalhar de novo naquele dia, como você provavelmente irá perder o dia seguinte também. O que você precisa subconscientemente para escrever é aquele senso de um futuro imediato sem interrupções. Que pelo menos naquele dia — e preferencialmente nos dias seguintes — você sabe que estará livre para se dedicar apenas à escrita solitária. Algumas pessoas são mais maleáveis, e muito depende da psico-epistemologia de cada um, mas é um absoluto que você não pode trabalhar se você sabe que uma interrupção é iminente.