segunda-feira, 29 de abril de 2024

Rivais

ANOTAÇÕES:

- O filme abre com um uso interessante de edição, música, fotografia, e tem uma estética atraente — porém a ausência de propósito narrativo nessas cenas iniciais já indica que o filme será do tipo "estilo acima de conteúdo". A ênfase está mais no apelo sexual dos atores e na estética "trendy" do que em fazer o espectador entender o que está acontecendo.

- Na primeira meia hora, você só entende que os dois amigos (Art e Patrick) brigaram em algum momento do passado por causa da personagem da Zendaya (Tashi), e que há algo simbólico agora no fato deles estarem disputando uma partida de tênis. Mas você ainda não sabe o significado do conflito, que valores estão em jogo, por que você deveria se importar por um ou por outro. (O filme tem um tipo de narrativa "retroativa" que eu não gosto muito, pois quase nada relevante acontece no tempo presente da história, e esse formato também te distancia dos personagens; o espectador pega a história já com o bonde já andando, e o filme se torna uma grande exposição de fatos via flashbacks, pra que só no fim a gente entenda a situação e quem são realmente os personagens.)

- Há um deslumbramento com o estilo de vida das elites que soa meio materialista e provinciano, como se fosse um olhar platônico de um outsider. Me lembra um pouco os filmes mais recentes do Woody Allen, desses que jovens atraentes viajam pela Europa e só fazem coisas estereotipadas de pessoas ricas, deixando tudo meio posado e artificial.

- Os atores estão bem, especialmente Josh O'Connor e Mike Faist. Já a Zendaya continua não me convencendo muito — alguém inventou que ela precisa sempre interpretar essa mulher de atitude, confiante, calejada, que não aceita papo furado de ninguém, só que pra mim o rosto dela não projeta nada disso.

- SPOILERS: O homoerotismo às vezes beira a paródia. Há aquela teoria na internet que Top Gun (1986) seria uma história gay, que dá toda uma leitura alternativa pras cenas de vestiário etc. É como se o Luca Guadagnino tivesse ouvido essa teoria e pensado: que tal fazer um filme, mas que seja realmente sobre isso?! Aí criou uma história em que amigos supostamente heterossexuais conversam nus em saunas, têm uma intimidade mais que suspeita, estão sempre se entreolhando enquanto comem bananas e outras coisas de formato fálico etc. Até a câmera consegue tornar homoeróticos certos momentos que não seriam caso fossem filmados por outro ângulo — um plano, por exemplo, destaca desnecessariamente a proximidade do pé de um amigo em relação ao rosto do outro; o cúmulo é a cena em que o Art está conversando com a Tashi no quarto, e quando ele se debruça sobre a cama, a câmera faz um movimento inexplicável que dá a impressão que o cinegrafista queria voar direto pro traseiro dele mas no meio do caminho resistiu à tentação. E todo esse homoerotismo no fim parece gratuito, algo que existe só pro deleite do cineasta, já que Art e Patrick não parecem ser de fato bissexuais, e essa suposta atração não tem consequência narrativa.

- As caracterizações e os conflitos são mal elaborados, confusos. Pra começar, não dá pra acreditar que a Tashi decidiu namorar o Patrick só com base em quem venceu aquela partida de tênis (se ela fez isso e eles aceitaram, então estamos falando de pessoas malucas, fúteis, e não há por que levar a sério os dramas que eles vivem). Não dá também para entender a briga geral quando ela machuca o joelho: por que ela fica revoltada quando Patrick aparece na enfermaria, e por que isso leva ao fim do namoro dos dois e ao fim da amizade entre Patrick e Art? Teria que ter acontecido algo muito mais grave e imperdoável pra gente acreditar que dez anos depois eles ainda estão se tratando de maneira ríspida pelo que houve.

- Graças aos cabelos, a não-linearidade da história não chega a confundir totalmente. Mas os saltos no tempo são excessivos e às vezes parecem um experimentalismo gratuito só para quebrar as regras.

- Como já sabemos qual é a situação dos personagens no futuro (no tempo presente do filme), as "reviravoltas" que ocorrem nos flashbacks (traições, acidentes etc.) não geram a mesma preocupação e interesse que gerariam numa narrativa linear, onde o espectador não sabe ainda as consequências daquilo. Os flashbacks servem mais para dar um contexto maior pra partida final, e fazê-la parecer mais dramática. A ideia do filme até que é interessante: pegar um jogo de tênis que inicialmente não parece ter maiores significados, e aos poucos transformá-lo num duelo épico conforme o espectador aprende mais sobre o passado dos personagens. O problema é que como as caracterizações e os conflitos são superficiais, mal elaborados, a disputa nunca ganha essa dimensão toda. Que valores estão em jogo? A disputa entre Art e Patrick é um duelo entre o que? Bem vs. mal? Lealdade vs. deslealdade? Disciplina vs. talento inato? Se um ganhar ou o outro ganhar, qual a mensagem?

- A ideia de Art nunca ter ganhado de Patrick é meio forçada. Serve para passar essa ideia que Art é o que tem a disciplina mas Patrick é quem tem a "raça", o talento bruto pro tênis. Mas se Patrick pudesse consistentemente vencer de um dos tenistas mais prestigiados do mundo, faria sentido ele ser um jogador tão desconhecido e fracassado?

- As tomadas da arquibancada com as cabeças acompanhando a bola e só a da Zendaya fixa num ponto seriam mais memoráveis se não fossem tiradas diretamente de Pacto Sinistro (1951).

- SPOILERS: A Tashi pedir pro Patrick perder o jogo de propósito não faz muito sentido, vai contra a treinadora intransigente que ela se mostrou o filme todo, sem falar que isso, junto com o fato dela trair o Art, torna ela detestável. A partir disso, não dá mais para desejar que Patrick e Art voltem a ser amigos, ou que Art e Tashi permaneçam juntos.

- O filme tem várias cenas longas em que você não entende por que a edição é tão espaçada, frouxa. O ápice disso são os últimos momentos do jogo, que é editado de uma das maneiras mais anti-naturais possíveis (mais toques de experimentalismo). 

- SPOILER: O sinal que o Patrick manda para Art através da raquete para desestabilizá-lo é um momento "Arma de Tchekhov" interessante, mas não tão satisfatório. O melhor uso desse recurso narrativo é quando a ideia plantada no 1º ato é distinta o bastante para ser lembrada, mas é tão bem costurada na trama que passa quase despercebida; parece só um detalhe que estava ali por necessidade. Assim, quando a ideia surge de novo no 3º ato se revelando crucial pra trama, é um momento surpreendente e satisfatório, pois revela uma lógica interna irresistível. Woody Allen fez um bom uso disso no contexto do tênis em Match Point. Mas aqui, a maneira como o sinal é introduzido no 1º ato já parece meio forçada (não havia razão para dois amigos íntimos, sozinhos, estarem falando em códigos); então quando a ideia é reutilizada no fim, o efeito não é tão eficaz.

- SPOILER: O final é cheio daquelas ambiguidades e paradoxos que querem se passar por "profundidade", "complexidade". Art ganhou a partida? Parece que sim, mas não fica totalmente claro. Se sim, Patrick perdeu de propósito ou deu o seu máximo? Se Art acabou de descobrir que Tashi o traiu, por que o abraço e o clima de comemoração? Qual será o futuro da amizade dos dois? Do relacionamento entre Art e Tashi? Não sabemos. A mensagem parece ser que o amor é confuso, o ser humano é contraditório, falho, tóxico, mas no fim precisamos uns dos outros. Fica tudo meio no ar, e o filme acaba em um frame particularmente estranho.

CONCLUSÃO: Bons atores, produção bonita, mas sex appeal e estilo não compensam a base fraca da história.

Challengers / 2024 / Luca Guadagnino

Satisfação: 4

Categorias: Idealismo Corrompido (Pseudo-sofisticação / estilo acima de conteúdo)

Filmes Parecidos: Os Sonhadores (2003) / Me Chame pelo Seu Nome (2017) / E Sua Mãe Também (2001) / Três Formas de Amar (1994) / Saltburn (2023)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Cultura: "O cinema acabou"

Esta fala do Jerry Seinfeld em uma entrevista recente repercutiu bastante, talvez por refletir o sentimento de muitos espectadores hoje:

"A indústria do cinema acabou... O filme não ocupa mais o topo da hierarquia social e cultural que ocupou durante a maior parte de nossas vidas. Quando saía um filme, se fosse bom, íamos todos ver. Todos nós discutíamos sobre ele. Citávamos falas e cenas que gostamos. Agora estamos andando por uma mangueira de incêndio com água, apenas tentando enxergar."

Quando lhe perguntaram o que havia substituído o cinema, ele disse:

"Depressão? Mal-estar? Eu diria confusão. A desorientação substituiu o negócio do cinema. Todo mundo que conheço no show business, todos os dias, pergunta: O que está acontecendo? Como você faz isso? O que devemos fazer agora?"

Demorei um pouco para entender o que Seinfeld quis dizer com "mangueira de incêndio", mas daí me lembrei de uma analogia feita pelo Jonathan Haidt (autor do best-seller The Anxious Generation) no programa do Bill Maher mês passado que talvez seja a origem desta comparação: Haidt disse que a vida hoje com celulares e redes sociais é como viver com "uma mangueira de incêndio gigante acoplada aos seus olhos e ouvidos, bombeando lixo o tempo todo".

Considerando o que discuti na postagem Smartphones, Redes Sociais e o Declínio Cultural, não é difícil imaginar como a tecnologia pode ter promovido este colapso do entretenimento. Embora Seinfeld esteja falando de cinema e Haidt de celulares, quando falam em "mangueira de incêndio", ambos estão reclamando da mesma coisa: que somos expostos hoje a um excesso de conteúdo, e a um conteúdo sem valor.

Tudo isso me parece uma consequência natural do fato de estarmos conectados à internet o tempo todo, da produção de conteúdo ter barateado muito nas últimas décadas, e da nossa atenção ser sinônimo de dinheiro para empresas e anunciantes (o que inclui artistas, produtores de entretenimento e de "conteúdo"). 

Todo mundo sempre desejou ter a atenção do público, isso não é novidade. O que mudou é que antes havia barreiras naturais que dificultavam não só a produção de conteúdo, mas também a distribuição/exibição dele. Não havia como acoplar a tal mangueira de incêndio ao espectador.

A "mangueira" antes era mais fina, a substância que passava por ela era mais rara, tinha mais valor (por ser difícil e cara de se produzir), e a mangueira também era curta — tinha que atrair o espectador por não poder se esticar infinitamente até chegar na cara dele.

A tecnologia removeu todas essas barreiras. Agora conteúdo pode ser produzido em abundância, por qualquer um, e alcançar o público onde quer que ele esteja. O resultado é a sensação de caos que as analogias de Haidt e Seinfeld tentam capturar.

Como é improvável que a tecnologia regrida, a solução me parece ser a mesma que discuti no caso da Inteligência Artificial: a sociedade se auto-disciplinar quando entender os efeitos nocivos dessas facilidades tecnológicas. A internet é como se fosse o cigarro dos Millennials e da Geração Z; o "sexo livre" da atualidade. Assim como o sexo desprotegido e o consumo indiscriminado de tabaco/açúcar hoje já são evitados por pessoas que querem ter uma vida saudável, o consumo indiscriminado de conteúdo também deverá ser no futuro.

O que me lembra de um texto que postei há alguns meses nas minhas redes sociais:

Há uma razão pela qual, numa casa, colocamos vidro nas janelas, mas o encanamento fica escondido dentro de paredes opacas. Talvez no passado, quando ainda se estava experimentando com planejamento urbano, alguém tenha tido a ideia de construir um sistema de esgoto totalmente exposto, passando pelo meio das casas e das ruas - mas ao longo dos séculos, a humanidade teve que aprender na prática que nem tudo que faz parte dela deve ficar à vista pra ser contemplado o tempo todo. Talvez um processo similar de aprendizado tenha que ocorrer num futuro próximo, só que em relação à informação. Pois é como se a internet e as redes sociais tivessem padronizado um sistema de esgoto na cultura que usa canos de vidro, por onde passa não o lixo físico, mas o lixo espiritual da população. Ou pior: um sistema no qual esgoto e água limpa fluem juntos pelos mesmos canos. Esse tipo de exposição criará suas próprias categorias de doenças, pestes, infecções, pras quais ainda não temos todas as vacinas inventadas.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Ibsen, Rand e Tubarão

A peça Um Inimigo do Povo de Henrik Ibsen, escrita em 1882, é provavelmente a obra mais "randiana" não escrita por Ayn Rand que eu já li, e parece até ter sido o protótipo do tipo de história que Rand viria elaborar depois em A Nascente e A Revolta de Atlas, que apesar de serem muito mais complexas e profundas filosoficamente, lembram muito Um Inimigo do Povo em intenção e estrutura.

A trama da peça gira ao redor de um cientista que descobre que um balneário de importância crucial para a cultura e economia da cidade está com suas águas contaminadas e precisa ser fechado para reforma, o que desagrada aqueles que contam financeiramente com o balneário. A partir disso, a peça vai elaborar seu tema central: o conflito entre o homem racional, honesto, íntegro, e os homens guiados por convenções sociais, emoções cegas e ignorância, que acabam comandando a sociedade por estarem em maioria.

Como a peça de Ibsen é crítica em relação a valores importantes da sociedade como religião e altruísmo, imaginei que, assim como no caso das obras da Rand, adaptações de Um Inimigo do Povo para o cinema seriam difíceis de serem feitas. Por curiosidade, acabei assistindo às duas adaptações mais relevantes:

O Inimigo do Povo de 1989, dirigido por Satyajit Ray (o cultuado cineasta indiano da Trilogia de Apu) transporta a história de seu ambiente original para a Índia contemporânea, e não só é um filme bastante medíocre em estilo, lembrando produções baratas de TV, como também deturpa toda a filosofia da história — transforma o herói num homem mais convencional, moderado, que não faz jus ao título da peça, e reduz tudo a um debate sobre ciência vs. misticismo (fazer uma crítica à religião pelo visto era aceitável na Índia em 1989, mas a crítica que Ibsen faz às massas, à "maioria coesa", esta é totalmente abafada).

O Inimigo do Povo de 1978, com o Steve McQueen no papel de Stockmann, já é bem superior tanto em estilo quanto em conteúdo. Visualmente, a produção te transporta muito melhor para o universo da peça, e as mensagens também são bem mais próximas do texto original. Porém, as passagens que criticam a religião e a "maioria coesa" de forma mais aberta foram amenizadas, especialmente durante o discurso de Stockmann, que não chega nem perto do original em impacto, ainda que não subverta sua intenção básica.

Se a intenção dessas amenizações era tornar a história mais palatável pro grande público, isso não foi o bastante. Ambos os filmes foram fracassos de público e crítica.

Rand é uma figura controversa por inúmeros motivos, então às vezes fica difícil entender o real motivo de suas obras terem dificuldade de serem adaptadas para o cinema e de penetrarem a cultura mainstream. Por isso, Um Inimigo do Povo acaba sendo um bom estudo de caso. Ibsen é um dos dramaturgos mais importantes de todos os tempos, uma figura bem aceita no meio artístico, e a peça defende uma série de valores compatíveis com os de Rand, mas em uma linguagem menos desafiadora, mais acessível, e sem ir a fundo em tópicos como política etc. Se o problema fosse apenas a figura pessoal de Rand e a maneira provocativa com que ela expressava suas ideias, Um Inimigo do Povo estaria livre de qualquer controvérsia. Mas pelo que observei, este não é o caso. Questionar valores como religião e especialmente a "santidade" do povo parece ser sempre um tabu, independentemente de quem você é e da maneira como você o faz.

O enredo de Um Inimigo do Povo só conseguiu encontrar seu caminho para o sucesso no cinema quando passou por uma série de metamorfoses, foi despido de seus elementos mais socialmente incômodos, e teve o antagonista modificado — em vez da "maioria coesa", passou a ser as "elites corruptas": o resultado foi Tubarão (1975), um filme que não é uma adaptação direta, mas que é frequentemente citado como uma modernização da peça de Ibsen.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guerra Civil

Vi diversas críticas dizendo que Guerra Civil era um filme neutro politicamente, que seu foco estava mais nos personagens, na homenagem ao jornalismo — a grande divisão parecia ser que alguns críticos achavam isso bom e outros achavam essa neutralidade ruim, covarde. Mas pra minha surpresa, logo na primeira cena, o filme deixa bem claro seu posicionamento ao estabelecer o "vilão" como um presidente de direita estilo Trump, que se recusou a deixar a Casa Branca após o fim de seus dois mandatos. Em inúmeras cenas, pela maneira como o filme caracteriza o conflito, fica óbvio que o inimigo aqui se trata de um governo de direita levado ao extremo, de acordo com a ótica da esquerda.

Exemplos:

- No discurso inicial, o presidente golpista fala em Deus, pátria, exalta a América, os Founding Fathers, os americanos "de bem" — um discurso totalmente conservador.

- O presidente é um tipo vaidoso, que tende a se auto engrandecer, e não aceita resultados de eleições — uma comparação clara com Trump.

- A bomba que explode no primeiro combate matando várias pessoas é detonada por um extremista que chega segurando uma bandeira americana (assim como no Brasil, a bandeira nacional foi capturada pela direita nos EUA e transformada em símbolo partidário).

- As personagens da Kirsten Dunst e da Cailee Spaeny se referem aos seus pais como pessoas alienadas, que vivem em fazendas nos estados do interior dos EUA — estão falando de Republicanos.

- Quando há conflitos nas ruas com policiais e o filme quer ilustrar quem é o lado oprimido, em mais de uma cena ele destaca uma mãe negra na multidão como representante das vítimas — nunca alguém com um perfil típico de eleitor Republicano.

- Quando os protagonistas passam por uma cidadezinha que parece estar vivendo uma rotina normal, ignorando o caos no país (ninguém está em festa exatamente, mas alguns moradores estão caminhando na calçada, e há uma loja de roupas aberta tocando música pop) isso é mostrado como um absurdo, um exemplo de alienação, como se o correto fosse o país inteiro estar em modo "lockdown" em respeito às regiões que estão em conflito — um posicionamento que reflete muito o da esquerda durante a pandemia de COVID. 

- A figura mais vilanesca do filme é o soldado interpretado pelo Jesse Plemons — um extremista loiro, racista, com uma metralhadora na mão, que protege pessoas nascidas em estados do interior dos EUA, mas executa um homem que se revela um imigrante chinês — ódio à China é algo associado a Trump.

- O local mais seguro e benevolente do filme é uma espécie de acampamento da ONU que oferece ajuda humanitária (organização que é associadas a políticas Democratas).

- As mortes ao longo do filme são mostradas em tom trágico, como coisas cruéis, injustas. O filme só se permite ter certo prazer com a violência no caso das cenas em que os tais "Republicanos" são mortos. Essas parecem vinganças justas, apoiadas pelos protagonistas.

Não estou dizendo que o fato do filme ter um lado o torna bom ou ruim. Mas me intriga o fato de tanta gente ter achado o filme neutro, apesar de todos esses elementos. É como se para boa parte do público, só valesse como posicionamento aquilo que é comunicado num nível verbal, explícito. Mas é óbvio que o poder do cinema vai muito além disso, e que sua influência maior ocorre no nível não-verbal. Se o governo autoritário mostrado no filme tivesse similaridades com uma ditadura comunista, e o presidente tivesse características e políticas que remetessem às do Biden, duvido que a esquerda chamaria o filme de neutro — considerando que ela não perde a chance de taxar um filme de racista, por exemplo, se ele mostrar personagens negros sob uma luz pejorativa, mesmo que ele não faça nenhuma afirmação preconceituosa.

Isso acontece porque a esquerda é bem melhor que a direita no que diz respeito às entrelinhas, à comunicação indireta — por isso ela domina as artes, a mídia. Já a direita precisa de palavras, formulações "oficiais" pra entender algo, por isso ela fica perdida diante de um filme como Guerra Civil, que transmite suas mensagens todas por baixo do radar, sem oferecer essas formulações. (E por isso a direita ficava irritada com quem dizia que Som da Liberdade era um filme conservador, não um thriller neutro sobre tráfico de menores.) De fato, Guerra Civil não apresenta nenhum argumento intelectual contra os Republicanos, não diz o que exatamente causou a guerra, quais políticas ele acha que deveriam ser implementadas etc. Ainda assim, cena após cena, o filme está associando a imagem dos Republicanos aos agressores, autoritários, desumanos, alienados, ao lado que representa uma ameaça existencial para a América (lembrando que este é ano de eleição nos EUA).

Para ser realmente neutro, o filme teria que ter atribuído aos "monstros" do filme características que fossem estranhas a ambos os partidos, ou então características de ambos os partidos, criando uma salada para realmente confundir. Por exemplo: além de patriota e religioso, o presidente golpista poderia também ser um ambientalista radical, alguém que pretende taxar os ricos; entre as vítimas, poderíamos ver, além de mães negras, um empresário que teve seus bens confiscados pelo governo; quando a Cailee Spaeny cita um certo "massacre da ANTIFA", em vez de deixar a fala vaga, o filme poderia dizer que a ANTIFA foi quem cometeu o massacre etc. Não precisaria de muito — bastaria 1 única cena em que alguém com características ou pautas Democratas fizesse algo maligno para essa neutralidade do filme se tornar crível. Eu não vi nenhuma. O grande álibi do filme é o fato dele dizer que o Texas e a Califórnia estão lutando juntos contra o governo. Mas por tudo que ele mostra na prática, fica mais fácil você concluir que o Texas virou Democrata no universo alternativo do filme do que achar que Republicanos e Democratas estão realmente lutando lado a lado contra uma 3ª força.

Falando da qualidade do filme em si, a decisão de situar a história no meio de uma guerra civil americana acho que acabou sendo prejudicial e se tornando uma distração, já que o filme não pretende engajar realmente com ideias políticas; apenas usar isso como pano de fundo para um road movie cujo foco está mais nos personagens e nos desafios da profissão. O verdadeiro tema de um filme é aquele que emerge das ações e dos conflitos vividos pelos protagonistas. Nesse sentido, o tema de Guerra Civil seria os desafios do jornalismo de guerra, e também o "mal da guerra" de forma geral. Mas esse tema não requer que a história se passe especificamente numa guerra civil americana fictícia, resultante da atual polarização política. Se a ação se passasse no Iraque ou na Ucrânia, o conteúdo não mudaria muito. Então há uma falta de integração entre essas duas intenções do roteiro. Fica a impressão que Alex Garland se encantou com sua ideia original de mostrar uma guerra civil nos EUA atual, mas não tinha coragem de escrever um roteiro que expressasse suas opiniões sobre o assunto abertamente. Então ele inventou uma historinha qualquer que se passa no meio de uma guerra civil moderna, e dá a ele a oportunidade de explorar este cenário, fazer uma série de insinuações pelas entrelinhas, mas sem ter que realmente se comprometer.

Ou seja, o filme é dissimulado ao estruturar sua história ao redor do jornalismo, de relações humanas, quando fica claro que é sobre o "pano de fundo" mesmo que Garland queria discutir (Zona de Interesse pelo menos foi mais honesto, deixando óbvio que o filme não era sobre nada além do pano de fundo). Um sinal óbvio é que o título do filme é "Guerra Civil", não algo que enfatiza o jornalismo ou o conflito pessoal das protagonistas. E o pôster, que deve resumir visualmente a essência de um filme, mostra dois atiradores em cima da Estátua da Liberdade — uma cena que nem existe no filme, mas que é extremamente simbólica e política. Por causa dessa desonestidade quanto ao verdadeiro tema que quer discutir, o filme acaba não dando atenção o bastante aos personagens e à suposta narrativa central, a ponto da história funcionar independentemente do interesse ideológico. Como road movie intimista, o filme é superficial, episódico, tem personagens mal desenvolvidos, e os poucos momentos em que ele flerta com uma trama revelam o roteirista frágil que Garland se mostrou em Men (2022) — como na reviravolta forçada na estrada onde a personagem sai pela janela do carro.

Guerra Civil é bem produzido, tem um bom elenco, algumas cenas tensas de combate (introduzindo o "tiro jump-scare"), e em termos de construção de universo, há ideias interessantes, detalhes que dão realismo à situação. Mas, como de costume, Alex Garland pegou um tema que parece ambicioso demais pra sua profundidade como escritor. O filme acaba parecendo o equivalente cinematográfico do "postei e saí correndo" — a pessoa que joga uma frase polêmica nas redes sociais só pra causar, se divertir com a confusão, mas que não pretende de fato elaborar suas ideias.

Satisfação: 4 (Idealismo Corrompido)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cultura: Tongue-in-cheek vs. Straight Face

Dizer que um filme é "tongue-in-cheek" ("língua na bochecha") é dizer que ele não se leva a sério, que não é realista, está sendo feito de forma irônica, se autoparodiando. Esta costuma ser a atitude padrão dos filmes que exageram a ação e o heroísmo dos personagens pra zombarem do gênero (Idealismo Corrompido), porém recentemente assisti a alguns filmes que me deram a impressão de uma nova tendência estar surgindo: a de remover a ironia e simplesmente mostrar absurdos com uma atitude séria. Filmes como Donzela, Beekeeper: Rede de Vingança Godzilla e Kong: O Novo Império, por exemplo, levam a ação perto do nível do ridículo, porém já não têm sempre as piadinhas pra deixar óbvio pro espectador que aquilo se trata de algo irônico e autoconsciente. Até mesmo o remake de Matador de Aluguel, apesar de ter os comentários engraçadinhos, já flerta com essa nova categoria.

Isso não quer dizer que esses filmes estejam se livrando do Idealismo Corrompido e passando a levar as aventuras e os heróis a sério. Eles estão apenas adotando uma nova tática para invalidar as histórias: em vez do humor "tongue-in-cheek", agora eles estão passando para o humor "straight face" — que é quando graça vem de você manter uma expressão séria enquanto faz algo evidentemente absurdo.

Esta é a técnica de paródias como Todo Mundo em Pânico e Corra que a Polícia Vem Aí. A diferença é que em comédias, os exageros e absurdos são calculados para provocarem riso. A burrice e a ausência de lógica são levadas ao extremo para se tornarem piadas e gerarem um efeito cômico inconfundível. Isso não acontece nos filmes que citei. Esses filmes simplesmente mostram ações impossíveis, desnecessariamente exageradas, apresentam desenvolvimentos de trama que não têm um pingo de lógica (e nem disfarçam isso), mas mantendo uma atitude séria — não como quem quer que você dê uma gargalhada, mas como quem parece estar se deleitando com a ideia de não precisar se limitar à "ditadura" da lógica, da realidade, e poder escapar impune dizendo mentiras descaradas (uma atitude que está em plena harmonia com a era da "pós-verdade" e com a irracionalidade crescente da cultura).

Por serem produções caras de estúdio, nesses casos você nem consegue considerar a hipótese dos cineastas serem de fato sem-noção, como acontece em produções low-budget tipo Birdemic ou Sharknado. E também não estamos falando de filmes de Bollywood, que dariam justificar dizendo que a cultura inteira seria sem-noção. Aqui, você sabe que os cineastas têm mais "noção" do que os filmes sugerem, mas eles resolveram de propósito ignorar qualquer bom senso, como se a autoindulgência intelectual dos cineastas passasse a ser a real fonte do entretenimento.

A franquia Velozes e Furiosos me parece ter sido pioneira nessa tendência, pois já vem adotando esse comportamento desde a parte 6 no mínimo (quando vi a cena do avião cargueiro na parte 6 e a do submarino na parte 8, eu sabia que estava diante de algo novo e estranho no blockbuster americano). O sucesso de RRR nos EUA acho que também foi um marco importante nessa evolução.

Ainda é cedo pra dizer se isso é uma tendência real ou não, mas se for, essa "Bollywoodização" de Hollywood não representará progresso algum — fazer virtudes e o entretenimento parecerem coisas tolas, impossíveis ou ridículas de propósito será sempre uma corrupção do Idealismo, com ou sem língua na bochecha.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Haters do YouTube

Depois da postagem 6 momentos que me fizeram desgostar da Rainha Elsa de "Frozen", minha crítica em vídeo do filme Close foi provavelmente a que gerou o maior debate. Já respondi todos os argumentos que surgiram na seção de comentários YouTube, mas os comentaristas continuam trazendo de volta os mesmos pontos. E há uma grande semelhança entre este debate e o de Frozen: nos dois casos, o que incomodou as pessoas foi o fato de eu não ter achado convincente o sofrimento do personagem, a ponto deste sofrimento justificar seus atos destrutivos. Pra mim, a questão de Close era mais de credibilidade, roteiro, tanto que eu reclamo igualmente de filmes que não são convincentes ao retratar o heroísmo de algum personagem. Mas as pessoas ficaram tão tocadas com o drama do garoto Remi, que parece que se ofenderam com meu olhar "frio" sobre a história. Um pouco, quem sabe, como eu me sentiria se alguém ficasse apontando inconsistências na caracterização de um Indiana Jones, que colocassem sua estatura em xeque. Só que neste caso, o que me levaria a ficar na defensiva seria meu desejo de preservar a visão heroica que tenho do personagem. Já no caso de Close/Frozen, as pessoas ficam na defensiva pois querem preservar o status dos personagens como vítimas indefesas — é isto que eu estou colocando em xeque quando questiono a depressão de Remi. O debate acaba servindo como uma boa ilustração dos 2 tipos de espectadores (os que buscam inspiração na arte vs. os que bucam conforto) que discuto no texto O que é Idealismo.

Falando em "haters", uma coisa que me surpreendeu no YouTube foi a ausência de críticas sérias às minhas análises. Quando tocamos em assuntos polêmicos ou temos opiniões que vão contra o mainstream, às vezes ficamos com receio de colocar essas ideias no mundo e testá-las com o público, pois sabemos que há sempre uma chance de estarmos errados e de alguém trazer à tona algum fato inesperado que invalide nossas conclusões. Mas não só isso nunca aconteceu durante este ano todo que fiz críticas em vídeo (os comentários negativos em geral só expressavam reprovação, mas não tentavam contra-argumentar) como percebi também uma tendência curiosa: praticamente toda vez que chegava um comentário mais agressivo, confiante, de mais de 1 linha, tentando esboçar um quase-contra-argumento, a pessoa era tão sem-noção que só de entrar rapidamente no perfil dela eu concluía que era inútil perder meu tempo respondendo. Alguns exemplos que fiz questão de salvar:

Do vídeo sobre Som da Liberdade (2023):






Do vídeo sobre Idealismo Corrompido:



...daí entrando no canal pessoal do autor do comentário (um professor) me deparei com este vídeo dele ⬇



Os comentários no vídeo de Close foram os mais honestos, tanto que parei pra responder vários, mas mesmo assim, ninguém disse nada realmente convincente (quando revi o filme pra ter certeza do que estava falando, fiquei chocado de ver que minhas impressões iniciais eram ainda mais óbvias do que eu lembrava, e que o público estava fazendo um malabarismo incrível pra acreditar que certas cenas mostravam um quadro depressivo grave). Mas tirando este caso, os 3 comentários acima foram talvez os ataques mais "desafiadores" que recebi esse tempo todo.

Claro que meus vídeos tiveram pouco alcance. Alguém com centenas de milhares de seguidores certamente deve receber críticas de pessoas mais interessantes. Mas essa experiência já serviu pra mostrar que aquela noção que eu tinha, que seria confrontado por argumentos fortes e válidos sempre que postasse algo impopular, se provou algo muito mais hipotético do que eu poderia ter previsto.

terça-feira, 9 de abril de 2024

A Primeira Profecia

Estreia notável da diretora Arkasha Stevenson, que só tinha dirigido curtas e séries de TV até agora. O filme não é livre dos clichês irritantes do gênero — as alucinações que só servem pra gerar um jump-scare inútil, os desenhos infantis que sempre revelam algo sinistro etc. — só que o resto do filme é tão autêntico pros padrões atuais, tão cheio de detalhes e decisões ousadas, que você conclui que esses clichês devem ter vindo mais das exigências do estúdio do que de uma falta de imaginação da própria cineasta. Nas mãos de um diretor mais comum, o filme seria apenas o que ele aparenta ser à distância — mais uma produção de "pedigree" duvidoso que só existe pra lucrar em cima de uma franquia popular. Mas em vez de entrar no piloto automático, Arkasha Stevenson (que me parece acima do material artisticamente) decidiu levar o filme a sério e aproveitar a oportunidade pra mostrar seu potencial como realizadora. A primeira coisa que me chamou atenção foi que o filme traz uma epistemologia bem mais racional que de costume pro gênero. Não há aqui, por exemplo, aquele clima tenebroso constante que dá a impressão que os personagens já sabem desde o início que estão num filme de terror. Há diálogos descontraídos e até bem humorados na introdução, que criam um universo crível e personagens mais fáceis de gostar. A religião também é mostrada por uma lente mais real — a igreja aqui existe dentro de um contexto político/histórico reconhecível, está sujeita a erros, corrupções, as noviças são mostradas como jovens devotas, mas que ao mesmo tempo questionam a igreja em certas áreas, têm vida privada, impulsos sexuais normais etc. O elenco também é um destaque. A protagonista Nell Tiger Free está muito bem, mas me chamaram a atenção especialmente alguns coadjuvantes como a amiga dela interpretada pela Maria Caballero — uma atriz com uma presença marcante e um rosto que a tornaria perfeita para um biopic da Elizabeth Taylor ou da Viven Leigh. Sônia Braga como freira do mal foi outra escolha de casting inusitada que funcionou melhor do que se poderia esperar. O material não permite que a cineasta salve completamente o filme, mas mesmo os clichês ela faz uma espécie de alquimia cinematográfica pra tentar transformar em algo mais interessante. Há uma cena de parto, por exemplo, que acaba não passando de uma dessas alucinações bobas — mas que apresenta uma das imagens mais horríveis (no bom sentido) que vi no terror recentemente. Em outro momento, a personagem precisa ficar fazendo aqueles contorcionismos nonsense de mulher possuída, e a cena poderia muito facilmente ter caído no ridículo, pois dura vários segundos e foi filmada em plano aberto, com poucos cortes, o que evidencia qualquer defeito. Mas a cena acaba funcionando por conta da direção cuidadosa, e se tornando até intrigante do ponto de vista técnico/"coreográfico". Acabei procurando uma entrevista depois com a Arkasha Stevenson pra saber quem era ela, e o que ouvi só confirmou minha impressão de que o filme, apesar dos problemas, tinha sido feito por um cineasta mais inteligente e autêntico que a média, com boas premissas cinematográficas (o oposto do que senti quando vi entrevistas com o David Gordon Green depois de O Exorcista: O Devoto).

The First Omen / 2024 / Arkasha Stevenson

Satisfação: 7 (Idealismo Imperfeito)

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Smartphones, Redes Sociais e o Declínio Cultural

Há muita discussão hoje sobre o impacto dos celulares e das redes sociais na saúde mental da população, algumas um tanto tendenciosas, mas este livro The Shallows do Nicholas Carr conseguiu fortalecer minha impressão de que a internet, smartphones e as redes sociais são alguns dos principais "vilões" por trás da decadência cultural das últimas duas décadas. É uma teoria bem mainstream, mas que é frequentemente menosprezada no meio objetivista, que costuma atribuir tudo a intelectuais e correntes filosóficas.

Continuo achando que a geração Millennial foi azarada e estava fadada a um certo pessimismo na vida adulta pelas razões que discuto no vídeo Idealismo Platônico. Este seria um fator importante também, mas entre os dois "vilões", as mudanças promovidas pela tecnologia me parecem ainda mais fortes e permanentes.

Muitos rejeitam a ideia de que a tecnologia poderia fazer as pessoas mudarem de valores e comportamento, pois a tecnologia seria apenas uma ferramenta. Estes "instrumentalistas" acham que, se as pessoas mudam, então a culpa seria da fraqueza de caráter delas, não da ferramenta. Mas é justamente neste ponto que o livro mergulha a fundo, demonstrando como invenções simples como o relógio, o mapa ou o livro transformaram para sempre a maneira como o ser humano vive e pensa. O autor não se mostra contra o progresso, contra o capitalismo, nem é um "determinista tecnológico". Mas ele aponta como cada tecnologia nova que invade nossas rotinas carrega uma "ética intelectual" particular, que pode ser tanto positiva quanto negativa, na medida em que seu funcionamento incentiva ou desincentiva hábitos intelectuais saudáveis no usuário — e sua tese é que a internet teria adquirido uma péssima ética intelectual, que promove uma série de problemas cognitivos: a mera presença do celular no nosso campo de visão, mesmo desligado, já demonstrou em experimentos ter o poder de diminuir nosso desempenho em atividades intelectuais.

A mídia de massa do século 20, especialmente a TV, já foi alvo de críticas parecidas no passado, e o autor não ignora isso. Porém ele discute como o impacto da TV nos hábitos cognitivos do espectador era limitado se comparado ao da internet, já que ninguém andava com uma TV no bolso 24h por dia. Além disso, a TV nunca se tornou um bom substituto para a leitura de livros. Ao longo do século 20, livros continuaram sendo vistos como as melhores fontes de conhecimento. Mas a internet mudou tudo — a infinidade de conteúdo relevante (porém rápido e fragmentado) que ela disponibiliza, fez da internet a primeira grande ameaça existencial para o livro e para a leitura linear e focada que era parte de sua "ética intelectual".

Outro livro que li sobre o tópico, Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier, discute mais como as redes sociais (e empresas como Google, que também se baseiam na "economia da atenção") criaram um modelo de negócio que, além de fragmentar o pensamento do usuário e promover hábitos cognitivos ruins, promove também polarização social, desentendimento, pessimismo, baixa autoestima, já que elas são serviços gratuitos que lucram com base em anúncios, e os algoritmos provaram que emoções negativas geram mais engajamento e tempo de tela que emoções positivas.

Ou seja, muitos os problemas ideológicos e estéticos que venho apontando no universo da arte na última década — problemas ligados à Não-Objetividade, ao Idealismo Corrompido, ao declínio dos padrões de qualidade — se não foram diretamente criados, foram no mínimo potencializados pela internet e pelas redes sociais.

Vou dar alguns exemplos abaixo de como isso pode ter ocorrido:

- Por conta da neuroplasticidade, o uso constante da internet e dos smartphones muda a maneira como usamos nossos cérebros, de forma que passamos a dar preferência pra certos padrões de pensamento mesmo quando estamos desconectados: a maneira fragmentada, descontextualizada, veloz e constante com que informações chegam até nós via a internet faz com que a gente se habitue a esse estilo caótico de pensamento, e vá perdendo aos poucos a disciplina de pensar de forma linear, focada, de ter momentos silenciosos de observação, reflexão etc.

- Ao olharmos cada vez mais para telas e menos para o mundo físico, nos habituamos a um universo altamente volátil, em constante mudança, e que se apresenta de maneira diferente/customizada para cada usuário — o que faz as pessoas sentirem que a realidade em si é subjetiva e instável, que não existe uma única verdade. (Se considerarmos certos clássicos da ficção-científica como indicadores dos hábitos cognitivos dos espectadores em diferentes décadas, daria pra fazer uma análise fascinante começando com 2001: Uma Odisseia no Espaço, passando por MatrixA Origem, e terminando em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo).

- A sobrecarga da memória de trabalho faz com que a gente tenha menos capacidade de aprender, absorver e processar informações. Algumas das coisas que mais sobrecarregam nossa memória de trabalho é o multitasking, a atenção dividida, e estar com o cérebro no modo "solucionar problemas" — estados mentais constantemente estimulados pela internet.

- Há estudos que mostram que a facilidade de encontrar informações a qualquer momento e em qualquer lugar faz com que as pessoas aprendam menos e tenham menos memória.

- Conteúdos criados na era da internet tendem a ser menos precisos e profundos, já que a internet é uma "editora" que te permite publicar tudo instantaneamente, sem custo, editar e reeditar seu material quantas vezes for preciso, mesmo depois de publicado. Quando isso tudo tinha um custo, as pessoas precisavam ser muito mais disciplinadas com o que elas produziam, e pensavam mais a longo prazo. Mas a internet normalizou o conteúdo imediato, descartável, e essa mentalidade passou a afetar também o que se cria fora da internet (eu mesmo, que escrevo primeiramente em um blog, sei que não desenvolvi disciplinas importantes que críticos que escrevem para jornais e revistas tiveram que desenvolver).

- Por motivos já óbvios, as redes sociais tornam as pessoas mais inseguras, não só porque agora elas são constantemente expostas a milhares de pessoas ao redor do mundo melhores que elas em diversos aspectos, mas também porque a ética intelectual das redes sociais (ênfase em imagens, likes, seguidores, engajamento rápido, etc.) treina as pessoas a estarem sempre pensando sobre suas imagens e sobre a opinião dos outros a respeito delas (pense em como a qualidade e a quantidade de câmeras num celular se tornou um atrativo maior do que qualquer outra funcionalidade). O fato de tudo que fazemos na internet ser avaliado publicamente e gravado pra posteridade é um agravante — faz com que as pessoas sejam menos espontâneas, menos autênticas, e fiquem sempre preocupadas com possíveis deslizes que possam arruinar suas reputações no futuro. No passado, apenas artistas e figuras públicas tinham que ficar pensando constantemente sobre suas imagens e lidando com câmeras — e existia uma barreira maior entre eles e seus possíveis críticos. Mesmo assim, vale lembrar que essas pessoas sempre tiveram uma tendência ao desequilíbrio emocional. Hoje, quase todo mundo precisa ter um lado artista/figura pública, e estamos muito mais expostos a críticas e julgamentos. Há aquele ditado que devemos ouvir mais do que falar, já que temos 2 ouvidos e apenas 1 boca. Se há algum sentido nessa associação entre biologia e ideais de comportamento, é interessante pensar que temos apenas 2 olhos, e que nenhum deles está voltado para nós mesmos. Além disso, não existe espelho no mundo natural. Portanto, daria pra supor também que a preocupação constante com autoimagem e com o olhar do outro não é natural nem saudável.

- A internet também torna as pessoas mais pessimistas e irritadas, não só porque agora temos um contato infinitamente maior com o lado podre do ser humano, com a infinidade de pessoas de valores malignos no mundo que antes nem saberíamos que existiam, mas também porque os algoritmos lucram em cima dos sentimentos negativos e conflitantes do usuário, que são mais eficientes em prendê-lo nas plataformas e fazê-lo visualizar mais anúncios. Boa parte do mal-estar social que existe hoje se deve a isso. No livro Dez argumentos, o autor Jaron Lanier explica que qualquer notícia ou assunto relevante que surge na mídia, mesmo que comece como algo neutro politicamente, é rapidamente transformado em uma polêmica por causa desta lógica fria dos algoritmos. Se, por exemplo, os algoritmos entendem que meu perfil é de um usuário com uma inclinação a apoiar Israel em conflitos do oriente médio, ele tem um incentivo a fazer surgir na minha tela alguma postagem ou comentário irritante de uma pessoa pró-Palestina, pois seus cálculos mostram que este tipo de postagem me fará ficar alguns minutos a mais na plataforma.

- A internet desincentiva o talento e a expertise. Como sucesso no mundo da internet é baseado em visualizações, engajamento — que dependem de imagem, da captura da atenção e de coisas extremamente efêmeras — o incentivo para alguém estudar e se tornar um expert em qualquer coisa hoje é muito menor. Por conta disso, uma série de indústrias, atividades e profissões começaram a ficar mais superficiais e a adotar táticas vulgares para se adequarem ao novo modelo de sucesso. Isso contribuiu para a queda dos padrões estéticos na arte, da qualidade dos serviços, da confiabilidade das informações na mídia. Faz também com que as pessoas se sintam mais impotentes, sem saber o que fazer para garantir um futuro de sucesso. No passado, quando seu sucesso (ou fracasso) era mais baseado em mérito e performance, seu destino parecia mais sob seu controle — você poderia usar racionalidade e bom senso para entender o que precisava ser feito para melhorar sua performance. Hoje, não há uma relação tão clara entre performance, mérito e resultados. Sucesso profissional vem se parecendo cada vez mais com sucesso no cassino — e quem irá dedicar anos e anos ao estudo, à prática, ao aprimoramento, se um amador que é bom com imagem e algoritmos pode ter as mesmas chances de sucesso que você; e se todo seu esforço pode ir por água abaixo da noite pro dia por causa de um cancelamento arbitrário?

- A facilidade de se criar conteúdos na internet pode também saciar precocemente os impulsos criativos de artistas, fazendo com que menos e menos pessoas achem necessário produzir algo profissional, duradouro, de alto valor estético. Ao gravar um podcast, criar um vídeo para as redes sociais, escrever um "textão", você muitas vezes dá vazão ao desejo de produzir, de se expressar, de ter visibilidade, de se conectar com um público, e perde a energia necessária para realizar uma obra de maior impacto cultural.

- O estatismo, a organização da sociedade em tribos, o autoritarismo/intervencionismo na política, a cultura woke, políticas de "Diversidade, Equidade e Inclusão" e outros fenômenos modernos como o das Fake News são todos também consequências de uma população que se tornou mais pessimista e insegura, tanto emocionalmente quanto cognitivamente.

Estamos tão habituados aos estímulos constantes da internet que às vezes eles podem parecer inofensivos. Mas outro dia relendo um trecho de The Art of Non-Fiction, da Ayn Rand, ela me lembrou do quão sensível nosso subconsciente pode ser a estímulos externos, e o quão destrutivos eles se tornam quando não tomamos a iniciativa de impor certos filtros. O trecho me chamou atenção especialmente pelo livro The Shallows ter descrito o computador moderno como "um ecossistema de tecnologias de interrupção":

Se acordo pela manhã e sei, por exemplo, que terei um compromisso às 16h, eu não consigo escrever naquele dia. É como se minha mente se fechasse e se recusasse a trabalhar... Para escrever, você precisa se concentrar e manter seu subconsciente aberto, para que ele formule as ideias que você precisa. Se você sabe que em algum momento este processo poderá ser interrompido, independentemente do seu progresso, isto irá te travar completamente. Por isso, eu não aceito compromissos diurnos exceto quando são absolutamente inescapáveis... Preparar a mente para escrever é como esquentar um forno de fundição, que leva semanas até que ele chegue na temperatura certa para derreter aço. Requer um nível tão alto de concentração que uma interrupção é como o forno subitamente ficar frio. O tempo que leva pra você conseguir voltar a trabalhar é muito maior do que o do compromisso que causou a interrupção. Não só você não conseguirá trabalhar de novo naquele dia, como você provavelmente irá perder o dia seguinte também. O que você precisa subconscientemente para escrever é aquele senso de um futuro imediato sem interrupções. Que pelo menos naquele dia — e preferencialmente nos dias seguintes — você sabe que estará livre para se dedicar apenas à escrita solitária. Algumas pessoas são mais maleáveis, e muito depende da psico-epistemologia de cada um, mas é um absoluto que você não pode trabalhar se você sabe que uma interrupção é iminente.