Esta fala do Jerry Seinfeld em uma entrevista recente repercutiu bastante, talvez por refletir o sentimento de muitos espectadores hoje:
"A indústria do cinema acabou... O filme não ocupa mais o topo da hierarquia social e cultural que ocupou durante a maior parte de nossas vidas. Quando saía um filme, se fosse bom, íamos todos ver. Todos nós discutíamos sobre ele. Citávamos falas e cenas que gostamos. Agora estamos andando por uma mangueira de incêndio com água, apenas tentando enxergar."
Quando lhe perguntaram o que havia substituído o cinema, ele disse:
"Depressão? Mal-estar? Eu diria confusão. A desorientação substituiu o negócio do cinema. Todo mundo que conheço no show business, todos os dias, pergunta: O que está acontecendo? Como você faz isso? O que devemos fazer agora?"
Demorei um pouco para entender o que Seinfeld quis dizer com "mangueira de incêndio", mas daí me lembrei de uma analogia feita pelo Jonathan Haidt (autor do best-seller The Anxious Generation) no programa do Bill Maher mês passado que talvez seja a origem desta comparação: Haidt disse que a vida hoje com celulares e redes sociais é como viver com "uma mangueira de incêndio gigante acoplada aos seus olhos e ouvidos, bombeando lixo o tempo todo".
Considerando o que discuti na postagem Smartphones, Redes Sociais e o Declínio Cultural, não é difícil imaginar como a tecnologia pode ter promovido este colapso do entretenimento. Embora Seinfeld esteja falando de cinema e Haidt de celulares, quando falam em "mangueira de incêndio", ambos estão reclamando da mesma coisa: que somos expostos hoje a um excesso de conteúdo, e a um conteúdo sem valor.
Tudo isso me parece uma consequência natural do fato de estarmos conectados à internet o tempo todo, da produção de conteúdo ter barateado muito nas últimas décadas, e da nossa atenção ser sinônimo de dinheiro para empresas e anunciantes (o que inclui artistas, produtores de entretenimento e de "conteúdo").
Todo mundo sempre desejou ter a atenção do público, isso não é novidade. O que mudou é que antes havia barreiras naturais que dificultavam não só a produção de conteúdo, mas também a distribuição/exibição dele. Não havia como acoplar a tal mangueira de incêndio ao espectador.
A "mangueira" antes era mais fina, a substância que passava por ela era mais rara, tinha mais valor (por ser difícil e cara de se produzir), e a mangueira também era curta — tinha que atrair o espectador por não poder se esticar infinitamente até chegar na cara dele.
A tecnologia removeu todas essas barreiras. Agora conteúdo pode ser produzido em abundância, por qualquer um, e alcançar o público onde quer que ele esteja. O resultado é a sensação de caos que as analogias de Haidt e Seinfeld tentam capturar.
Como é improvável que a tecnologia regrida, a solução me parece ser a mesma que discuti no caso da Inteligência Artificial: a sociedade se auto-disciplinar quando entender os efeitos nocivos dessas facilidades tecnológicas. A internet é como se fosse o cigarro dos Millennials e da Geração Z; o "sexo livre" da atualidade. Assim como o sexo desprotegido e o consumo indiscriminado de tabaco/açúcar hoje já são evitados por pessoas que querem ter uma vida saudável, o consumo indiscriminado de conteúdo também deverá ser no futuro.
O que me lembra de um texto que postei há alguns meses nas minhas redes sociais:
Há uma razão pela qual, numa casa, colocamos vidro nas janelas, mas o encanamento fica escondido dentro de paredes opacas. Talvez no passado, quando ainda se estava experimentando com planejamento urbano, alguém tenha tido a ideia de construir um sistema de esgoto totalmente exposto, passando pelo meio das casas e das ruas - mas ao longo dos séculos, a humanidade teve que aprender na prática que nem tudo que faz parte dela deve ficar à vista pra ser contemplado o tempo todo. Talvez um processo similar de aprendizado tenha que ocorrer num futuro próximo, só que em relação à informação. Pois é como se a internet e as redes sociais tivessem padronizado um sistema de esgoto na cultura que usa canos de vidro, por onde passa não o lixo físico, mas o lixo espiritual da população. Ou pior: um sistema no qual esgoto e água limpa fluem juntos pelos mesmos canos. Esse tipo de exposição criará suas próprias categorias de doenças, pestes, infecções, pras quais ainda não temos todas as vacinas inventadas.
14 comentários:
Dizer que o cinema acabou me parece um pouco de exagero. Certamente houve mudanças nos gostos e interesses do público, mas o cinema ainda gera muito interesse e renda. Basta notar quanta repercussão e bilheteria tiveram os recentes Oppenheimer e Barbie (a qualidade dos filmes é outra questão). E muito antes da internet, já se falava que a televisão tinha acabado com o cinema e causado declínio cultural. Nesse sentido, pode-se até dizer que o cinema já estava "acabado" quando um único episódio de Seinfeld foi suficiente para arruinar a reputação de um filme premiado e aclamado pela crítica como O Paciente Inglês. Muitos espectadores da série adotaram as falas de Elaine sobre como O Paciente era chato, e passaram a repetir isso, e provavelmente nunca assistiram o filmes para ter opinião própria. Na série Elaine preferia uma comédia besteirol a O Paciente Inglês. Talvez a série estivesse apenas canalizando uma certa glorificação da incultura que tinha se tornado moda nos anos 90, de dizer "filmes de arte são chatos, quero ver Débi e Lóide ou Quem Vai Ficar com Mary", mas essa foi a opinião que acabou ganhando o público.
Se o cinema acabou, talvez Seinfeld tenha dado uma ajudinha.
Pedro.
Obviamente ele não estava sendo literal ao dizer que o cinema acabou, mas quando ele diz "o filme não ocupa mais o topo da hierarquia social e cultural que ocupou durante a maior parte de nossas vidas", acho que ele aponta algo real.. Nos anos 50, a TV roubou muito do público de cinema em números, mas não diminuiu o prestígio e a qualidade do cinema. Nos anos 60, 70, 80, 90, o cinema continou se desenvolvendo, reunindo os maiores talentos do entretenimento... Você acha que a crise atual é realmente só mais uma dessas ilusões do momento?
Onde você ouviu a história que o episódio do Seinfeld teria arruinado a reputação de O Paciente Inglês?! Eu nunca gostei muito de Seinfeld (ou de O Paciente Inglês) mas nunca ouvi falar disso.. e o episódio pelo que vi não critica o filme seriamente, já que a Elaine é retratada como uma figura cômica, de gosto vulgar. Não é muito diferente do episódio em que o Seinfeld vai ver A Lista de Schindler e passa o filme todo beijando uma mulher, ou desse sketch da mulher que diz que não gosta da Beyoncé https://www.youtube.com/watch?v=uDJaBtHhRIk
Sobre o que falei de O Paciente Inglês e Seinfeld, cito este artigo do site da BBC, traduzido:
"De vez em quando, surge um filme que surpreende o público com seu romance desmaiado, cenário histórico incrível e trilha sonora crescente. Aconteceu em 1939 com E o Vento Levou, em 1965 com Doutor Jivago, e em 1996, com O Paciente Inglês.
Os críticos de cinema atribuíram-lhe cinco estrelas, extasiados pela história do herói com muitas cicatrizes (Ralph Fiennes) relembrando seu caso apaixonado com Katharine (Kristin Scott Thomas) enquanto era cuidado pela enfermeira Hana (Juliette Binoche) – ela mesma desfrutando de um romance com Kip ( Naveen Andrews).
(...)
O público concordou: foi um sucesso de bilheteria em todo o mundo e foi indicado a 12 Oscars, nove dos quais venceria, incluindo melhor filme e melhor diretor. E ainda assim, depois de alguns meses de aclamação, virou moda zombar do luxuoso drama de época de Anthony Minghella.
Por que? Um episódio de Seinfeld em 1997 desempenhou um papel importante. Na verdade chamado de The English Patient, o episódio 17 da série 8 viu Elaine (Julia Louis-Dreyfus) declarando seu ódio pelo filme, exasperada por um mar de elogios e até perdendo o namorado, que não suportava ficar com alguém que não o fizesse. (...)"
https://www.bbc.com/culture/article/20210924-the-english-patient-is-it-time-to-revive-the-epic-romance
Pedro.
"An episode of Seinfeld in 1997 played a part".. Talvez.. é que eu não lembro de um backlash relevante ou maior que o habitual em relação ao filme (vi O Paciente Inglês no cinema e já acompanhava o Oscar na época). Mas é comum quando um filme é aclamado e ganha vários Oscars virar moda depois falar que ele não é tão bom assim.. aconteceu com Shakespeare Apaixonado, até com Titanic. Às vezes o backlash é merecido, às vezes é só ressentimento contra o sucesso. No caso do Paciente Inglês.. acho que é porque o filme de fato não era essa unanimidade toda.. era pelo menos um filme menos popular que Braveheart, Forrest Gump etc.
Pelo que lembro, O Paciente Inglês não era um filme muito popular, mas era respeitado e desde o início era visto como vencedor garantido do Oscar. Aliás não havia nenhum filme de grande bilheteria no Oscar 1997, o mais próximo disso era Jerry Maguire – A Grande Virada, que não empolgou o público que foi só para ver o Tom Cruise, e que acabou esquecido.
No caso de Shakespeare Apaixonado, o filme sofreu com a quebra de expectativa do público, que esperava e torcia pela vitória de O Resgate do Soldado Ryan. Titanic até sofre algum criticismo hoje, mas bem menos, porque era o franco favorito do público. Acho que, se Gênio Indomável ou Los Angeles – Cidade Proibida tivessem batido Titanic como melhor filme, receberiam o mesmo tratamento de Shakespeare Apaixonado. Titanic, assim como Soldado Ryan, por assim dizer, eram ganhadores de Oscar mais legítimos, porque eram grandes produções com enorme sucesso de bilheteria.
Também a internet deu mais espaço para o público se manifestar, e possibilitou a moda do backlash. Hoje filmes que vencessem o Oscar sem gozar da preferência do público, como Carruagens de Fogo ou Conduzindo Miss Daisy, que derrotaram concorrentes muito mais populares, não seriam recebidos com tanta conformidade como foram em seu tempo. E em muitos casos, o backlash é positivo, notadamente em alguns casos prévios. Filmes medíocres como Trapaça e La La Land sofreram muita reação negativa antes do Oscar, e merecidamente perderam.
Quando à crise, o cinema com tempo irá supera-la e se adaptar aos novos tempos, como já ocorreu anteriormente. E ainda muitos filmes dos tempos atuais serão reavaliados e vistos como grandes obras, como aconteceu em outras vezes. Quantos críticos não detestaram O Iluminado, quando foi lançado?
https://www.indiewire.com/features/general/the-shining-original-reviews-1980-1202233245/
Pedro
É, o Oscar 97 não teve filmes tão populares quanto de costume na categoria principal.. mas ainda assim, Jerry Maguire e O Paciente Inglês fizeram mais de 200 milhões de bilheteria cada um. Estavam entre os 10, 15 filmes mais populares do ano, no meio de Schwarzenegger, Stallone, Space Jam, Pânico etc. Algo bem diferente dos Oscars "indie" de hoje né..
Não duvido que a crise possa ser superada.. só quis dizer que pra isso acontecer, provavelmente será necessária uma grande correção de curso; uma onda de cineastas e produtores que se rebelem contra os modelos atuais de produção, e sejam bem-sucedidos. Não sei se fracassos como esses últimos da Marvel/Disney já serão o bastante pra provocar isso. Tomara que sim.. mas tenho a impressão que ainda não.
vc vai publicar alguma analise sobre Baby Reindeer?
Posso comentar sim.. Tenho sido mais esporádico nas críticas, mas quando alguém quiser que eu comente algum filme/série, pode pedir aqui que eu deixo minhas impressões se tiver visto.
Olá, Caio.
Vou aproveitar que está aberto a pedidos e pedir pela crítica de Shoah. Vi no seu letterbox agora que tu deu nota 10 e estou bastante intrigado.
Oi Leonardo!
Eu nunca formulei meus princípios para documentários no blog pois pra mim nunca foi um tema tão crucial.. Acho que se você ficou intrigado com minha nota é porque você provavelmente imagina que eu só daria um 10 pra um documentário prazeroso, com bons set pieces, uma curva ascendente etc. Por essa ótica, Shoah não estaria de fato dentro do paradigma Idealista. Seria um "documentário Não-Idealista" com foco na função histórica (o conteúdo até seria Idealista, já que se trata de uma denúncia do mal, mas não o estilo).
A questão é que eu coloco documentários e obras de não-ficção em outra categoria. Não os considero Arte na maioria dos casos. Eu sou contra o Naturalismo na ficção pois ele trai a função básica da arte que é recriar seletivamente a realidade de acordo com os ideais do artista, inspirar o espectador etc. Mas a função do documentário é outra. Claro que ele ainda precisa levar em conta a natureza do espectador, respeitar certos princípios (objetividade, oferecer algo de valor) mas o principal no documentário pra mim é o conteúdo, a relevância daquilo que ele expõe, ensina.
Da mesma forma que eu diria que a arte até pode ter uma função educativa, jornalística, desde que isso não vá contra sua função principal, eu diria o oposto pro documentário: que ele até pode entreter, ser imaginativo, carregar o estilo do autor (como os filmes do Michael Moore), desde que isso não traia a função básica da não-ficção.
Algumas coisas que eu levo em conta vendo um documentário:
- Se ele é racional, honesto, coerente.
- O quão bem ele consegue expor os fatos que se propôs a expor.
- Os esforços e virtudes exigidos do documentarista para apresentar os fatos.
- Se o documentário tem uma boa intenção/mensagem ou se é motivado por valores destrutivos.
- Se ele é único, autêntico, apresenta um material raro e exclusivo.
- A importância para o espectador e para a cultura dos fatos que ele expõe.
Imagine que um fotógrafo desenvolva uma tecnologia inovadora e por isso consiga tirar a primeira foto de uma nave extraterrestre.. E pela maneira como ele registre a nave, a imagem sirva como uma prova clara e inconfundível de que ela é real, e isso mude a ciência e a humanidade para sempre. Eu daria um "10" para esta foto.. Se por acaso ela também tivesse um enquadramento bonito, uma paleta de cores agradável, ótimo.. mas isso seria secundário. Eu não tiraria pontos porque há uma lixeira desnecessária aparecendo no canto, porque o alien está com a pele feia, etc.
Então é com base nisso que dei 5 estrelas pra Shoah.. Isso responde sua dúvida? Ou o que te intrigou foi outra coisa ligada ao tema em si do documentário? abs!
Responde minha dúvida sim. Pensava que os critérios seriam os mesmos, ou muito próximos, dos que tu usa para os filmes. Por esta razão, imaginei que Shoah fosse uma pérola escondida do Idealismo, uma versão em documentário de A Lista de Schindler. Obrigado pela resposta. Abraços!
Shoah parece ter sido uma grande inspiração/referência pro Spielberg ao fazer A Lista de Schindler. Inclusive pouco depois de finalizar o filme, ele fundou a USC Shoah Foundation, que capturou mais de 100 mil horas de depoimentos dos sobreviventes do holocausto - algo bem na intenção do documentário. O nome "Shoah" não tem relação direta; é apenas um termo hebraico para "holocausto". Mas o Spielberg trouxe para os arquivos da Shoah Foundation os depoimentos gravados pelo Claude Lanzmann para o documentário Shoah (1985) que não entraram para a edição final. Então há muitos paralelos.. Shoah é um documento histórico precioso, mas não é arte exatamente e nem pretende ser.. ainda assim, achei fascinante. Mesmo com 9 horas e meia (vi em etapas, claro) foram pouquíssimos os depoimentos que não me impressionaram. abs!
Sobre O Paciente Inglês, vi recentemente na internet que quase veio a ser uma grande produção da Fox, e que isso não ocorreu, porque o estúdio veio com escolhas meio estranhas para um "grande elenco", como Demi Moore (no lugar da Kristin Scott-Thomas) e Danny DeVito ou John Goodman (no lugar de Willem Defoe), a que o Anthony Minghella não foi receptivo. Se as pessoas acham ruim o filme como saiu, imagine se fosse lançado parecendo mais um pretexto para Demi tirar a roupa, como quase tudo que ela fazia na época. Já era um sinal do quanto os grandes estúdios estavam desorientados já naquela época. Difícil imaginar que chegasse ao Oscar.
Uma esperança seria mesmo que os critérios de produção mudassem, mas infelizmente isso ainda parece que vai demorar, e muito dinheiro continuará ser desperdiçado em coisas como O Dublê, porque os estúdios ainda preferem gastar rios de dinheiro no pensam ter apelo mais fácil.
Pedro.
Pedro.
É.. no cinema sempre existiu essa tensão entre o lado criativo e o lado comercial (por ter sido uma arte tão cara e colaborativa até agora - vai saber como será após a revolução IA). Só que em tempos melhores, havia um equilíbrio saudável entre essas duas forças. Agora na medida em que os artistas sérios vão saindo da indústria, o lado puramente comercial toma conta, pois não há mais a resistência de um Minghella, por exemplo, pra limitar os executivos.
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