segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Fevereiro 2025 - outros filmes vistos

Hard Truths (2024 / Mike Leigh) — Estudo de personagem focado em uma mãe de família mentalmente doente e extremamente desagradável. Além da performance marcante de Marianne Jean-Baptiste, a única coisa que torna a experiência interessante é que, às vezes, a neurose dela passa tanto do normal que começa a flertar com a personagem da Mink Stole em Desperate Living, tornando o filme cômico. Infelizmente, Hard Truths é mesmo um drama e, como drama, acaba sendo um daqueles "testes de empatia" para ver o quanto você aguenta o peso de uma pessoa destrutiva em nome de sua dor.

Capitão América: Admirável Mundo Novo (Captain America: Brave New World / 2025 / Julius Onah) — O maior mérito do filme é não ter as coisas toscas que vêm caracterizando os filmes recentes da Marvel. Mas isso não é o mesmo que ter algo memorável a mostrar. O filme preenche as 2 horas com um enredo funcional e cenas de ação enérgicas, mas que não têm personalidade nem geram qualquer emoção. Tudo parece cuidadosamente pensado pra não ofender ninguém, evitar qualquer risco ou ideia que chame atenção — exatamente o que se espera desse tipo de entretenimento feito por comitê.

Entre Montanhas (The Gorge / 2025 / Scott Derrickson) — A prova de que não adianta ter um diretor competente, um bom elenco e um conceito interessante — um roteiro bem desenvolvido é sempre necessário pra gerar um bom filme. O deste filme seria suficiente como backstory para um videogame, mas é desmiolado demais pra um longa que chama a Sigourney Weaver para fazer uma ponta e quer traçar paralelos com grandes clássicos da ficção científica.

Memórias de um Caracol (Memoir of a Snail / 2024 / Adam Elliot) — Uma coisa positiva da animação stop-motion é que cada minuto de filme exige tanto esforço para ser feito que toda cena acaba sendo muito bem planejada, coisas descartáveis do roteiro tendem a ficar de fora — há um tipo de rigor que o cinema foi perdendo nas últimas décadas, quando as câmeras digitais tornaram o ato de gravar "gratuito". Ainda assim, tive que me esforçar para terminar o filme porque ele é uma ode à fragilidade, à feiura, à desilusão e a todos os valores negativos do meu Mapa. O curioso é que há uma consistência incrível nos elementos e símbolos que ele usa pra representar esses valores, como se o cineasta tivesse consciência da conexão entre coisas como lesmas, Fidel Castro e queimar livros de autoajuda. Os ataques à igreja na história também são bem interessantes — me fizeram pensar se os Anti-Idealistas no fim são apenas ex-religiosos desiludidos que acharam que tinham que jogar fora todos os ideais positivos junto com a fé. Só não achei o filme totalmente inassistível por causa da ironia que ridiculariza tudo e todos — um efeito meio Parasita, em que o filme só mostra coisas decadentes, mas pelo menos não insiste que você tenha afeto por elas.

Sing Sing (2024 / Greg Kwedar) — Oscar-bait com uma boa performance de Colman Domingo, mas é daqueles roteiros que começam já no meio e se recusam a desenvolver completamente os arcos narrativos que introduzem, preferindo manter uma narrativa mais solta, semi-Naturalista. Outro problema é que o filme se esforça pouco pra estabelecer a inocência dos presidiários, fazendo você questionar se tudo pode realmente ser tão lúdico e positivo em uma prisão de segurança máxima (os personagens parecem tão honrados que você não entende por que eles estão presos, e a rotina em Sing Sing é tão agradável que você não entende por que eles ficam felizes quando são soltos).

Acompanhante Perfeita (Companion / 2025 / Drew Hancock) — Do popular gênero "fim de semana com os super-ricos termina em assassinato e revelações sinistras", o filme é mais bem dirigido do que eu esperava e apresenta uma premissa até instigante no começo, mas vai perdendo força com reviravoltas forçadas e com a mistura de thriller e comédia que nem sempre acerta o tom e tomba pro Idealismo Corrompido.

O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo / 2024 / Alexandre de La Patellière, Matthieu Delaporte) — Ainda tenho uma memória mais positiva da adaptação de 2002, que não vejo há décadas, mas, apesar de alguns toques "Missão: Impossível" questionáveis, esta nova versão é uma produção impressionante para os padrões franceses, e a base literária continua proporcionando uma narrativa envolvente.

Setembro 5 (September 5 / 2024 / Tim Fehlbaum) — Tem um certo clima de docudrama, já que o foco está todo nos acontecimentos históricos e nos desafios profissionais da equipe de jornalistas que cobriu o evento, sem muito espaço para inventividade cinematográfica ou desenvolvimento de personagens. Mas o que aconteceu nas Olimpíadas de Munique é tão dramático e urgente que o filme se sustenta como um bom thriller de jornalismo.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Cultura - Fevereiro 2025

15/2 - Anora vem ganhando bastante tração na temporada de prêmios, e um dos motivos que o tornam um dos filmes mais Anti-Idealistas (e aclamados) da temporada é que ele subverte de propósito narrativas estilo Cinderela — o conto da jovem pobre que conhece um homem rico e os dois vivem felizes para sempre. Se o sucesso do filme soa estranho pra você (ele não tem exatamente cara de Oscar), é porque Anora só faz sentido sob o prisma de uma negação — assim como Projeto Flórida (do mesmo diretor) só faz sentido como uma negação do Walt Disney World, que fica nas redondezas de onde a história se passa. O mérito do filme está em sua "habilidade" de ir contra todos os elementos esperados em um conto de fadas e mostrar como as coisas realmente seriam para as pessoas comuns.


7/2 - Escrita e Inteligência Artificial

Dei algumas diretrizes para o ChatGPT corrigir meus textos, focando em ortografia, gramática e pontuação, mas se atendo ao texto original, sem acrescentar ou remover ideias, implicações ou alterar o estilo. Ainda assim, algumas coisas acabam sofrendo alterações, até porque existem erros que se tornaram parte do meu estilo e que o corretor acaba removendo — compreensivelmente. Queria saber se isso incomoda vocês como leitores.

Minha postura no momento é ser contra a IA generativa para fins artísticos e criativos, mas não vejo um grande problema em usá-la para funções mais práticas e técnicas — coisas que pessoas criativas já tendem a delegar a revisores, assistentes, softwares, etc. O problema é que, como a ferramenta é capaz de tudo, até de escrever um texto inteiro por você, quem lê pode sempre ficar com a dúvida: até que ponto estou lendo algo autêntico, me conectando com o autor do texto, e até que ponto estou me conectando primeiramente com uma IA? Pra mim, a IA é o Auto-Tune do cérebro — e, assim como hoje não sabemos mais o quanto um cantor é realmente afinado no mercado musical, em breve não saberemos o quanto uma pessoa é inteligente, capaz de pensar sozinha, etc. Talvez a norma no futuro seja as pessoas fazerem declarações como esta, estabelecendo o papel que a IA tem no trabalho delas. Mas muito vai depender da confiança e do que a pessoa construiu antes da chegada da IA, no caso da geração que teve uma vida anterior.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Missas e Benevolência

Acho que desde criança não entrava em uma igreja pra ver uma missa de domingo, mas outro dia acabei assistindo uma missa anglicana pra acompanhar uma pessoa e tive uma percepção diferente da que tive no passado. Quando criança, o ambiente da igreja me remetia a dever, obediência, submissão, luto... Na minha percepção infantil, parecia uma atividade extremamente chata, meio sem sentido — um lugar onde você era proibido de fazer qualquer coisa minimamente prazerosa e que estava repleto de pessoas tristes, pensando na morte... Por que as pessoas gostavam de ficar ali? Se tivesse que classificar a experiência no meu Mapa de Valores, valores negativos como Repressão, Fragilidade e Malevolência teriam sido os mais dominantes.

Já nessa última missa, ficou claro para mim que o valor principal que o evento queria oferecer era Benevolência. Numa cultura onde Benevolência é o mais negligenciado dos quatro valores positivos, foi até surpreendente ver um ambiente onde se falava em esperança, paz, harmonia, inocência, e isso era desejado e levado a sério pelo "espectador". Onde músicas com "acordes doces" e mensagens otimistas eram cantadas por homens barbados — algo bastante improvável fora daquele espaço. Embora eu continue não sendo religioso, consegui me identificar melhor com a motivação das pessoas ali.

Tive até uma percepção diferente da imagem de Jesus crucificado. Em vez de uma romantização do autossacrifício, a imagem me pareceu apenas um pano de fundo para as palavras positivas e reconfortantes do padre — o Contraste malevolente estratégico pra dar peso e respeitabilidade à mensagem benevolente (a "invasão nazista" de A Noviça Rebelde, os "1500 mortos" de Titanic, etc.).

Não sei até que ponto essa leitura se aplicaria a uma missa católica ou até a outras missas desta mesma tradição, mas a reflexão que tirei da experiência é que, apesar do Idealismo ter sido minimizado no entretenimento, outras instituições acabam sempre acabam dando um jeito de suprir as necessidades emocionais da população ligadas aos valores positivos. Assim como o esporte pode servir como uma fonte de Autoestima e Excitação pra muita gente — algo que a arte vem deixando de oferecer — a Igreja pode ter se tornado uma das únicas fontes de Benevolência.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Como Salvar o Cinema: Minhas Sugestões

Brincando de ser prefeito de Hollywood, vou listar abaixo minhas recomendações para revitalizar o cinema.

De certa forma, meu livro e este blog inteiro são minhas sugestões de como melhorar o cinema. Mas neste post, vou apresentar uma estrutura resumida pra que fique um pouco mais claro como implementar essas ideias. 

Na minha visão, pra que uma indústria saudável e próspera exista, algumas condições são fundamentais:

Ambiente político favorável: uma sociedade livre politicamente, onde as pessoas possam produzir sem grandes impedimentos do governo.

Talentos: uma indústria que priorize excelência e esteja sempre cultivando e colhendo os melhores talentos da população.

Valores culturais/estéticos positivos: um clima cultural (público, intelectuais, instituições) que aprecie e incentive habilidade, prazer, benevolência, racionalidade, beleza — valores que promovam a felicidade.

Com liberdade, talentos e uma cultura positiva, acho que o cinema naturalmente prosperaria. Quando o cinema está em crise, é porque essas condições estão sendo minadas de alguma forma.

Considerando a crise atual do cinema americano, vou listar algumas mudanças que, na minha visão, são necessárias para que ele volte a ter a força que já teve no passado.

É importante ressaltar que, assim como o surgimento da televisão impactou o tamanho do público de cinema, novas formas de conteúdo e entretenimento, como YouTube e redes sociais, também são competidores legítimos de longas-metragens (que, para muitos, são só um passatempo). Com mais opções de entretenimento, é natural que filmes sejam vistos por menos pessoas e com menos frequência do que no passado. Mas isso não significa que a qualidade do que é produzido precise diminuir. O número de filmes produzidos e de espectadores em salas de cinema caiu bastante nos anos 50, mas a qualidade dos filmes não foi piorando progressivamente. Se a qualidade decaiu tanto na última década, não acho que seja por uma redução do público.

A crise atual do cinema é consequência de vários fatores culturais e econômicos interligados. Vou listar abaixo os principais problemas que vejo destruindo as condições listadas acima, e também uma breve indicação de como solucioná-los:

FALTA DE LIBERDADE E LIVRE COMPETIÇÃO

Nos EUA, ainda há liberdade suficiente para que o cinema prospere. Embora greves e outras questões atrasem a indústria, o governo não me parece ser o principal problema de Hollywood. (Se eu estivesse dando dicas para a indústria brasileira, a discussão já começaria aqui.

CULTURA ANTI-IDEALISTA E POLÍTICAS D.E.I.

Meritocracia sufocada pela filosofia DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão)
: ao colocar inclusão e diversidade acima de excelência, o mecanismo complexo que cultiva grandes talentos na indústria entra em curto-circuito.
Solução: contratar e reconhecer profissionais com base em excelência, resultados e compatibilidade com o projeto (vale para o Oscar e outras premiações).

A morte dos astros: astros de cinema são importantes para uma indústria vibrante. Parte do declínio dos astros tem a ver com as redes sociais e a banalização da fama provocada por essas novas tecnologias. Mas uma grande parte vem de tendências como a do Casting Naturalista, que age contra a criação de astros.
Solução: escalar atores com base em uma combinação ideal de talento, carisma e "star quality" — e preservar um mistério sobre a vida pessoal das celebridades.

Influências do Não Idealismo em produções comerciais: tanto em aspectos estéticos, que matam o escapismo e o glamour do cinema (como a fotografia naturalista), quanto em aspectos temáticos (filmes que buscam relevância por suas mensagens sociais, desconstruções estilísticas, etc.).
Solução: realinhamento com a estética Idealista e com a Primazia do Espectador (vale também para o Oscar).

Idealismo Corrompido dominando o entretenimento: Senso de Vida Malevolente e anti-heróis destruindo a leveza e o poder de inspiração dos filmes, que se tornaram mais sombrios, mais focados em sofrimento, conflitos, fragilidades humanas, etc.
Solução: realinhamento do entretenimento com princípios Idealistas.

Politicamente correto sufocando sex-appeal, humor e franqueza nos filmes.
Solução: liberar as grandes produções para que elas voltem a lidar com temas que realmente provoquem e surpreendam o público.

"CAPITALISMO PREDATÓRIO" E MERCANTILIZAÇÃO DO CINEMA

Falta de talentos e de liberdade criativa: grandes produções hoje são frequentemente comandadas por estúdios, empresários, comitês, não por artistas autênticos, o que reduz os talentos na indústria e a qualidade dos filmes.
Solução: resgatar o equilíbrio do passado que criava o "Gênio do Sistema" — a tensão produtiva entre escritores/diretores de talento excepcional, que protegiam a integridade artística do trabalho, e o produtor (alguém também educado artisticamente — não apenas um investidor), que protegia a viabilidade comercial do projeto.

Streaming: sistemas de assinatura que priorizam a atratividade da plataforma, não a de obras individuais, promovem uma "coletivização do entretenimento" que reduz a qualidade dos filmes.
Solução: tirar filmes novos de pacotes de assinatura, para que o sucesso comercial de cada filme volte a depender de transações individuais (ingressos de cinema, aluguéis e vendas digitais ou de mídias físicas).

Sequências, remakes e reboots: a fórmula de lucrar em cima de propriedades intelectuais estabelecidas, não no mérito de filmes individuais, também leva a uma deterioração da qualidade.
Solução: priorizar qualidade, originalidade, obras autocontidas, e reduzir o número de filmes que dependem de IPs.

Esta não é uma lista definitiva, e há outros problemas que poderia acrescentar no futuro, mas a maioria deles é consequência desses dois problemas mais fundamentais: o Anti-Idealismo na cultura e a mercantilização do cinema.

Não acho que seja possível algum poderoso revolucionar a indústria cinematográfica mexendo nesses fatores um a um, de forma calculada, pois há dinâmicas mais complexas por trás dos rumos que a cultura e a economia tomam. Não é possível, por exemplo, replicar em 2025 as mesmas condições que tornaram a geração Boomer ambiciosa e otimista há 50 anos. E as novas tecnologias que mudaram a relação do público com a produção audiovisual e com as celebridades também não devem desaparecer. Ainda assim, acho que algumas dessas dicas podem ser adotadas por produtores individuais que queiram fugir das práticas que vêm prejudicando o cinema atual.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Melhores de 2024 - Shortlist

Até a data do Oscar, devo fazer minha seleção dos melhores filmes de 2024. Em vez de simplesmente escolher minhas notas mais altas do ano, vou tentar compor um Top 5 mais estratégico, como se fosse o presidente do júri em um "Idealist Awards".

Vou listar abaixo os filmes elegíveis na enquete para quem quiser colaborar deixando suas sugestões. Considere as seguintes diretrizes:

- Meu objetivo é selecionar os melhores filmes do ano sob a perspectiva Idealista.

- Idealismo e Idealismo Crítico são a prioridade. Alguns filmes com elementos de Não-Idealismo e Idealismo Corrompido estão na lista, mas só devem ser escolhidos se você considerar que seus méritos compatíveis com o Idealismo compensam os desalinhamentos.

(Alguns ainda não assisti, pois estreiam nas próximas semanas, mas os incluí por achar que têm potencial para indicação.)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Janeiro 2025 - outros filmes vistos

Não tive estímulo para escrever sobre a maioria dos filmes que vi entre dezembro e janeiro, mas vou deixar alguns comentários para quem sentiu falta das minhas dicas:

A Verdadeira Dor (A Real Pain / 2024 / Jesse Eisenberg) — Road movie divertido, sustentado pela dinâmica da dupla central (que levanta uma discussão interessante sobre diferenças de personalidade) e pela performance brilhante de Kieran Culkin. Apesar de ser uma produção simples, te dá a sensação de estar vendo um filme sólido, "normal" — algo reconfortante nos dias de hoje. Teria incluído entre os indicados a Melhor Filme.

Canina (Nightbitch / 2024 / Marielle Heller) — Assim como Tully (2019), parece um filme feito para esposas assistirem com seus maridos quando querem dar o recado que eles precisam colaborar mais com as tarefas domésticas. O retrato da maternidade é tão penoso que uma mensagem mais interessante seria: jamais tenha filhos se você enxerga isso apenas como um dever em nome de perpetuar a espécie! Amy Adams está bem, mas acho que o filme funcionaria melhor como um drama convencional. A metáfora da cadela soa deslocada, não só por não ter um sentido muito claro, mas porque a direção convencional não sustenta os elementos cult da produção.

Nickel Boys (2024 / RaMell Ross) — Dos indicados a Melhor Filme, este talvez seja o que mais exige paciência do público. É um filme Naturalista de black trauma, mas com uma direção mais experimental que de costume, que usa câmeras subjetivas para colocar o espectador na pele de jovens negros nos anos 60, fazendo a gente sofrer em primeira pessoa as injustiças sociais da época. A execução tem seus méritos, mas é daqueles filmes meditativos, sem trama, que se sustentam exclusivamente na mensagem social.

A Garota da Agulha (The Girl with the Needle / 2024 / Magnus von Horn) — Começa parecendo um "horror de opressão" no estilo de Parasita (2019), onde a desigualdade social é o monstro que vitimiza a protagonista. No entanto, algumas reviravoltas na trama levam o filme além da discussão social, e o aproximam do território dos thrillers. A fotografia bonita em preto e branco e a direção estilizada, com toques de David Lynch e Lars von Trier, ajudam a tornar os temas perturbadores mais palatáveis.

Wallace & Gromit: Avengança (Wallace & Gromit: Vengeance Most Fowl / 2024 /  Merlin Crossingham, Nick Park) — É o tipo de aventura semi-cômica que não te permite nem levar muito a sério o que está acontecendo, nem gargalhar com as situações. Ainda assim, é satisfatório ver algo feito com tanto zelo, atenção aos detalhes e rigor criativo.

Conclave (2024 / Edward Berger) — Melhor filme de 2024 que vi até agora (ficção). Acaba tendo um pouco cara de Oscar bait, mas não por apelar pra temas "premiáveis" batidos, e sim por ser tão bom em todos os quesitos da produção (roteiro, direção, elenco, trilha sonora, fotografia) que fica impossível não associá-lo à temporada de prêmios. Assisti ao filme já sabendo quem venceria a disputa no final (graças ao spoiler de um influenciador), mas, mesmo assim, a narrativa permaneceu estimulante e surpreendente.

Queer (2024 / Luca Guadagnino) — Foi um dos filmes que me motivaram a escrever o texto Estilo Acima de Conteúdo. Tudo me pareceu um pretexto para o diretor mergulhar no universo de roupas, cenários e estereótipos que compõem a história. Mas a beleza aqui permanece na superfície — a elegância visual contrasta com personagens decadentes e um retrato nada glamouroso do amor e da natureza humana. O terceiro ato é um dos mais anticlimáticos e esquisitos que já vi. Daniel Craig se entrega totalmente ao papel, mas no sentido de estar disposto a parecer meio tolo diante das câmeras — o que, para mim, não é mérito. O destaque fica mesmo para a direção de arte e alguns momentos da trilha sonora (a faixa Wouldn't You? tem uma qualidade onírica incrível que me lembrou de composições do Maurice Jarre).

Jurado Nº 2 (Juror #2 / 2024 / Clint Eastwood) — Achei o filme mais sólido do Clint Eastwood como diretor desde Sniper Americano (2014). A premissa e o conflito moral central sustentam a história — ou seja, é um dos raros filmes de hoje que são carregados pelo roteiro. O que não gostei tanto foi que, mais para o final, o filme começa a se preocupar mais em exaltar o sistema judicial americano do que em oferecer um clímax satisfatório, considerando o protagonista e as expectativas criadas no início. Apenas sob um prisma patriótico e uma ética de dever o desenvolvimento da trama é realmente satisfatório.

Lee (2023 / Ellen Kuras) — Filme biográfico decente, porém convencional. Acompanha, de maneira episódica, os momentos mais relevantes da carreira da fotógrafa Lee Miller, mas sem tentar costurá-los em uma narrativa empolgante (é o tipo de filme que coloca a função histórica acima do prazer da plateia). Kate Winslet está profissional, como sempre, mas continua lutando contra sua feminilidade, o que, pra mim, não a favorece como atriz.

Babygirl (2024 / Halina Reijn) — Lembram da cena em De Olhos Bem Fechados em que a Nicole Kidman narra seu flerte com outro homem, humilhando o Tom Cruise? É como se a diretora tivesse amado aquele momento e decidido fazer um filme inteiro sobre a experiência da personagem, pensando em maneiras ainda mais humilhantes de uma mulher desonrar seu casamento. Segue essa onda de cinema feminista que tem o sexo masculino como alvo. O confuso é que parte do empoderamento feminino aqui é expresso por meio da mulher se submetendo a humilhações — não porque o homem quer, mas porque ela quer. Imagine assistir a Ninfomaníaca, mas sem ter a autorização do filme para desprezar moralmente a protagonista.

Tudo que Imaginamos Como Luz (All We Imagine as Light / 2024 / Payal Kapadia)Naturalismo radical, daqueles sobre pessoas humildes vivendo pequenos conflitos em sociedades pobres, sem trama nem nada de muito memorável do ponto de vista técnico.

A Semente do Fruto Sagrado (The Seed of the Sacred Fig / 2024 / Mohammad Rasoulof) — Tem uma estética meio Naturalista que pode desencorajar no início, mas o filme logo se transforma em um suspense político altamente envolvente, que usa um conflito familiar pequeno para ilustrar, de forma inteligente e bem integrada, questões maiores que assombram o Irã atual. Um dos mais impactantes do ano.

Todo Tempo que Temos (We Live in Time / 2024 / John Crowley) — Junta dois dos gêneros que menos gosto em uma narrativa só: filme de doença e filme de grávida. Há uma certa ternura entre o casal que impede o filme de parecer apelativo, mas, em vez de inspirar, realçando a força dos personagens, a leveza deles diante da morte acaba tornando a situação ainda mais deprimente. Andrew Garfield e Florence Pugh estão bem, mas a história é pura romantização do sofrimento.

Maria Callas (Maria / 2024 / Pablo Larraín) — Não gostei muito de Jackie, nem de Spencer, e Maria Callas é mais um filme de Larraín que parece uma meditação visual sobre uma diva bem vestida, em vez de uma biografia real. Se tivesse uma estrutura mais convencional, seria do tipo de biografia episódica e previsível, que apenas nos expõe fatos sobre a personagem. Mas, ao selecionar um recorte tão pequeno e subjetivo da vida de Callas, o filme acaba não exercendo nem essa função histórica. Não acho que era um papel para Angelina Jolie também.

Lobisomem (Wolf Man / 2024 / Leigh Whannell) — Há alguns momentos brilhantes que me lembraram por que gostei tanto de O Homem Invisível e vi potencial em Leigh Whannell como diretor. Mas, infelizmente, o roteiro é daqueles estilo Shyamalan, que apesar de mais autêntico e ambicioso que a média, vai se tornando cada vez mais forçado e se perde em decisões frustrantes.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Cultura - Janeiro 2025

24/01 - Indicados ao Oscar 2025

Só pelas indicações, este já é um dos pontos baixos da história do Oscar. Nos últimos anos, a Academia parecia estar dando passos em uma direção mais positiva, mas as eleições, pelo visto, a colocaram de volta no modo de "resistência". Entre os principais indicados, não acho Emilia Pérez o pior (O Brutalista e Anora, pra mim, são mais problemáticos), mas o fato de Emilia Pérez ter recebido 13 indicações é um grande dedo do meio para aqueles que esperavam uma edição mais tradicional. Já não é novidade que o Oscar hoje é mais um prêmio voltado para o cinema Não-Idealista (e Anti-Idealista). O que o torna mais indigesto que os festivais europeus é a inconsistência — o fato dele ainda misturar filmes como Conclave ou Wicked no meio, como se quisesse camuflar suas reais intenções. (Imagine criar uma premiação de arte moderna e colocar o mictório de Duchamp competindo contra uma escultura de Michelangelo, para, no fim, dar o prêmio ao mictório. Se o mictório estivesse competindo apenas contra outras obras pós-modernas e ganhasse, seria perfeitamente coerente. Mas ao colocar um artista clássico no meio, você cria a ilusão de que o mictório o superou com base nos mesmos critérios, o que é simplesmente confuso.)

O Oscar nunca foi consistente em relação ao Idealismo, e filmes Naturalistas ou de arte sempre pipocaram entre os indicados. A grande diferença agora é a proporção bem maior de obras Não-Idealistas/Anti-Idealistas na disputa, além da queda na qualidade desses filmes. Uma coisa é o Oscar ser inconsistente com o Idealismo e abrir espaço para filmes como As Vinhas da Ira (1940), Os Melhores Anos de Nossas Vidas (1946), Marty (1955), Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966), Laranja Mecânica (1971), Gritos e Sussurros (1972), Taxi Driver (1976). Mas custo a acreditar que a aclamação de filmes como Emilia Pérez seja apenas a versão moderna do mesmo fenômeno.

Quanto a Ainda Estou Aqui, as indicações a Melhor Filme e Melhor Atriz me parecem parte da diversidade tradicional da Academia. Não é diferente de quando filmes como O Beijo da Mulher-Aranha, O Piano ou O Carteiro e o Poeta competiram na categoria principal, ou de quando Fernanda Montenegro competiu como Melhor Atriz em 1999. Na minha versão ideal do Oscar, o prêmio de Melhor Filme seria voltado para o Idealismo e o Idealismo Crítico, e, em vez de Melhor Filme Internacional, haveria uma categoria secundária para reconhecer o Melhor Filme Não-Idealista do ano — filmes Naturalistas, políticos, experimentais, etc. Ainda Estou Aqui provavelmente entraria nessa categoria. Mas, considerando que a Academia sempre incluiu filmes mais inclinados ao Naturalismo entre os principais, isso não é um rompimento com sua tradição. O que é um rompimento é a qualidade subversiva de outros indicados, que refletem as diferenças entre o coletivismo "woke" moderno e o coletivismo que costumava exercer influência sobre o prêmio.


18/01 - Termômetro — Temporada de Prêmios 2025

Ainda não sabemos se o Oscar 2025 refletirá a mudança de atitude na cultura que ganhou força ano passado ou se os líderes da indústria cinematográfica serão uma frente de resistência a ela. Mas, olhando as previsões dos sites de apostas, a impressão é de que, no caso do Oscar, estamos caminhando para mais do mesmo: queridinhos de Cannes e Veneza se tornando os grandes favoritos ao prêmio principal, os filmes mais Anti-Idealistas ganhando toda a atenção, enquanto os mais Idealistas têm apenas uma participação simbólica.

A corrida ainda está aberta: O Brutalista, Anora, Emilia Pérez, Conclave e Wicked são mencionados pelos experts como possíveis favoritos.

Uma vitória de O Brutalista, Anora ou Emilia Pérez seria, pra mim, apenas "mais do mesmo" — aquele tipo de prêmio que vai contra toda a identidade tradicional da Academia, mantendo o Oscar alinhado com os festivais europeus.

Conclave ainda não assisti, mas parece ser um candidato mais tradicional, cuja vitória poderia indicar o "pêndulo" tentando voltar para uma posição mais neutra.

Wicked é um caso misto: segue muitas premissas Idealistas, mas inclui uma série de toques woke que o "modernizam". Se ele vencesse, interpretaria como um gesto da Academia para tentar fazer as pazes com o grande público, buscando prestigiar filmes populares, mas sem rejeitar a identidade progressista que adotou nas últimas décadas.

Quanto aos esnobes e omissões, o pouco caso com Divertida Mente 2 — a maior bilheteria do ano e um dos filmes mais consistentes com o Idealismo de 2024 — é a tendência mais frustrante.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Livro: Pendulum

Pendulum: How Past Generations Shape Our Present and Predict Our Future (Roy H. Williams, Michael R. Drew)

Apesar de ser bastante racionalista, este livro apresenta uma teoria interessante com a qual eu flertei no meu livro Idealismo sem saberEle sugere que as tendências culturais funcionam como um pêndulo que oscila entre "eu" e "nós" — entre individualismo e coletivismo — e que leva 40 anos para o pêndulo ir de um extremo ao outro (80 anos para completar um ciclo).

Os autores tratam o pêndulo como um mecanismo altamente confiável, que segue o mesmo padrão há milhares de anos sem grandes desvios, o que acho absurdo. Mas acho válida a ideia de que uma geração mais individualista tende a levar o conceito "longe demais", dando origem a um movimento oposto, mais coletivista, que também acaba exagerando na outra direção.

Em 2012, o livro profetizou que estávamos na ascensão de uma era "nós", que chegaria ao limite em 2023. Curiosamente, o livro chama de geração "Idealista" aquela que está na ascensão de uma era "eu". A última teria ocorrido entre 1963 e 1983 (ascensão da geração boomer — ou seja, eles colocam os hippies dos anos 60 e era Reagan no mesmo saco "individualista", o que é meio duvidoso), e a próxima se iniciaria apenas em 2043. De agora até lá, vivenciaríamos uma geração "Adaptativa", que esfriará os ideais perseguidos nos últimos 20 anos antes de acelerar na direção de um novo objetivo. No mínimo, vale para refletir.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Estilo Acima de Conteúdo

O cinema é uma mídia altamente expressiva e isso frequentemente atrai pessoas que querem usá-lo para explorar interesses e aptidões particulares, ignorando o fato de que ele é, essencialmente, uma arte narrativa. Um exemplo comum desse tipo de criador é o estilista ou designer — indivíduos que priorizam as propriedades visuais e sensoriais da arte. Esses criadores costumam se expressar por vias não-verbais e subjetivas, o que geralmente os torna inaptos como roteiristas de filmes. Ao idealizar um projeto, eles tendem a detalhar minuciosamente elementos como direção de arte, figurino, trilha sonora, fotografia e movimentos de câmera, tratando o roteiro apenas como um mal necessário para viabilizar sua visão estética. Para eles, o sentido do cinema está nos estímulos sensoriais e no universo estético que os fascina.

O problema é que estímulos sensoriais, por si só, não comunicam conceitos ou ideias e, portanto, não provocam emoções genuínas (exceto Emoções Irracionais). Quando um cineasta desse tipo tenta se expressar através da estética, ele está, na verdade, buscando um atalho. Ele escolhe uma estética porque ela o transporta para um universo que reflete seus ideais, mas não compreende a verdadeira origem de suas emoções. Por exemplo, um artista pode fazer um filme com a estética dos anos 1950 — Cadillacs, drive-ins, brilhantina, Marilyn Monroe, letreiros vintage da Coca-Cola, etc. Ao recriar esse visual, ele apenas toma emprestadas as emoções associadas a esses elementos, que foram construídas por artistas e obras anteriores. Ele espera que, ao representar fielmente esse estilo, o espectador sinta as mesmas emoções que ele associa a esse universo estético, sem precisar compreender ou expressar diretamente seus próprios valores. No caso dos anos 1950, o artista pode estar atraído por uma idealização da juventude, do capitalismo ou dos Estados Unidos. Ou então, ele pode usar a estética "perfeitinha" dos anos 50 para sugerir artificialidade e comunicar seu desprezo por esses mesmos temas. Em qualquer caso, o artista não trabalha diretamente com conceitos ou ideias, mas apenas referencia elementos concretos que no passado projetaram tais valores.

Filmes que tentam substituir conteúdo por estilo são sempre marcados por superficialidade e monotonia. Eles podem ter uma atmosfera interessante que atrai no início, mas rapidamente se tornam previsíveis e repetitivos. Isso ocorre porque suspense, surpresa e verdadeiro envolvimento dramático dependem do conteúdo.

Se um espectador do tipo "estilista" assistisse a um filme voltado para o conteúdo, e desligasse o som para focar apenas na direção de arte, nas cores dos cenários e nos figurinos, o filme pareceria totalmente incoerente. Seu apetite estético não seria "alimentado" de um plano para o outro. Os cortes e enquadramentos pareceriam aleatórios, como se seguissem uma lógica alienígena.

O mesmo acontece quando um espectador orientado pelo conteúdo assiste a um filme voltado para o estilo. Apesar dos personagens pronunciarem frases gramaticalmente corretas e suas ações terem alguma consistência, o conteúdo parece vago e desconexo. Não há uma lógica clara interligando as ações ou cenas, ou, quando há, essa lógica é secundária, com a estética ou atmosfera servindo como o principal elemento de conexão entre os planos.

O talento desses cineastas pode ser valioso em áreas como moda, design, publicidade e videoclipes, mas um longa-metragem não se sustenta apenas com esse tipo de comunicação. Por ser uma arte temporal, o cinema exige um enredo — que exige ideias, conceitos, valores e comunicação objetiva. Nenhuma pessoa racional tolera passar uma hora e meia em um transe sensorial, sem alimento para o intelecto.

Assim como o "como" depende do "o que", o estilo deve vir depois do conteúdo, servindo para dar vida e cor às ideias apresentadas no roteiro, que precisam ser envolventes e interessantes por si só.

Uma boa maneira de testar se uma música é realmente boa é tocá-la no piano — sem vocais, letra e seu arranjo original. Se ela continuar satisfatória apenas pela melodia, ritmo, harmonia e estrutura, trata-se de uma composição sólida. No cinema, o roteiro é esse conteúdo fundamental. Fotografia, direção de arte, atuações, efeitos especiais e trilha sonora vêm depois. Nos melhores casos, o estilo é tão memorável que se torna difícil imaginar a obra sem seus visuais e sons característicos, mas o roteiro é o alicerce. Sem o conteúdo, esses elementos estilísticos perdem toda a emoção associada a eles.

Exemplos:

Wes Anderson, Luca Guadagnino, Yorgos Lanthimos, Robert Eggers — Alguns cineastas fazem o que chamo de "fashion films": filmes que parecem existir quase exclusivamente pela estética e que, nos piores casos, se tornam exercícios vazios de estilo. Cenários, figurinos, estilos musicais e tudo relacionado ao design dominam a experiência. O enredo, nesses casos, parece existir apenas para viabilizar a estética, como o tema de um desfile de escola de samba, que orienta fantasias e alegorias, mas não é o foco principal do espectador.

Tim Burton, Baz Luhrmann, Guillermo del Toro, Jean-Pierre Jeunet, Sofia Coppola — Se encaixam parcialmente na categoria acima, mas seus filmes geralmente têm uma dose maior de enredo e conteúdo.

Filmes "Hitchcockianos", "Tarantinescos", "Kubrickianos" — Alguns cineastas se encantam tanto pelo estilo de diretores icônicos que seus filmes acabam se tornando exercícios de imitação, em vez de esforços genuínos para contar histórias próprias. Nesses casos, a imitação é uma tentativa de captar o talento desses artistas por meio da estética. (Tarantino, embora frequentemente imitado, é em parte um imitador também).

Filmes "Oitentistas", "Neo-Noir", etc. — O estilo de certas décadas ou gêneros pode inspirar cineastas que priorizam a estética em detrimento do conteúdo.

Brady Corbet, Jonathan Glazer, Xavier Dolan, Gaspar Noé e os "Fashion Films" de Arte — A estética rústica e obscura associada ao cinema de arte pode atrair cineastas interessados em prestígio, prêmios, levando ao fenômeno da Pseudo-Sofisticação.

Christopher Nolan, Zack Snyder, Denis Villeneuve — A imponência e as proezas técnicas dos blockbusters podem ser vistas como um "estilo" — criam uma estética atraente que frequentemente serve como um substituto para o conteúdo narrativo. Embora não façam filmes desprovidos de conteúdo, muitos dos sucessos desses cineastas se sustentam na grandiosidade e na "sensualidade" de suas produções.

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sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Problemas do Objetivismo #12 - Ambição vs. Ganância

Alguns intelectuais objetivistas às vezes ignoram ou "passam pano" para um aspecto negativo do mundo dos negócios que é extremamente comum e malvisto pela maior parte da população: a atitude de empresários que não enxergam a diferença entre ganhar dinheiro e criar algo de valor.

Ansiosos por defender o capitalismo e os princípios do livre mercado, eles às vezes esquecem que muitas coisas feitas em liberdade podem, e frequentemente são, menos que heroicas.

Um objetivista concordaria que é imoral um marido violentar fisicamente sua esposa e que ele deveria ser punido por isso. Mas, dentro do que é permitido pela lei, existe uma diferença enorme entre um casamento feliz e uma relação tóxica, dominada por mentiras, incompatibilidades e ressentimento — embora esse tipo de relação seja perfeitamente legal. Não precisamos sugerir que o governo deva interferir ou proibir aquilo que é imoral ou desprezível — mas isso não significa que devemos ignorar as diferenças entre o que é admirável e o que não é.

Há uma diferença enorme, por exemplo, entre Walt Disney e Bob Iger (atual CEO da Disney). Ambos queriam fazer dinheiro, mas Walt Disney claramente buscava isso como consequência de criar algo magnífico e oferecer um grande valor para seus clientes. Ele disse uma vez que, na Disneyland, queria que o cliente pudesse entrar em um prédio de 1 milhão de dólares pra comprar um hambúrguer por 50 centavos. Obviamente, ele esperava lucrar com essa troca — Disney não era um altruísta. Ainda assim, ele parecia encantado com a possibilidade de fazer o cliente sentir que pagou pouco em comparação com o benefício que teve. Iger já parece ser do tipo que se orgulharia de conseguir vender por 1 milhão de dólares um produto que, na prática, vale 50 centavos.

Muitos acreditam que não é possível ser bem-sucedido prejudicando seus clientes, pois as forças do mercado trabalhariam contra você. A longo prazo, isso pode até ser verdade. Mas essas forças de mercado frequentemente demoram décadas para agir, permitindo que empresários acumulem fortunas por muito tempo através de táticas desprezíveis.

Entre atitudes virtuosas, que promovem relações ganha-ganha, e ações destrutivas que levam uma empresa à falência, existe uma vasta zona cinzenta com inúmeras graduações intermediárias. No extremo positivo, temos o empresário do "Tipo 1" que foca no quanto de valor ele pode produzir, em quão excelente pode tornar seu produto ou serviço, e no quanto pode satisfazer seus consumidores (sempre dentro de um modelo lucrativo). No extremo negativo, temos o empresário "Tipo 2" que busca o máximo de lucro testando os limites de seu público: flertando com atitudes abusivas e manipulativas, vendo até onde pode baratear e degradar seu produto antes de sofrer prejuízos concretos.

Na minha percepção, o primeiro tipo de empresário tende a lucrar mais a longo prazo (além de Walt Disney, citaria Steve Jobs como outro bom exemplo de empresário preocupado com qualidade e com o valor gerado para o consumidor). Mas é possível que, em certos contextos, o segundo tipo seja mais lucrativo. Isso não o torna superior como empresário. O objetivismo diz que devemos produzir, gerar riquezas e buscar uma vida materialmente confortável — mas não diz que devemos sempre buscar o máximo de dinheiro possível. Nosso foco deve ser nossa felicidade, nosso desenvolvimento pessoal. E o tipo de empresário focado em criar o máximo valor e em promover relações ganha-ganha está muito mais alinhado com esses objetivos.

Infelizmente, muitas pessoas parecem cegas para o verdadeiro valor de um produto. Enxergam apenas dados e números, interpretando o sucesso comercial de algo como sua principal medida de valor. Se você é bom em economia, mas não entende nada de entretenimento, por exemplo, você pode achar que Bob Iger tomou uma decisão brilhante ao colocar Moana 2 nos cinemas, em vez de lançá-lo como série no Disney+, como era o plano original. Olhando apenas para os números, Iger vai parecer um empresário virtuoso, promovendo o crescimento de sua empresa e atendendo os desejos do consumidor (o filme se tornou uma das maiores bilheterias de 2024). É necessária alguma sensibilidade estética e conhecimento da indústria para reconhecer que Iger agiu como o segundo tipo de empresário.

Consigo imaginar cenários em que priorizar o lucro, e não a geração de valor, seja aceitável (situações de pobreza, por exemplo, onde o foco do produtor é a sobrevivência). Mas lucrar sem gerar algo tangível de valor (riquezas "com lastro") não proporciona um senso de realização pessoal. Se uma pessoa trabalha apenas para ganhar dinheiro, seu trabalho dificilmente será gratificante, e ela terá que buscar essa realização em outro lugar. A situação ideal, portanto, é alinhar trabalho com valores e propósitos mais elevados.

A maioria das pessoas, creio eu, admira empresários do Tipo 1. Existem anti-capitalistas que rejeitam sucesso de qualquer tipo, mas muitos ataques a empresários que vemos na cultura popular não são contra o capitalismo em si, mas contra a atitude dos empresários do Tipo 2. Sugerir que esses empresários devam ser punidos pelo governo é errado, mas o desprezo ou falta de admiração por parte da população não são necessariamente maus.

Assim como o termo "egoísmo" tem uma conotação positiva no objetivismo, o termo "ganância" às vezes recebe o mesmo tratamento. Mas ganância não é sinônimo de ambição. É um termo usado principalmente para descrever processos imorais de obter riqueza.

Há pessoas demais lucrando através desses processos para ignorarmos as diferenças entre os gênios produtivos retratados nos romances de Ayn Rand e os empresários do Tipo 2. Enquanto objetivistas tratarem essas mentalidades distintas com o mesmo senso de respeito, eles continuarão promovendo a falsa impressão de que o objetivismo coloca riqueza material acima da felicidade humana e dos valores que a possibilitam.

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