quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Frankenstein

Até a cena do nascimento da criatura, estava achando Frankenstein o melhor filme de 2025 (o que foi uma completa surpresa para mim, considerando minha antipatia habitual pelos filmes do diretor). Na segunda metade, porém — especialmente quando a história passa a ser contada pela perspectiva do “monstro” — o filme começa a escorregar, criando um dos contrastes de qualidade mais frustrantes de que me lembro entre duas partes de um mesmo filme. 

Nunca li o livro de Mary Shelley, mas eu podia jurar que conseguia distinguir, só pela qualidade do texto e do desenvolvimento da trama, o que era uma adaptação fiel à obra original e o que tinha sido criado por del Toro. A segunda parte é cheia daqueles problemas de lógica e plausibilidade típicos do cinema moderno: quando a criatura volta às ruínas do laboratório, por exemplo, ela encontra diversos estudos e uma carta com o endereço atual de Viktor — como esses papéis ainda estavam ali, praticamente intactos, depois de meses (ou anos) expostos à neve, chuva e vento?

Sem falar que não faz o menor sentido a criatura — que no prólogo é apresentada como um monstro implacável, pior que Voldemort, o T-1000 e o Xenomorfo combinados — invadir o navio e, em vez de matar todo mundo, resolver educadamente começar a narrar sua história de vida. Os diálogos também subitamente emburrecem, se tornando óbvios (on the nose), piegas, novelescos, como quando a criatura diz a Viktor: “Você é o monstro”, “Viktor, eu te perdoo” ou “Talvez agora possamos ambos ser humanos”. Compare isso com a qualidade de alguns diálogos da primeira parte, como as discussões científicas (ou quase) entre Viktor e seus colegas de profissão.

A direção de arte e toda a produção de Frankenstein são ótimas — mas, como de costume, o departamento de roteiro não foi tratado com os mesmos padrões de excelência.

Frankenstein / 2025 / Guillermo del Toro

terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Agente Secreto

ANOTAÇÕES:

(Os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

- A cena inicial no posto (com o cadáver) seria uma boa abertura se funcionasse como um microcosmo do filme — uma representação simbólica de um tema central que seria desenvolvido depois (a corrupção da polícia, das instituições). O problema é que o filme não tem um tema claro, tornando a cena meio solta, apenas um dos diversos episódios excêntricos que veremos ao longo da narrativa.

- É preciso diferenciar filmes bem dirigidos de direções com personalidade. São duas coisas distintas, e que nem sempre andam juntas. Aqui, a direção tem bastante personalidade, que se manifesta principalmente na atitude irônica e nos detalhes bizarros inseridos em todos os lugares (o morto no posto, a gata de duas cabeças, a perna decepada, as referências inusitadas à cultura pop americana, as cenas de sexo em público etc.). Mas isso, por si só, ainda não é uma boa direção.

- Não sei se o diretor tem um olhar que sem querer revela a feiura das coisas, ou se isso é proposital — se ele tem algum compromisso ideológico com a representação do feio na arte. Apesar de tanto O Agente Secreto quanto Ainda Estou Aqui serem filmes Naturalistas que se passam no período da ditadura militar, há um fascínio pelo grotesco e pela feiura em O Agente Secreto que reflete um Senso de Vida bem diferente. Se você desse uma câmera fotográfica a Kleber Mendonça e outra a Walter Salles, e pedisse que eles escolhessem qualquer lugar do mundo para fotografar, ambos provavelmente escolheriam uma realidade brasileira, situações de vulnerabilidade social, usariam luz natural, poucos efeitos... Mas enquanto Salles andaria por esse local buscando detalhes bonitos pra registrar, Kleber andaria pelo mesmo ambiente atento a tudo que é nojento — um animal atropelado na rua, um rosto desfigurado, uma camisinha descartada no mato — e é esse tipo de coisa que ele acharia digno de capturar e apresentar ao público.

- Meia hora de projeção e ainda não sabemos praticamente nada sobre o personagem — o que ele faz, o que busca etc. O filme parece mais um pretexto para retratar "brasilidades" (coxinha, carnaval de rua etc.) e recriar a atmosfera de um lugar/época que desperta nostalgia no cineasta (Kleber cresceu em Recife nos anos 70). 

- Wagner Moura está bem. É uma performance sutil, sem aqueles momentos intensos e virtuosos que associamos a prêmios, mas o elenco, de modo geral, é bom.

- Existe uma trama em algum lugar aqui, mas por algum motivo o cineasta não quer que o espectador saiba direito do que ela se trata. Por volta dos 40 minutos, descobrimos que homens estão indo atrás do Marcelo (Wagner Moura) para matá-lo — mas pra ficarmos realmente envolvidos, precisaríamos entender os valores em jogo: o que o protagonista fez, se ele é inocente ou culpado, qual o contexto, quais os planos de cada lado etc. É o típico filme autoral pretensioso que acha que o espectador deve entrar na sala já conhecendo as referências do artista. Pense em alguém de fora do Brasil vendo este filme: a pessoa sequer vai entender o contexto da ditadura militar, o que tornará a perseguição ainda mais sem sentido.

- Como de costume, há uma demonização de todos aqueles que estão em cargos de poder ou em posições de “privilégio”: policiais, empresários e patrões viram sinônimos de assassinos, estupradores, escravagistas etc.

- Qual a relevância da história da perna? Do alfaiate judeu com as cicatrizes? Da sala de cinema? O filme às vezes parece uma coleção de sketches que o diretor foi escrevendo ao longo do tempo e resolveu juntar em um único longa, sem grandes preocupações com coerência temática.

- Por volta de 1h40 entendemos aquilo que, em um filme narrativo normal, seria estabelecido nos primeiros 20 minutos — o que o protagonista fez e quem quer matá-lo. O grande vilão do filme é o cara que quer cortar verbas da universidade pública por questionar a qualidade dos projetos de pesquisa. Tá certo que ele está errado em mandar matar o Wagner Moura... Mas que eu acreditei mais nele do que no Wagner em relação às pesquisas da universidade, isso eu acreditei.

- Chamar o longa O Agente Secreto, sugerindo uma espécie de trama hitchcockiana, é apenas uma ironia do diretor — uma daquelas referências passivo-agressivas ao Idealismo que Anti-Idealistas adoram fazer, sem a menor intenção de segui-las.

- Já suspeitava desde o início que o personagem do Bobbi seria ridicularizado, morto ou ambos: por que um filme tão comprometido com a feiura escalaria um ator como Gabriel Leone?

- SPOILER: É coerente o protagonista ser assassinado e o filme nem mostrar isso — revelar só depois, numa matéria de jornal, como um fato corriqueiro. Se tudo culminasse numa perseguição grandiosa e empolgante, eu provavelmente teria gostado um pouco mais do filme. Mas isso teria sido menos consistente com a atitude niilista e anti-espectador do resto do longa.

- Anticlimáticos esses saltos para o presente, onde as garotas estão fazendo pesquisa na universidade. A estética não conversa com o resto do filme. (Mas quem está preocupado com coesão, harmonia?)

- No fim, o filme entra numa discussão aleatória sobre memória e o apagamento do passado que parece pertencer mais ao filme anterior do diretor (Retratos Fantasmas) do que a este.

O Agente Secreto / 2025 / Kleber Mendonça Filho

sábado, 25 de outubro de 2025

Casa de Dinamite

Durante os primeiros 30 minutos, achei que estava vendo um filme sólido, na linha de Setembro 5. Apesar de cair um pouco na categoria “filme de serviço”, o que acontece no emprego dos personagens nesse dia é tão extremo que consegue prender a atenção, mesmo na ausência de personagens mais cativantes. O elenco é bom, o gancho é forte e bem posicionado: logo nos primeiros 10 minutos, agentes do Departamento de Segurança dos EUA detectam um míssil vindo em direção ao país — que logo se revela uma bomba nuclear. O problema é que o míssil é tão rápido que restam menos de 20 minutos para os personagens fazerem qualquer coisa. Fiquei me perguntando: como o roteiro lidará com isso? A bomba cairá já no final do “ato 1”, e o resto do filme será sobre as consequências? Ou o filme criará uma distorção temporal, esticando esses 20 minutos pra que durem uma hora e meia?

Infelizmente, o caminho escolhido é o menos interessante: toda vez que a bomba está prestes a atingir o solo, o filme reinicia a narrativa — só que agora pelo ponto de vista de outro personagem. Como comentei em A Hora do Mal, tendo a achar uma chatice essa coisa de múltiplas perspectivas. Em vez de tornar a narrativa mais empolgante, isso costuma ser puro Idealismo Corrompido, uma tática pra tirar o foco do suspense e do espetáculo e se concentrar nas angústias e dilemas dos personagens (algo mais “humano” e “intimista”) — além, claro, da mensagem subjetivista que costuma acompanhar essa abordagem (“vejam, existem diversas verdades!”). Se você quer mostrar múltiplas perspectivas, o cinema já oferece uma ferramenta pra isso: a edição paralela. Não é necessário reiniciar toda a história.

SPOILER: Se ao final de tudo tivéssemos uma recompensa satisfatória pro gancho inicial — se houvesse uma grande cena envolvendo a bomba — a espera teria valido a pena. Mas o filme tem o desfecho mais brochante possível, terminando sem mostrar se a bomba cai, de onde ela veio ou quais são as consequências — uma completa traição às expectativas criadas no espectador. Os créditos finais surgem na tela de forma tão abrupta e seca que, por um momento, achei que tivesse sentado em cima do controle remoto e pulado uns minutos pra frente. Se o filme tivesse personagens riquíssimos e o interesse central fosse as relações entre eles, talvez a bomba não fizesse falta. Mas aqui, os personagens são funcionários do governo que só nos interessam na medida em que estão lidando com um evento catastrófico. Não há interesse algum na “dimensão pessoal”. Casa de Dinamite parece um roteiro inacabado — um longo ato 1 que não leva a lugar nenhum.

O único sentido que consigo fazer desse filme é que o propósito da diretora não era criar um suspense eletrizante, nem um drama humano — mas apenas manchar a imagem do governo americano, mostrando o despreparo de todos diante de uma crise global. E não como uma crítica construtiva, feita por alguém que espera competência e padrões mais elevados. É apenas o prazer de mostrar que somos todos falhos, que não existem heróis — nem no alto escalão da maior potência do mundo.

O engraçado é que, seguindo a agenda D.E.I., o filme é repleto de mulheres, latinos e negros em posições de liderança. O problema é que, nesse caso, essa inclusão não é nem um pouco lisonjeira — e pode até levar alguns espectadores a ligar os pontos entre políticas D.E.I. e incompetência, tirando do filme uma mensagem que não me parece ser a planejada pela diretora.

A House of Dynamite / 2025 / Kathryn Bigelow

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Cultura - Outubro 2025

22/10 — Nunca estive tão pouco motivado pra ir ao cinema (ou pra escrever críticas) quanto em 2025. A média de qualidade dos filmes anda tão baixa que já não tem me bastado mais dividi-los entre “bons” e “ruins”. É preciso criar uma nova categoria — algo que distinga filmes de verdade de meros conteúdos audiovisuais.

Digo isso porque acho que nem todo vídeo com mais de 70 minutos é automaticamente um “filme” no sentido tradicional — assim como nem toda substância comestível em quantidade suficiente pra encher a barriga pode ser chamada de uma “refeição”. Pra que um vídeo longo se torne um filme, na minha concepção, ele precisa oferecer uma quantia mínima de nutrientes: um mínimo de investimento criativo, de estrutura narrativa, de ideias originais, de talento, ambição, escapismo etc.

É o que quis dizer no texto Filmes Nota 6 Salvariam a Indústria. Mas, dos cinquenta e poucos longas de ficção de 2025 que vi até agora, diria que apenas uns sete ou oito eram realmente filmes. Não estou dizendo que eram bons filmes ainda — apenas que me deram a sensação de estar vendo um filme. Todo o resto se encaixava melhor na categoria de “conteúdo audiovisual”.

Pegue as principais estreias das últimas semanas: O Telefone Preto 2, O Bom Bandido, A Casa Mágica da Gabby, The Mastermind, Tron – Ares, Depois da Caçada, Casa de Dinamite, GOAT, Coração de Lutador – The Smashing Machine, Os Estranhos: Capítulo 2 — nenhum desses filmes me fez ir animado ao cinema, com a convicção de que, se eu comprasse o ingresso, eles me divertiriam, me fariam sair inspirado da sala, energizado ou algo do tipo. Os que arrisquei ver dessa lista, de fato, não fizeram isso.

Sem falar que ninguém fora da bolha cinéfila parece saber que esses filmes existem. Quando um filme é fraco, mas é um evento cultural, ainda há certo interesse em vê-lo, discuti-lo. Mas não há graça em discutir filmes medíocres que não têm o menor impacto na cultura.

Não me parece acidental que 2025 — além de ser o ano cinematográfico mais tedioso de que me lembro — tenha se tornado também o ano dos relançamentos. A programação está tão lotada de clássicos que, numa cidade como São Paulo, quando você abre o Ingresso.com, os filmes novos se perdem no meio de tantas opções antigas. Quando os lançamentos deixam de cumprir suas funções enquanto entretenimento, reexibir filmes antigos começa a se tornar um negócio cada vez mais lucrativo.

sábado, 11 de outubro de 2025

Update: Faculdade

11/10 — Entrei em uma faculdade de Psicologia neste 2º semestre e apenas como um relato do tipo de coisa que tem sido ensinada pelos professores, vou postar abaixo um trecho da minha aula de Psicologia Social desta semana:

Como um outro professor já admitiu, não existe Psicologia Social que não seja marxista no Brasil. Porém, Psicologia Social não é a única matéria que estou cursando neste semestre. Nas aulas de Solução de Conflitos, por exemplo, o viés marxista é quase tão escancarado. Nesses primeiros dois meses, ouvi falar muito mais de Karl Marx e Paulo Freire do que de Freud e Jung.

Decidi começar a ler por conta própria livros sobre Psicologia e História da Psicologia para tentar absorver um pouco de teoria e me situar melhor no curso, pois o método de ensino é realmente caótico. Não só porque já estão dando no 1º semestre matérias avançadas que pressupõem uma base prévia em Psicologia, deixando todo mundo perdido, mas também porque os professores têm certo desdém pelo método científico e promovem aquela mentalidade pós-moderna de que tudo é relativo, de que não existem verdades absolutas, de que professor e aluno "aprendem juntos" etc.

Eu já sabia que as faculdades tinham esse tipo de agenda política, mas imaginava que seria algo inserido discretamente no meio do ensino da disciplina, que seria o foco principal. Porém, a impressão que estou tendo é quase a oposta: de que a "conscientização política" é o foco principal e, no meio disso, eles ensinam uma ou outra coisa útil para o exercício da profissão.

De uma forma meio distorcida, até que está sendo interessante. Por enquanto, não tenho aprendido muito sobre psicologia em si, mas tenho aprendido algo sobre as instituições e sobre como a cultura ao nosso redor é moldada.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Outubro 2025 - outros filmes vistos

Tron: Ares (2025 / Joachim Rønning) — Imagens e sons bonitos, mas pura mediocridade no nível da história, dos diálogos, do elenco, das mensagens (é daqueles filmes tipo Avatar que te atraem pela tecnologia e pelo alto valor de produção, mas daí trazem um enredo anti-capitalista pra “equilibrar”). 

Na minha viagem recente pra Orlando, tive uma impressão muito forte: a de que os parques da Disney representam algo muito mais grandioso e vital para a empresa do que a divisão de cinema. E talvez isso explique, em parte, a mediocridade dos filmes. Em muitos casos, os produtores não estão tentando criar obras duradouras, que sejam fins em si mesmas. O verdadeiro produto é o parque — e os filmes servem principalmente para manter as atrações “quentes” no imaginário popular. A montanha-russa do Tron, inaugurada em 2023, é atualmente a atração mais disputada do Magic Kingdom (a Disney de Xangai tem uma desde 2016). Faz sentido, portanto, produzir mais filmes da franquia Tron pra manter o brinquedo em alta. O mesmo vale para novos conteúdos de Star Wars, sequências de Avatar e remakes live-action dos clássicos. A reforma atual da Frontierland trará uma nova área baseada em Carros — então, se uma sequência de Carros for anunciada nos próximos anos, vocês já sabem o motivo. Ou seja, com raras exceções, a Disney tem feito filmes não com a mentalidade de quem vê o cinema como sua própria experiência, mas com a mentalidade de quem produz aqueles vídeos temáticos que passam na fila do brinquedo. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

IA e Criatividade

Temos visto cada vez mais pessoas realizando trabalhos artísticos com o uso da IA. Isso vem levantando uma série de discussões a respeito do papel da arte, mas nenhum debate pode ser satisfatório se ignorar um princípio central: certos produtos humanos — como a arte — não são meramente utilitários. Não são como um pedaço de pão, que serve apenas para matar a fome, sem que importe de onde ele veio, quem o preparou etc. Certos produtos têm valor porque refletem as virtudes e qualidades pessoais do criador — seu interesse não está meramente no objeto à sua frente, mas também no que ele revela a respeito da pessoa que o criou. 

Fazendo uma analogia, o valor de uma fotografia não está apenas no prazer que as cores e formas que ela revela provocam nos seus olhos. Boa parte do valor está na suposição de que aquela imagem representa algo que existe no mundo real. Se você adultera totalmente a foto, ela perde esse valor documental. Já quando vemos uma obra de arte — uma pintura, por exemplo — não assumimos que ela reflete uma realidade física exata. Seu valor depende de ela refletir outro tipo de realidade — a do artista: o que inclui não apenas suas ideias, visões e valores, mas também suas capacidades e talentos.

Frequentemente, somos inspirados mais pelas virtudes do artista representadas em uma obra do que pela "mensagem" em si ou pelo conteúdo. Pense nos seus artistas favoritos e no quanto o fato de eles demonstrarem habilidades extraordinárias em seu trabalho pesa na sua admiração. O Davi de Michelangelo teria grande apelo se tivesse sido feito por uma impressora 3D, e tivéssemos que avaliá-lo apenas pela ideia do criador, e não também pela execução?

Pra mim, esta é a discussão central no que diz respeito à IA e à criatividade. As virtudes e habilidades reais do artista importam? Ou apenas a intenção, a visão geral? Quem não vê problema em criar arte com IA parte do princípio de que apenas a visão geral conta — o “gosto” do artista — pouco importando suas reais capacidades. Já para quem acha que a arte deve refletir os talentos do artista, criar com IA parece uma espécie de fraude — quebra o contrato implícito que sempre existiu entre artista e espectador: o de que a obra reflete tanto a visão quanto as habilidades do criador. Pra esse espectador, apreciar arte criada por IA é como estar na posição de um professor corrigindo redações escritas com o ChatGPT: tentando se concentrar apenas na intenção e nas decisões amplas que governam o texto, mas sem ter como saber se o aluno entendeu a matéria, se sabe escrever ou se é semi-analfabeto.

Acho que é um engano pensar que o artista que cria com IA será admirado pelo seu “dom” de criar prompts, da mesma forma que um diretor de cinema é celebrado como o autor de um filme, mesmo dependendo de outras pessoas para executar sua visão. A partir do momento em que você introduz a IA no jogo, o espectador já não confia mais na autenticidade plena da obra. Ele não tem como saber se a IA está apenas executando as ideias originais do autor ou se está “tendo ideias” por ele (copiando de outras obras). Assim, a arte deixa de refletir a realidade interna do artista e perde um de seus atributos mais essenciais — como no caso de falsificações. 

Não acho que a IA generativa deva ser banida. Mas acho que se tornará crucial para o espectador saber quando um trabalho criativo foi feito com a ajuda de IA — e o que exatamente a IA fez (por exemplo: se um roteirista a usou apenas para correções ortográficas, se a usou para criar diálogos ou se a premissa inteira do filme foi baseada na IA).

Se o mundo começar a ser inundado de arte criada por IA e o devido crédito não for dado, será como viver em um mundo distópico no qual não confiamos mais em fotos, vídeos e em nenhuma forma de registro. Nada mais será um reflexo confiável da realidade ou das capacidades de ninguém. A pessoa que quiser ser apreciada por suas reais capacidades terá que achar formas de provar que não usa IA — da mesma forma que cantores talentosos hoje precisam divulgar que não usam autotune e não fazem playback em shows, pois o normal é o público já desconfiar. A IA é o "autotune do cérebro" — uma ferramenta que permite que você pareça virtuoso em inúmeras atividades nas quais não é. Portanto, devemos usá-la com prudência e evitá-la quando a presunção do público for a de que aquelas são as suas habilidades.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Uma Batalha Após a Outra

Há uma cena de perseguição de carros no final de Uma Batalha Após a Outra que é tão brilhantemente concebida e executada que arruinou meus planos de falar apenas mal do filme. No nível do roteiro, a cena nem faz tanto sentido (como o cara sabe que Willa está naquele carro? E o DiCaprio?), mas ignorando esses detalhes, é um momento de puro cinema: que outra arte seria capaz de transformar o simples sobe e desce de uma estrada naquele balé vertiginoso de carros? É uma forma criativa e memorável de filmar uma perseguição (normalmente, usa-se lente grande-angular para aumentar o senso de velocidade, e aqui o filme faz o oposto) — e não é um truque estilístico desconectado da função narrativa: se não fosse pelo achatamento e pelo senso de desorientação espacial criado pela lente teleobjetiva, não seria tão convincente o acidente que encerra a perseguição.

SPOILERS: O filme não acaba aí, e a segunda cena mais eficaz do longa vem logo depois: a conversa entre DiCaprio e a filha, na qual ele revela a verdade sobre sua mãe, Perfidia. Não é uma cena que funciona tão bem para mim, pois ela exige que você tenha uma simpatia pelos personagens que eu não desenvolvi ao longo da narrativa. Mas é uma maneira inteligente de concluir a história. Se você estiver alinhado ideologicamente com o filme — se estiver torcendo para a família ter um final feliz e achar empolgante a ideia de Willa se tornar uma revolucionária como a mãe — você sairá da sala em êxtase após esses 20 minutos finais.

Mas eu não estava tão alinhado. E nem só pela questão política. Sempre acho difícil me envolver com histórias que focam apenas em figuras decadentes, corruptas, ridículas (filmes do Tarantino, por exemplo). Se o filme fosse uma sátira pura, que apenas ridiculariza ou condena os personagens, não haveria tanto problema. Mas Uma Batalha Após a Outra é parte sátira e parte thriller de ação que espera que você torça pelos protagonistas, por mais falhos que eles sejam.

Quanto à trama, é uma geringonça que desafia qualquer resumo: há um prólogo de meia hora, um salto no tempo de 16 anos, uma longa introdução a esse novo contexto, e só depois de 1 hora um enredo mais focado é apresentado, quando o personagem de Sean Penn começa a caçar a filha. Mas mesmo aí, o filme permanece confuso, pois há várias tramas paralelas se desenvolvendo simultaneamente, e boa parte do tempo é gasta com o personagem do DiCaprio, que é praticamente inútil para a ação central. Se você for pensar, Lockjaw (Penn), a filha e Perfidia deveriam ser os protagonistas, os fios condutores da história, mas o filme decide focar no DiCaprio — um maconheiro que mal sabe o que está acontecendo na maior parte do tempo. Paul Thomas Anderson se deleita nesse caos, criando praticamente um "stoner movie". Se não fosse pelo foco que o filme ganha na reta final, minha avaliação geral não seria muito superior à de Vício Inerente — outro filme de PTA adaptado de um livro de Thomas Pynchon, do qual não gostei quase nada.

Mas Uma Batalha Após a Outra tem alguns méritos inegáveis, incluindo Sean Penn em uma das performances mais memoráveis de sua carreira. Apesar do meu desdém pelo teor geral da história, meu respeito por talento e autenticidade me força a reconhecê-los.

One Battle After Another / 2025 / Paul Thomas Anderson

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A Longa Marcha

Recentemente, postei um texto falando sobre ganchos e recompensas, e A Longa Marcha é um bom exemplo de um filme prejudicado pelo gancho. O conceito da caminhada mortal é até chamativo, mas há um problema fundamental em A Longa Marcha que enfraquece a experiência: não é nada plausível que garotos aparentemente saudáveis como aqueles, com boas condições de vida, iriam se voluntariar para uma competição tão irracional (já é difícil acreditar que seria possível uma competição como essa existir na América, mesmo em um futuro distópico). Se os participantes fossem condenados à morte com uma chance de escapar, ou estivessem sendo forçados por psicopatas, até daria pra aceitar. Mas aqui são apenas pessoas que, sem obrigação alguma, se colocam em uma situação da qual dificilmente sairão vivas.

Imagine tentar criar um thriller sobre um suicida: o protagonista decide se enforcar sem grandes motivos, compra um pedaço de corda, escolhe uma viga, e daí o filme começa a querer criar suspense em cima dos perigos que ele corre: mostra o banco cambaleando, a corda áspera roçando no pescoço, a expressão de tristeza em seu rosto etc. Você ficaria tenso? Comovido? Provavelmente não. Se o personagem não valoriza a própria vida, por que você deveria?

O que explica essa falta de plausibilidade é o fato de A Longa Marcha não querer ser um thriller de fato, e sim uma alegoria política, um comentário sobre a “América”. O que Stephen King (autor do livro) está dizendo no fim é: o capitalismo me faz sentir como se eu estivesse em uma competição cruel, com fuzis apontados para minha cabeça, da qual apenas um vencedor pode sair vivo. Obviamente, esse não é um retrato honesto do capitalismo. É uma distorção que visa expressar o que o autor sente em relação ao sistema. Mas isso tem graça apenas para quem compartilha do mesmo sentimento. Imagine um artista que acredita que mulheres são sanguessugas e faz um filme alegórico sobre um homem que se casa com uma mulher que, aos poucos, vai se transformando fisicamente em um parasita asqueroso. Se não houver uma boa trama e uma explicação convincente para essa mutação, o filme só será divertido no nível simbólico; só funcionará para aqueles que sentirem prazer em ver mulheres sendo difamadas. Isso é exatamente o que A Longa Marcha faz com a América.

Pra ter impacto, a mensagem de um filme deve emergir naturalmente da sequência de eventos que ele apresenta. A plausibilidade desses eventos é o que dá força ao argumento. Se a mensagem depende de inventar uma situação irreal, de fazer os personagens agirem de maneira impossível, isso equivale a não ter argumentos.

Se A Longa Marcha fosse um suspense tenso, divertido, eu não me importaria tanto com a mensagem. Mas o filme se sustenta apenas em sua mensagem. A não ser que você tenha certo fascínio em ouvir conversa fiada de jovens tolos ou em ver imagens grotescas de cérebros explodindo, pés sangrando e pessoas fazendo as necessidades no chão.

The Long Walk / 2025 / Francis Lawrence

Ne Zha 2 - O Renascer da Alma

Daquelas fantasias tão desconectadas do mundo real que a narrativa se torna arbitrária e desinteressante. Em Ne Zha 2, os personagens podem existir em corpos físicos ou fora deles, podem mudar de aparência, virar animais, se tornar imortais; seus objetivos são baseados em mitos cheios de regras aleatórias e dependem de magias para serem atingidos — magias que vão sendo tiradas da manga conforme as necessidades do roteiro: se o personagem está prestes a ser engolfado pela lava, ele se transforma em pedra e sobrevive; se precisa lutar contra um vilão muito mais poderoso, engole pílulas mágicas e se torna invencível. Tirando essa dose mais exagerada de misticismo (e de piadas de banheiro), pelo visto o Idealismo Corrompido da Ásia está tristemente parecido com o do mundo ocidental (histórias sobre anti-heróis, sacrifícios etc.). A única coisa que achei admirável no filme é a ambição da parte gráfica, que tem aquele tipo de grandiosidade que parece que apenas o Oriente hoje sabe criar — a animação é uma demonstração de poder análoga aos projetos arquitetônicos mirabolantes que vemos por lá, ou aos desfiles militares de Xi Jinping. Mas é uma ambição que se limita ao aspecto físico, visual. Se Ne Zha 2 for o melhor que a China tem a oferecer hoje em termos de entretenimento audiovisual, diria que eles estão mais frágeis em 2025, culturalmente, do que estavam na época em que seus blockbusters eram coisas como O Tigre e o Dragão (2000) e Herói (2002).

Nezha: Mo tong nao hai / 2025 / Yu Yang