quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Densidade Criativa: quantas ideias por minuto tem um filme?

Tentando entender a diferença entre os grandes filmes de Hollywood e as experiências tediosas proporcionadas pelo entretenimento atual, revi alguns dos meus filmes favoritos ao longo deste ano por um ângulo diferente: fiquei anotando tudo de interessante que acontecia a cada minuto de projeção — tudo aquilo que ajudava a manter a experiência prazerosa e gratificante pra mim enquanto espectador.

Ao fazer isso, comecei a me conscientizar de um critério pelo qual sempre avaliei os filmes, mas de forma subconsciente: sua Densidade Criativa.

A Densidade Criativa de um filme é o quão rico em ideias ele é. Esse conceito pode ser visto como o resultado de duas variáveis:

Frequência Criativa: a quantidade de ideias — ou “Beats Criativos” — por minuto que um filme apresenta (ao longo do texto, usarei ‘ideia’ e ‘beat criativo’ como termos equivalentes). 

Qualidade Criativa: o valor intrínseco dessas ideias (o quão originais, inteligentes, emocionantes e bem integradas à narrativa elas são).

A Densidade Criativa é resultado da combinação entre Frequência Criativa e Qualidade Criativa.

No texto A Importância de Ideias e Inspiração, já discuti um pouco a questão da Qualidade Criativa: o que diferencia uma boa ideia de uma má ideia, na minha concepção. Muito trabalho ainda pode ser feito nessa área, que pode soar um tanto subjetiva, mas neste texto vou focar mais na questão da Frequência Criativa, que é igualmente crucial e é um princípio que nunca vi discutido dessa forma.

Frequência Criativa

No texto Ganchos e Recompensas, discuti que não adianta um filme ter apenas um ótimo gancho narrativo, uma boa ideia de trama e a promessa de uma recompensa no final; os bons filmes estão o tempo inteiro recompensando o espectador e, a cada minuto, reforçam seu envolvimento com a experiência. Ou seja: bons entretenimentos têm uma alta Frequência Criativa, pois precisam estar sempre estimulando o espectador com novas ideias.

Através da análise de alguns clássicos que sempre uso como referência aqui no blog, cheguei a alguns princípios gerais a respeito do conceito de Frequência Criativa.

Abaixo, vou listar as principais ideias/beats criativos de alguns minutos aleatórios de E.T. — O Extraterrestre, De Volta para o Futuro e O Exterminador do Futuro. Um ‘beat criativo’ seria a menor unidade criativa de um filme: toda ideia dentro de uma cena que gera estímulo emocional, curiosidade intelectual e sustenta o interesse do espectador.

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MINUTO 11 de E.T. — O Extraterrestre
1 – Elliott entra afobado em casa e diz para os amigos e para a mãe que viu “algo” lá fora.
2 – Elliott alerta: “ninguém sai lá fora!” — os amigos valentões fazem o oposto e partem para o quintal.
3 – Eles pegam facas da cozinha antes de sair, para o desespero da mãe de Elliott.
4 – Imagem externa misteriosa, com lua, neblina e milharal, enquanto os amigos se divertem caminhando em direção à cabana (brincadeira com o tema de Twilight Zone).
5 – Eles encontram as pegadas de E.T. dentro da cabana.
6 – O irmão de Elliott dá uma explicação mundana para as pegadas: “o coiote voltou, mãe”.

MINUTO 12 de E.T. — O Extraterrestre
1 – Os amigos veem a pizza que Elliott derrubou no chão e dão uma bronca nele.
2 – A mãe pergunta quem deixou eles pedirem pizza. Elliott dedura o amigo, criando confusão.
3 – Depois que todos já saíram, vemos os dedos de E.T. na porta da cabana, reforçando que Elliott estava certo.
4 – Na beliche de Elliott, o cachorro acorda e olha para a janela ao ouvir um barulho lá fora. Elliott, na beliche de cima, já está acordado, olhando para a janela, como quem nem chegou a dormir.

O minuto 11 não é um minuto típico de E.T. — é um momento bem mais denso que a média. Resolvi incluí-lo porque muitas vezes não nos conscientizamos de quanta coisa pode acontecer em um filme em um simples intervalo de 60 segundos, e de quanto investimento criativo é necessário para se criar um entretenimento de alto nível. Se você me perguntasse sem eu olhar, eu provavelmente chutaria que esses eventos todos representavam dois ou três minutos do filme, e não apenas um.

Notem também que o minuto 11 funciona quase como uma mini-história: tem começo, meio e fim — começa estabelecendo um gancho e progride para um clímax, com várias mini-recompensas no caminho, todas narrativamente interconectadas.

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MINUTO 33 de De Volta para o Futuro

1 – No celeiro, Marty tira o capuz de seu traje antirradição, e a filha apavorada dos fazendeiros grita para os pais: “Ele já está ganhando forma humana!”, achando que se trata de uma invasão extraterrestre.

2 – Marty dá partida no DeLorean e foge sob tiros, atropelando um de dois pinheiros protegidos por uma cerca no caminho, para a fúria do fazendeiro (algo que renderá um beat divertido mais adiante).
3 – Já na estrada, Marty freia o DeLorean bruscamente ao se deparar com o condomínio onde mora no futuro — Lyons Estates — ainda em construção.

MINUTO 34 de De Volta para o Futuro
1 – Marty tenta pedir informações para um carro que se aproxima, mas uma senhora histérica se apavora e manda o marido não parar.
2 – Marty tenta dar partida no carro, mas o DeLorean não pega, para sua frustração.
3 – Descobrimos que a câmara de plutônio da máquina do tempo está vazia.

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MINUTO 14 de O Exterminador do Futuro
1 – Na loja de armamentos, o Exterminador solicita diversas armas específicas ao balconista, exibindo todo o seu conhecimento técnico.

2 – Quando o vendedor pergunta qual delas ele vai levar, ele responde: “todas”.
3 – O vendedor fica alegre e diz que vai “fechar mais cedo hoje”, mas, em vez de pagar, o Exterminador carrega uma das armas e o mata.
4 – Em outro ponto da cidade, Reese serra a coronha de um rifle para encurtá-lo, esconde-o dentro do sobretudo e se mistura aos pedestres.

MINUTO 15 de O Exterminador do Futuro
1 – O Exterminador arranca violentamente um homem de um telefone público.
2 – Ele procura por “Sarah Connor” em uma lista telefônica e encontra três mulheres com o mesmo nome.
3 – Vemos um bairro residencial feliz, com gramados verdes e crianças brincando, quando um caminhãozinho de brinquedo é subitamente esmagado pela roda de um carro estacionando.
4 – Nesse ambiente inofensivo, a figura ameaçadora do Exterminador sai do carro e se aproxima da porta de uma casa específica.

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Acabei escolhendo alguns trechos mais densos que o normal, mas, pelo que observei, a média de um bom entretenimento é de pelo menos três ideias por minuto — ou seja, pelo menos três ações, acontecimentos ou informações que renovam o interesse do espectador, criando emoções prazerosas e/ou curiosidade intelectual. Em momentos mais excitantes, esses filmes podem apresentar quatro, cinco ou até mais ideias interessantes em um único minuto. Isso bate com algo que ouvi de David Zucker recentemente — um dos responsáveis por Apertem os Cintos… o Piloto Sumiu! e Corra que a Polícia Vem Aí! — segundo o qual seus filmes buscavam ter uma média de três piadas por minuto. Se adotarmos essa média de três ideias por minuto, isso significa que, em um bom entretenimento, não passam muito mais de 20 segundos sem que algo estimulante aconteça.

Essa média se mantém inclusive em clássicos das décadas de 30 e 40. Os filmes da Era de Ouro, aliás, costumavam ter diálogos mais afiados, com poucas falas naturalistas ou meramente funcionais, o que ajudava a aumentar a taxa de beats criativos por minuto.

Tipos de Beats Criativos

Vários tipos de ideias podem ser estimulantes e tornar a experiência de um filme agradável. Entre os estímulos de uma cena, podem existir beats que criam gancho ou expectativa, toques de humor, atitudes carismáticas dos personagens, insights inteligentes, contrastes, estímulos sensoriais e até decisões estéticas chamativas do diretor. Ainda assim, os beats narrativos são os mais indispensáveis no cinema. Um bom entretenimento terá, na maioria dos minutos, alguma ideia que traga novas informações a respeito da trama e faça a história avançar.

Limites Máximos

Há um limite natural para a Frequência Criativa de um filme. Não é possível amontoar 50 ideias em um minuto, pois cada uma exige um mínimo de desenvolvimento, um set-up. Não basta jogar ideias na tela sem critério. Elas precisam ter uma sucessão lógica, e o espectador precisa de tempo para absorver cada raciocínio. Assim como na escrita, é necessário ao menos uma frase ou um parágrafo para apresentar uma nova ideia — uma sequência aleatória de “palavras estimulantes” não prende a atenção nem cria emoção.

O ser humano só consegue focar em uma coisa por vez. Em um segundo de projeção podem existir centenas de informações num filme (figurinos, objetos, trilha sonora), mas essas são ideias periféricas. O que importa aqui — e o que vale como beat criativo — são as ideias explícitas que ocupam o primeiro plano e atraem o foco consciente do espectador.

Limites Mínimos

Se um filme quiser ser um bom entretenimento, existe um limite para quanto tempo pode passar sem que algo estimulante ocorra. Se um filme demora mais de 20 segundos para apresentar uma nova ideia, ele já começa a ficar um pouco desestimulante. Parece haver alguma lei psicológica natural que governa essas medidas — assim como, em uma palestra, uma pausa de três segundos pode ser dramática, mas uma de oito segundos rompe o fluxo e causa estranhamento.

Alguns filmes que analisei, como O Iluminado ou Encurralado, apresentam uma Frequência Criativa mais baixa, com uma média próxima de duas ideias por minuto. Ainda assim, considero-os bons entretenimentos. Se o gancho geral da história ou da cena é forte — ou seja, se há uma expectativa clara por algo prazeroso ou excitante no futuro próximo — essa média mais baixa ainda pode render uma experiência envolvente, embora com uma sensação mais calma e menos excitante quando comparada aos filmes discutidos anteriormente.

Quando um filme cai para uma média de 1 ideia/beat criativo por minuto, ele já se afasta do entretenimento Idealista e adquire um ar Naturalista, não narrativo — especialmente na ausência de ganchos. Uma das características mais cruciais do Naturalismo, na minha visão, é justamente essa baixíssima Densidade Criativa, essa escassez de ideias estimulantes. Nesse ponto, o Experimentalismo tende a ser mais interessante e a apresentar uma Densidade Criativa mais alta que o Naturalismo, ainda que as ideias não sigam uma progressão lógica.

Séries de TV modernas também tendem a se distanciar do Idealismo por causa da baixa Densidade Criativa. Ao analisar um episódio da série Pluribus (T1, E5), uma das mais aclamadas da atualidade, contei apenas cinco ou seis beats criativos ao longo de 40 minutos — e quase nenhum deles era uma ideia particularmente inteligente ou transformadora para a história. Em um único minuto de qualquer um dos filmes analisados acima, encontramos uma Densidade Criativa maior do que nesse episódio inteiro.

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Níveis de Frequência Criativa:

1.0 Id/m — sensação de estagnação, “realismo” e monotonia
2.0 Id/m — narrativa um pouco lenta, mas que pode funcionar com um bom gancho
3.0 Id/m — entretenimento sólido
4.0 Id/m — narrativa ágil e empolgante
5.0+ Id/m — momentos de alta excitação, set pieces, “impossível piscar”

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Quantidade vs. Qualidade

Como disse, a Densidade Criativa depende não apenas da Frequência Criativa, mas também da Qualidade Criativa — o valor das ideias em si. Nem toda ideia de toda cena precisa ser genial. O importante é que sejam lógicas, compreensíveis, alinhadas com o tema do filme, com a progressão da trama, e que tenham alguma carga emocional ou intelectual (alinhada com os 4 Pilares do Idealismo).

Mas, para se tornar um grande filme — daqueles que podemos rever inúmeras vezes sem cansar — é necessário apresentar não apenas uma alta frequência de ideias, mas ideias de qualidade com certa regularidade.

Ações Vazias vs. Beats Criativos

A maioria dos filmes comerciais terá três ou mais “coisas” acontecendo por minuto. O espectador casual não tolera trechos de puro vazio. Mas, na minha visão, apenas os beats criativos — aqueles acontecimentos baseados em alguma ideia interessante — realmente produzem entretenimento e aumentam a Densidade Criativa de um filme.

É por isso que uma cena de ação não consegue te divertir apenas com base na escala ou na movimentação física. Uma imagem grandiosa pode até servir como um beat, mas para permanecer interessante por diversos minutos, a cena precisará contar com diversas outras ideias. Uma luta pode ter inúmeros golpes e mortes, mas essas coisas só se tornam beats criativos quando trazem ideias coreográficas marcantes, mortes inovadoras, surpresa, humor etc. O verdadeiro ritmo de um filme não vem da montagem ou da ação física na tela, mas de sua Frequência Criativa.

Diálogos também podem se tornar ações vazias se não incluírem sacadas divertidas, informações que mudem o rumo da trama etc. Uma das formas mais fáceis de se encher linguiça em filmes e séries é colocando duas pessoas para dialogar na tela. O diálogo cria a ilusão de que algo está acontecendo e preenche o vazio. Mas, se o texto for meramente funcional, o filme não estará cumprindo sua função enquanto entretenimento. 

A Regra dos 18 Minutos

A regra dos 18 minutos do TED Talk é uma diretriz segundo a qual palestras não devem ultrapassar esse tempo — longo o suficiente para apresentar um conceito relevante, mas curto o bastante para manter a atenção total do público, evitando sobrecarga cognitiva e incentivando uma comunicação focada e clara.

Acredito que essa “regra” seja útil também no universo do cinema. Evidentemente, o público consegue prestar atenção a uma história com mais de 18 minutos; se não, longas-metragens não seriam tão populares. Ainda assim, mudanças de ambientação, de clima ou de assunto são necessárias para que um filme não se torne cansativo. O público precisa de variedade. Analisando esses filmes, notei que algo em torno de 15–20 minutos parece ser o tempo máximo para que um longa permaneça em um mesmo segmento narrativo sem começar a cansar.

Em O Exterminador do Futuro 2, por exemplo, todo o bloco em que os personagens decidem explodir a Cyberdyne pode ser visto como um “assunto” ou “ambiente” e dura cerca de 16 minutos. Em De Volta para o Futuro, a introdução ao universo de Marty, antes da revelação da máquina do tempo, tem cerca de 17 minutos. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, a sequência dos macacos dura aproximadamente 16 minutos.

A Frequência Criativa não precisa variar de um segmento para outro, mas o conteúdo das ideias sim, criando um senso de movimento para a narrativa como um todo.

Relevância do Conceito

Ainda que seja difícil chegar a um critério objetivo para definir o que é ou não uma boa ideia, o ponto central aqui é que o que torna um filme bom não é simplesmente sua mensagem, o conceito geral do diretor ou uma avaliação abstrata feita após a sessão, mas a soma das centenas de ideias apresentadas ao longo da projeção.

Ouvi um crítico dizer recentemente que, pra gostar de certo filme em cartaz, era obrigatório assistir à série de TV na qual ele se baseia; caso contrário, a pessoa não aproveitaria a sessão. Essa perspectiva não faz sentido se você encarar filmes da maneira como eu encaro. Se um filme se torna tedioso ou sem sentido quando você não conhece obras externas a ele, é porque não está fazendo esse trabalho fundamental de apresentar três ou mais ideias interessantes por minuto. Da mesma forma, não compro a ideia de que é preciso assistir a diversos episódios de uma série até que ela “comece a ficar boa”. Por mais que haja uma reviravolta no meio da temporada, é raro que ocorram variações muito grandes de Frequência Criativa ou de Qualidade Criativa dentro de uma mesma produção. O que uma obra apresenta em seus primeiros minutos costuma ser uma amostra bastante fiel do que virá depois em termos de Densidade Criativa.

Esse conceito de Densidade Criativa também pode ajudar alguns Idealistas a entender por que é possível gostar de certos filmes mesmo quando eles têm uma mensagem trágica ou um final incompreensível. Há muitos filmes com mensagens questionáveis que são compostos por beats inteligentes, prazerosos e alinhados com o Idealismo. No fim das contas, o que importa é a jornada.

É ainda um ótimo guia para quem deseja ser roteirista (ou cineasta, editor). Se seguirmos este princípio, sabemos, por exemplo, que para criar um filme de 100 minutos, você precisará ter no mínimo 300 ideias para manter o espectador entretido. Sem esse volume de ideias, você ainda não está criando um verdadeiro entretenimento. (Quando reclamo que os filmes hoje não se parecem mais com filmes, é porque eles tentam se esquivar dessa tarefa, preenchendo as duas horas basicamente com ações vazias, e apenas salpicando uma ou outra ideia ao longo da narrativa.)

Declínio do Entretenimento

Desde os tempos do cinema mudo, o entretenimento audiovisual foi se consolidando em torno de uma Frequência Criativa de aproximadamente três ou mais ideias por minuto. Não acredito que essa medida seja aleatória, mas sim um reflexo de um ritmo natural da mente humana.

Com a crise criativa em Hollywood, a Densidade Criativa do entretenimento vem diminuindo ano após ano. Em alguns casos, o problema está na má Qualidade das ideias. Mas na maioria das vezes, somos apresentados não apenas com ideias mais fracas, mas também com uma quantidade muito menor delas: conteúdos altamente diluídos. Já ouvi dizer que muitos projetos de streaming hoje são pensados de propósito como “segunda tela”, partindo do pressuposto que o espectador estará mexendo no celular enquanto assiste. E o que ele busca no celular? Provavelmente os beats criativos extras que a série não está fornecendo, e de que ele precisa para se manter entretido. (O sucesso do TikTok parece estar intimamente ligado à Frequência Criativa — com a diferença de que ele oferece estímulos aleatórios, sem coerência ou estrutura, ao contrário do cinema.)

Se Hollywood fosse uma grande sorveteria, uma análise do produto nas últimas décadas revelaria um declínio gradual na quantidade de açúcar contida em cada bola de sorvete, até chegar a um ponto em que já é discutível se aquilo ainda pode ser chamado de um “doce”. Externamente, o produto continuaria com a mesma aparência — assim como os filmes continuam tendo duas horas de duração e sendo visualmente atraentes — mas aquilo que tornava a experiência prazerosa foi sendo lentamente removido.

Não é surpresa alguma que as filas estejam diminuindo e se o cinema quiser recuperar seu público, a indústria precisará voltar a valorizar os profissionais capazes de equipar os filmes com essa quantidade massiva de ideias: escritores talentosos.

Índice: Artigos e Postagens Teóricas

sábado, 20 de dezembro de 2025

Avatar: Fogo e Cinzas

Em termos de trama e estrutura narrativa, esse filme tem muitos dos mesmos problemas de O Caminho da Água. Lembra um pouco uma novela, sem um protagonista definido, que fica saltando entre vários núcleos e conflitos diferentes, sem um rumo claro, enquanto nos impressiona com a ação e o visual.

Gostei um pouco mais deste filme do que da segunda parte por dois motivos principais. Achei interessante a maneira como o filme enfrentou o racismo de Neytiri, criando diálogos francos e um arco mais satisfatório para ela. A outra melhoria é que Spider aqui se tornou um personagem mais gostável, pois removeram aquela indefinição moral que o tornava uma figura irritante em O Caminho da Água.

Mas tanta coisa acontece no filme que é como se esses fossem apenas bons episódios no meio de uma temporada de série cheia de capítulos irregulares. Falta um “gancho mestre” em Fogo e Cinzas integrando todos os eventos e dando foco à história.

Ainda assim, o filme entrega espetáculo visual e consegue ser estimulante momento a momento. Só achei realmente cansativo o ato final, que é uma sequência de ação que parece não acabar nunca. De modo geral, eu estava achando a experiência divertida até essa parte, mas a duração exagerada dessa sequência acabou tornando a sessão exaustiva e me fez tirar alguns pontos da avaliação final.

Outro dia vi Natal Branco (1954) e notei uma tática narrativa muito interessante que a franquia Avatar ignora totalmente — ligada ao Princípio da Ascensão e aos Ganchos e Recompensas. Natal Branco prende seu interesse não só com base na trama — nos objetivos dos personagens — mas também com base na expectativa em relação à ambientação do filme, aos cenários que você quer ver. Ao colocar para assistir a um musical com esse título, você naturalmente quer ver neve, pinheiros, pessoas cantando músicas natalinas em ambientes aconchegantes etc. Nós não vemos um filme só pela trama, mas também pelo “clima” que queremos entrar.

A tática curiosa de Natal Branco é construir muito lentamente esse clima natalino. Começamos em um ambiente árido de guerra. Depois, o filme nos leva para o calor da Flórida. Depois, quando finalmente subimos para Vermont, descobrimos que há uma falta inesperada de neve no estado, espantando os turistas naquele ano. Embora a trama principal esteja avançando, essa ausência da neve e do cenário tipicamente natalino cria uma espécie de gancho que faz você querer aguardar até o final. É como se o filme ainda não tivesse se tornado ele mesmo. E só no finalzinho mesmo que a neve cai e o filme mostra o cenário esperado, dando um senso de satisfação extra à história.

Em Avatar: Fogo e Cinzas, tudo já é escancarado logo de cara: a primeiríssima imagem já nos mostra Pandora em toda a sua glória, personagens voando em cima de banshees, fazendo mergulhos radicais que fazem o espectador se sentir em uma montanha-russa. Se você gosta de Avatar mais pelo universo e pela experiência visual do que pela trama, em cinco minutos de filme você já sentiu todo o “clima” que pagou para sentir — mas ainda faltam três horas para o filme acabar.

Cameron não tem uma história realmente forte para contar em Fogo e Cinzas; ele parece apenas gostar de passar tempo nesse universo de Pandora, de nos transportar para esse lugar mágico. É uma intenção pela qual simpatizo, apesar das questões narrativas problemáticas do filme. É mais ou menos como estar na Disney e entrar em um brinquedo que não é particularmente inovador ou memorável — você pensa: isso não foi nenhum clássico, mas, oras bolas, eu ainda estou de férias na Disney!

Avatar: Fire and Ash / 2025 / James Cameron

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Cultura - Dezembro 2025

18/12 — Onde estão os diretores Millennials?

Lembro que há uns 10 ou 15 anos, quando ainda tinha o desejo de seguir uma carreira no cinema, eu costumava checar a idade dos diretores em ascensão em Hollywood para ver se a minha geração já tinha “chegado lá”. Idade não é um fator totalmente determinante nessa área, mas ainda assim, eu tinha a noção de que diretores bem-sucedidos costumavam fazer seus primeiros longas lá pelos vinte e tantos ou trinta anos, e que seus períodos mais férteis ocorriam entre os 30 e os 40 e poucos anos. Eu me sentia levemente pressionado por essa questão da idade e imaginava que, se eu chegasse aos meus trinta e tantos anos e ainda nem tivesse encontrado uma porta de entrada na indústria, isso me faria sentir atrasado, vendo Hollywood sendo dominada por pessoas da minha geração, e eu de fora.

O tempo passou e meus planos profissionais mudaram. Hoje, trabalhar com cinema não é mais uma prioridade. Mas o curioso é que eu já passei dos 40 anos e ainda não chegou o momento em que a indústria foi dominada por pessoas da minha geração e eu poderia me sentir relativamente atrasado. Se você pegar esta lista dos 50 principais diretores em atividade hoje em Hollywood, encontrará uma pequena minoria nascida de 1981 para frente. A grande maioria será de cineastas da Geração X, Baby Boomers e alguns até da Silent Generation. Há apenas três Millennials: Damien Chazelle (1985), Ryan Coogler (1986) e Greta Gerwig (1983). E nenhum deles chega a ser uma figura de real peso e liderança. Aos 40 anos de idade, Tarantino, Scorsese, Cameron, Spielberg, Kubrick, Nolan e Fincher já tinham feito diversos de seus filmes definitivos e eram figuras culturalmente influentes.

Não sei se os Millennials terão um “desabrochar tardio” ou se Hollywood simplesmente irá “pular” essa geração, que de repente se encontrou melhor no YouTube, em podcasts, redes sociais etc. De qualquer forma, acho que isso ajuda a explicar o senso de estagnação na indústria.


16/12 — Disclosure Day

O primeiro teaser de Disclosure Day diminuiu um pouco minhas expectativas (exageradamente altas), embora ainda seja um dos lançamentos de 2026 que mais estou aguardando. Pareceu algo mais rotineiro, assumidamente fictício, quebrando um pouco o clima conspiratório (me lembrou até as produções do Shyamalan).

Uma ficha que só caiu pra mim há pouco tempo — e que esse teaser me lembrou — é o quanto eu nunca gostei da estética e da linguagem visual de Janusz Kaminski, o diretor de fotografia “fixo” de Spielberg desde A Lista de Schindler. Às vezes, vejo até uma correlação entre a chegada de Kaminski à equipe de Spielberg e o declínio da magia que marcou os filmes dele dos anos 70 até Jurassic Park.


15/12 — A Revolução dos Bichos

A direita está indignada com o trailer da nova adaptação de A Revolução dos Bichos, dizendo que pegaram uma história antissocialista e a transformaram em anticapitalista. Eu nunca li o livro de Orwell, mas não vi nenhuma inconsistência ideológica entre o trailer e a animação de 1954, que é uma adaptação elogiada, aparentemente fiel à obra — e exala socialismo do início ao fim. 1984 talvez seja mais ambíguo, mas acho incrível alguém ler uma história como A Revolução dos Bichos e concluir que Orwell era um conservador ou liberal. O fato dele fazer críticas ao stalinismo e ao totalitarismo não o coloca automaticamente na direita. O inimigo do seu inimigo — ou o crítico dele — não é necessariamente seu amigo.


11/12 — Spielberg/Disclosure

Ontem aparentemente surgiram alguns painéis misteriosos em Nova York e Los Angeles do novo filme do Spielberg sobre aliens (marcando a 30ª parceria dele com John Williams). O título nem foi revelado ainda, mas já estão surgindo teorias da conspiração divertidas na internet sobre o teor da história, já que a frase “TUDO SERÁ DIVULGADO” no telão se aproveita do hype desses últimos anos a respeito de OVNIs e do suposto complô do governo americano. Se for isso mesmo, não poderia haver um projeto melhor para o Spielberg fazer um comeback no gênero. Isso me faz lembrar do quão importante é o entretenimento estar antenado ao zeitgeist, ao que está acontecendo no mundo, e também reforça minha crença de que o escapismo é muito mais empolgante quando mantém um pé na realidade, se esforça para tornar a ficção crível etc.


sábado, 13 de dezembro de 2025

Melhorando Argumentos Objetivistas: Altruísmo

A moralidade do altruísmo é talvez a maior vilã da civilização ocidental segundo a filosofia do Objetivismo. Ayn Rand certa vez disse: “Se alguma civilização quiser sobreviver, é a moralidade do altruísmo que os homens terão de rejeitar.”

Embora eu concorde que, em termos de ideias filosóficas, o altruísmo talvez seja a mais perigosa para a sociedade, não acho que ele seja a origem dos grandes males do mundo, como alguns objetivistas sugerem.

Pra mim, o altruísmo é, primeiramente, uma ferramenta de controle e manipulação — uma ideia que permite que pessoas obtenham o imerecido, tenham acesso aos recursos dos outros, sem precisar recorrer ao roubo ou a métodos mais explícitos de extorsão.

A origem do mal, portanto, é o parasitismo/predatismo humano, o “egoísmo irracional” — o altruísmo é apenas uma estratégia intelectual. Se convencêssemos todo mundo a abandonar o altruísmo enquanto conceito, os problemas da sociedade não desapareceriam. Os parasitas e predadores apenas não teriam mais essa estratégia para usar e passariam a recorrer a táticas mais diretas, como provavelmente faziam antes da civilização moderna.

Sim, lutar contra a moralidade do altruísmo é importante. Mas quando objetivistas falam como se os seres humanos fossem de fato altruístas em suas intimidades, vítimas indefesas dessa falsa moralidade, eles soam pouco convincentes, pois, intuitivamente, todo mundo sabe que o egoísmo irracional explica muito melhor o comportamento humano.

Todos já ouvimos histórias de supostos humanitários ou altruístas que, no fim, foram expostos e se revelaram abusadores, pessoas horríveis. Agora, quão comum é o contrário: você encontrar uma pessoa que age com base no auto-interesse no dia a dia, mas é flagrada fazendo atos altruístas entre quatro paredes que ninguém deveria ter visto? (Não valem esses ricos que fazem atos públicos de caridade e ganham status com isso.)

Vale apontar também que a pessoa que se sacrifica — a suposta “vítima” da moralidade do altruísmo — muitas vezes aceita esse papel porque pretende, futuramente, lucrar com essa moralidade. Por exemplo: imagine que alguém que você não valoriza te peça um enorme favor, como ficar um mês hospedado na sua casa ou servir de acompanhante por vários dias em um hospital. Você precisa ter um grande senso de autoconfiança e independência pra recusar esse tipo de pedido — sentir que, se um dia estivesse numa situação parecida, você não dependeria do sacrifício de ninguém para ter suporte (teria dinheiro o bastante, pessoas que verdadeiramente te amam e gostariam de te ajudar etc.). Agora, quando você não tem essa confiança, você se sente obrigado a ajudar, porque sabe que sua vida também depende dos sacrifícios alheios. Nesse caso, você não está sendo apenas vítima da moralidade do altruísmo: você a adota porque também é adepto do parasitismo/predatismo humano.

A porcentagem da população que é puramente vítima da moralidade do altruísmo, na minha percepção, é muito pequena — quase irrelevante para discussões culturais amplas. Portanto, não acho que a mensagem mais fundamental do objetivismo no campo da moralidade deva ser a mensagem anti-altruísmo. A grande mensagem — aquela que realmente soa verdadeira, faz as pessoas questionarem suas atitudes — é a mensagem anti-parasitismo, anti-egoísmo irracional: de que devemos ser justos, controlar nossos impulsos de tirar vantagem, de trapacear, mentir, e agir corretamente mesmo quando ninguém está vendo. É a cena de Howard Roark deixando de ganhar uma fortuna como arquiteto porque se recusou a abrir mão de seus princípios.

Dizer que as pessoas devem ser egoístas em vez de se sacrificarem o tempo todo soa como uma mensagem excêntrica e meio inútil, pois o principal desafio da maioria das pessoas, na verdade, é aprender a perseguir seus interesses de maneira não destrutiva, não predatória. Essa capacidade é o grande diferencial de um objetivista, aquilo que uma pessoa de fora olha e pode admirar, por entender que é algo nobre e difícil de fazer.

Portanto, ao condenar a moralidade do altruísmo, acho importante identificá-la como uma ferramenta de controle e apontar o verdadeiro mal por trás de sua prática e de sua popularidade.

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Dezembro 2025 - outros filmes vistos

Blue Moon (2025 / Richard Linklater) — Se você for um apreciador de diálogos sofisticados e frases inteligentes, vale a pena assistir a esse filme sobre o compositor Lorenz Hart, que foi parceiro de Richard Rodgers antes de ele se juntar a Oscar Hammerstein. Vi o filme interessado porque gosto desse universo (é quase surreal pensar que o entretenimento popular já foi comandado por pessoas com esse nível de cultura) e porque ele retrata basicamente um conflito entre um Idealista Corrompido (Hart) e um Idealista (Rodgers). O problema é que Hart é mostrado como alguém patético, decadente, inconveniente, e 90% do tempo estamos ouvindo ele falar, o que torna a sessão um tanto irritante. A performance de Ethan Hawke é empenhada, mas ele não consegue tornar o protagonista minimamente gostável, o que pra mim é uma falha (ele não é um invejoso carismático como Salieri em Amadeus). Ou seja, não chega a ser uma recomendação, porque tudo acaba não passando de um estudo de personagem e um pretexto para os diálogos inteligentes (baseados em cartas pessoais de Lorenz Hart). Mas, como roteiros com substância são uma raridade no cinema atual, é válida a menção.

Fundamentos da Escrita de Roteiros - Michael Hauge

Masterclass de Michael Hauge, que criou mais um ótimo modelo de escrita de roteiro e estruturação de trama para juntarmos aos de Robert McKee e Syd Field. Aqui no blog, dou dicas que desafiam muitos desses modelos tradicionais, tentando chegar aos princípios fundamentais por trás deles (para que não se tornem apenas regras ou fórmulas engessadas), mas de vez em quando, gosto de revisitar as fórmulas pelo senso de clareza que elas trazem.


terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Novembro 2025 - outros filmes vistos

Zootopia 2 (2025 / Jared Bush, Byron Howard) — A principal ideia que o entretenimento quer que você absorva em 2025 é a seguinte: sabe aquele grupo ou figura que você acha que é má, que parece uma assassina, que tem todos os traços de um monstro, todos os trejeitos de um malfeitor? Ela, na verdade, é boa — vítima de uma grande manipulação arquitetada por quem? Pelos ricos e poderosos, que são os verdadeiros vilões! Em Zootopia 2, as cobras venenosas são as injustiçadas da vez. A única coisa boa que tenho para falar desse filme é que ele não é horrivelmente mal-feito... É apenas mediano, esquecível, clichê, mas pelo menos não inaugura um novo patamar de ruindade, como tantas produções têm feito ultimamente.


Bugonia (2025 / Yorgos Lanthimos) — Achei divertido o começo, o retrato irônico que é feito da sociedade atual (os conspiracionistas da direita, os discursos woke hipócritas da esquerda, etc.). O problema é que depois que você saca a ideia central, o resto do filme se torna chato, repetitivo; não há uma história forte o bastante pra sustentar o interesse na porção central (tudo é absurdo demais para ser levado a sério como suspense de sequestro). Assim como o começo, o final também funciona... O diretor parece ter feito o filme pela mensagem que queria passar, e ele a comunica de forma inteligente, mas falhou em desenvolver um enredo completo que envolvesse independentemente da mensagem. Tudo poderia ter sido resumido em um curta ou sketch cômico de 5 minutos.


sábado, 22 de novembro de 2025

Wicked: Parte II

Achei tão mal feito que tive quase o impulso de voltar e abaixar a nota que dei pro primeiro filme. Mas a verdade é que a primeira parte funcionou apesar das incompetências dos criadores, tudo por conta das forças da peça. A parte 2 da peça, por já ser fraca, não tinha como sustentar a continuação. Agora, todas as inaptidões de Jon M. Chu e dos roteiristas vêm à tona sem nada pra disfarçar. A história não tem nenhum senso de direção, as relações entre os personagens não têm coerência, várias cenas musicais parecem desnecessárias e destoam em tom da narrativa, e os eventos no final parecem apressados e costurados de qualquer jeito só pra se ajustarem à cronologia de O Mágico de Oz. Sem falar nos temas marxistas, que agora se tornaram mais centrais, já que Elphaba virou revolucionária e sua luta contra o sistema é o foco desta parte. (Além de Frankenstein e do Predador que comentei recentemente, temos aqui mais um “monstro” do cinema recaracterizado como vítima oprimida.) Outra coisa chata é o tom constante de rivalidade e desarmonia entre todos os personagens: Glinda vs. Elphaba, Fiyero vs. Glinda, Nessa vs. Boq, o Mágico vs. Elphaba — e não porque uns estão certos e outros errados, mas porque todos são imperfeitos, têm impulsos irracionais conflitantes e inevitavelmente precisam se chocar. (Em uma das letras, o Mágico canta: “Há pouquíssimos que se sentem à vontade com ambiguidades morais, então agimos como se elas não existissem” — refletindo aquela visão de que bem e mal são noções imaturas.)

Fala-se muito da crise atual em Hollywood, do suposto desinteresse das gerações mais jovens em ir ao cinema. Mas saí de Wicked: Parte II com a sensação oposta — se, com filmes tão medíocres, você ainda consegue ter estreias lotadas como essa (minha sala estava repleta de fãs vestidos de verde e rosa), isso é uma prova de que as pessoas realmente amam ir ao cinema! Pensando na qualidade dos filmes que têm sido lançados, o que surpreende não é o fato de haver uma crise, mas ela não ser muito maior do que é.

Wicked: For Good / 2025 / Jon M. Chu

Melhorando Argumentos Objetivistas: Aborto e Judeus

Objetivistas costumam ter argumentos sofisticados e convincentes para a maioria dos tópicos, mas quando o assunto é aborto ou antissemitismo, muitas vezes os vejo enfraquecidos em debates ou palestras. Eu concordo com o posicionamento geral do Objetivismo nesses dois tópicos (que o aborto não deveria ser ilegal e que o antissemitismo deve ser condenado), mas não acho que esses pontos costumam ser defendidos de maneira plenamente satisfatória.

Aborto:

A pior armadilha na qual objetivistas caem aqui é a de caracterizar o feto apenas como um agrupamento de células, dando a entender que não é diferente fazer um aborto do que cortar as unhas. Pra começar, a ciência não sabe exatamente como a mecânica da vida funciona, então não acho que esse tipo de afirmação possa sustentar um argumento sólido. E acho bastante razoável pensar que existe uma diferença fundamental, por exemplo, entre um ovo fecundado e um ovo não fecundado. Que a “fagulha” da consciência — que se transformará em uma consciência ainda mais evoluída com o desenvolvimento do organismo — já está atrelada à matéria desde o início. O problema de sugerir que não há consciência alguma no feto é que objetivistas, no fundo, acabam dizendo: “sim, se o feto tivesse alguma consciência, concordo que seria horrível matá-lo, e que o aborto deveria ser proibido — mas ele não tem consciência!”. Para mim, é óbvio que essa linha de raciocínio não tem muita força.

Pra argumentar a favor da legalização do aborto de maneira mais convincente, precisamos primeiro reconhecer que, sim, é possível que exista algo consciente dentro da mãe, um “eu” único e insubstituível, e que esse “eu”, ao ser abortado, possa passar por uma experiência subjetiva horrível — ainda que ele não faça muito sentido do que vivencie.

E como argumentar a favor do aborto depois de admitir isso?

Um caminho inicial é traçar um paralelo com o que fazemos com animais, no caso da alimentação. Se a pessoa não for vegana, ela terá que aceitar que mata seres conscientes rotineiramente para perseguir seus objetivos. Se ela não tiver problema em matar uma consciência primitiva, não racional, para promover sua vida, ela terá dificuldade em argumentar que a condição do feto é muito diferente da de um animal. O que torna o ser humano único e diferente de outros animais — nossa racionalidade e livre-arbítrio — depende de recursos mentais mais sofisticados que ainda não estão desenvolvidos no feto.

Mas e se a pessoa for vegana? Bastará lembrá-la que, ainda assim, ela mata vidas diariamente para sobreviver — a não ser que ela conviva pacificamente com baratas, pernilongos, e não dê um passo na calçada antes de checar se não há uma formiga no seu caminho. Nesse momento, ela terá que admitir que não existe como sobreviver sem nunca matar algo vivo. Este é um fato metafísico que não pode ser contornado. Na natureza, vidas matam vidas o tempo todo. O ser humano, após milhares de anos de civilização, conseguiu chegar a uma organização social em que combinamos que indivíduos humanos não iniciarão violência contra outros indivíduos humanos, pois entendemos que seres racionais podem sobreviver em harmonia, através da colaboração — lidando apenas com outras espécies e com a natureza na base da força. Uma vez que você faça a pessoa aceitar que eliminar vidas é inevitável, corriqueiro, e que o princípio de “não matarás” é uma regra que conseguimos aplicar apenas num contexto delimitado, em relações entre seres humanos racionais e independentes, fica mais fácil mostrar que a gravidez indesejada é um caso em que a natureza coloca duas vidas entrelaçadas em conflito, e onde não é possível aplicar os mesmos princípios éticos que aplicamos em sociedade.

Ou seja: você pode dizer que acha triste, até trágica, a experiência pela qual um feto deve passar (ou a de qualquer animal que é morto) — e ainda assim afirmar que o aborto deve ser permitido por lei e moralmente defendido em alguns casos. Se o aborto é uma tragédia, é uma tragédia imposta pela natureza, não por uma falha moral do ser humano.

Pode ser nobre querer minimizar o sofrimento no mundo, na medida em que isso não lhe impeça de viver e ser feliz, mas considerar qualquer forma de sofrimento uma tragédia que deve ser evitada a qualquer custo é uma noção mística que nega fatos óbvios da natureza.

Judeus:

Minha questão com o combate ao antissemitismo é mais sutil. A tendência de objetivistas é caracterizar o antissemitismo apenas como racismo, ódio religioso e ressentimento contra o sucesso. Acho que tudo isso de fato faz parte do quadro e são motivações comuns. Mas objetivistas ignoram um ponto por trás do antissemitismo que é essencial para dar clareza ao conflito. Esse ponto tem a ver com o fenômeno que discuti no texto Problemas do Objetivismo #12 — Ambição vs. Ganância: a diferença entre o “capitalismo criativo” e o “capitalismo predatório”.

Minha percepção é que parte do antissemitismo vem de uma aversão comum (e legítima) ao capitalismo predatório, uma prática muitas vezes associada à cultura judaica. Quando falo em “predatismo”, não estou falando de criminosos, chantagistas, pessoas que cometem fraudes reais — apenas do tipo de pessoa que busca o lucro de maneira fria, sem de fato se importar com a qualidade objetiva do produto/serviço que oferece, com o benefício real e bem-estar do consumidor, com o impacto a longo prazo etc. Objetivistas tendem a ver qualquer troca voluntária numa sociedade livre como benéfica. Porém, como discuti no texto Ambição vs. Ganância, vejo trocas voluntárias em um espectro, que vai desde relações ganha-ganha equilibradas e enriquecedoras até zonas cinzentas, onde uma pessoa manipula a outra, buscando uma relação de ganha-perde, mas ainda operando dentro dos limites da lei. Como alguém que defende livres mercados e a separação entre Estado e economia, não acho que esse tipo de troca desequilibrada deva ser banida. Mas isso não quer dizer que, moralmente, eu admire as duas práticas igualmente.

E o que judeus têm a ver com isso? Bem, não estou dizendo que todos os judeus sejam capitalistas predatórios. Mas não é implausível pensar que existe algo na cultura judaica (não nos judeus enquanto “raça”) que, por razões históricas, incentiva esse tipo de prática mais do que outras culturas.

Quando objetivistas ignoram que existe uma diferença qualitativa entre o “capitalista criador” e o “capitalista predatório”, tratando toda forma de troca como igualmente saudável, isso cria uma desconfiança no ouvinte, que permanece cético por saber que existem formas vulgares e hostis de se fazer negócios. Se de fato houver algo na cultura judaica que incentive essas práticas, acho que objetivistas precisam estar dispostos a criticar esse aspecto da cultura. Claro, o fato de alguns judeus serem capitalistas predatórios não justifica genocídios e nem os discursos violentos que temos ouvido ultimamente. Mas quando você protege um conceito ou instituição negando problemas internos que todos podem ver, você não convence e não ajuda a quebrar preconceitos. Por isso, lutar contra o antissemitismo será mais fácil se você estiver disposto a criticar o capitalismo predatório ao qual judeus são frequentemente associados — isso não mudará a atitude de quem condena judeus por motivos completamente irracionais, mas ao enquadrar o problema como uma questão de comportamento, de uma certa tendência dentro de uma cultura — não algo biológico ou determinista — você poderá mudar a atitude daqueles que suspeitam de judeus por causa dessa postura econômica. (Da mesma forma, é mais fácil convencer alguém a aceitar o capitalismo quando você reconhece que, dentro dele, algumas pessoas agem de forma indigna — sem fingir que todos os empresários têm motivações nobres.)

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domingo, 16 de novembro de 2025

Cultura - Novembro 2025

16/11 — Pluribus

Vi pessoas comentando que Pluribus, a nova série do criador de Breaking Bad, teria temas objetivistas e faria uma crítica ao coletivismo. Fui ver os três primeiros episódios e não vi nada disso. Sim, em um nível explícito e superficial, até existe a ideia de que ser uma pessoa robótica, sem individualidade, é ruim. Mas não é bem essa falta de personalidade que é o foco da crítica de Ayn Rand ao coletivismo. Além disso, o que a série oferece como exemplo de “individualismo” (a protagonista) passa longe de uma heroína randiana. 

Se você for além da mensagem explícita e analisar o que a série condena na prática, vai ver que ela está muito mais próxima daqueles filmes estilo Don’t Worry Darling, The Truman Show ou Barbie, que atacam a estética imaculada dos anos 50 — a suposta artificialidade do American Way of Life, onde tudo seria limpo, novo, todos seriam simpáticos e a sociedade funcionaria com extrema eficiência — versus o quê? Versus a bagunça da “vida real”. Por que a protagonista seria melhor que o resto da humanidade em Pluribus? Porque ela é mal-humorada, desarrumada, antipática, imperfeita etc. É esse contraste que é reforçado ao longo de cada episódio, não o contraste entre uma pessoa intelectualmente independente, virtuosa, e second-handers medíocres, parasitas etc. O “prazer” da série parece ser ficar vendo a protagonista sendo rude com essas pessoas exageradamente agradáveis ao seu redor.