ANTES DA DIVISÃO
- Ótima a cena do ovo se duplicando após ser injetado com a Substância, e mais brilhante ainda é a sequência seguinte mostrando a deterioração da estrela da Elisabeth Sparkle na calçada da fama. É um pouco estranho colocar duas sequências “high concept” assim uma seguida da outra, mas são boas ideias, que introduzem visualmente os conceitos principais da história.
- O filme tem uma noção excelente de narrativa visual, e sabe usar símbolos de forma objetiva pra comunicar ideias (a deterioração da estrela, a foto de Elisabeth no outdoor sendo rasgada quando ela passa de carro, as escolhas de lentes pra deixar o personagem do Dennis Quaid repulsivo, etc.).
- Demi Moore está linda na primeira parte e tem uma ótima performance o filme todo. Ela transita bem entre os momentos mais sérios da personagem e os momentos mais “Nicolas Cage”. Foi uma ótima ideia de casting, até porque acrescenta uma camada metalinguística à história.
- As referências forçadas ao Kubrick (O Iluminado / 2001) fazem o filme parecer um pouco imaturo e pretensioso (quando você é estudante de cinema e quer se posicionar como “genial", sua primeira ideia é sempre fazer uma referência ao Kubrick em um trabalho — até eu fui culpado disso aos 18 anos).
- O programa de ginástica à la Jane Fonda e o comportamento rude dos homens parecem mais uma caricatura da cultura dos anos 70/80 do que da atual, que já não tolera esse tipo de coisa há muito tempo.
- O filme é abertamente anti-homens. Todos os homens da história são patéticos, repulsivos (o produtor, o date da Elisabeth, o vizinho, o produtor de elenco, o garoto motoqueiro, os acionistas, etc.).
- Além da linguagem visual e da direção estimulante, um dos motivos da história ser envolvente é que Elisabeth tem uma motivação extremamente simples, que até uma criança de 5 anos consegue entender: se tornar jovem, bela, e ser amada de novo. É um “filme de arte”, mas com uma narrativa que não é mais difícil de acompanhar que a de um desenho infantil.
- A crítica a Hollywood / fama / padrões de beleza é bem superficial. O filme não desenvolve nenhum raciocínio interessante sobre esses temas. Apenas fica mostrando imagens de mulheres perfeitas e de símbolos idealistas sob uma luz meio sinistra — mas isso apenas indica que a cineasta tem uma visão negativa dessas coisas, não é uma “crítica” de fato. O filme usa muito daquela tática vazia que descrevi na crítica de
Titane:
Sempre que você pega elementos ligados a sexo, violência, religião, tecnologia, dinheiro, política, e os usa de maneira contrastante e provocativa numa obra, você não precisa realmente ter algo a dizer. O público inventará um significado sozinho. Por exemplo: pegue uma figura de Jesus (religião), e coloque um “M” do McDonald's (capitalismo) em cima da cruz — trabalho feito! Pinte uma mulher nua (sexo), mas com o botão de “Unlock” do iPhone (tecnologia) no lugar do órgão genital — já será o suficiente pra todos acharem sua “crítica” genial (e se a mulher estiver cheia de hematomas então [violência], melhor ainda).
- Há vários contextos onde demitir uma mulher por causa da idade/aparência seria sexista, etarista, injusto — mas exigir corpos no auge da forma em um programa de ginástica na TV não é exatamente “cruel” (o filme escolher esse ambiente pra fazer sua crítica sugere que ele tem aquela visão progressista radical onde aparência física nunca deveria ser um critério, nem mesmo pro cargo de “musa fitness”).
- Aliás, padrões de beleza e procedimentos estéticos estão entre os grandes vilões do cinema de 2024, considerando A Substância, Feios (2024) e A Different Man (2024).
- Tudo que envolve design no filme é muito bem feito. O “unboxing” da Substância com todas as orientações é particularmente satisfatório.
- A cena do “parto” é bem feita e cria um bom Set Piece.
ELISABETH + SUE
- Qual a necessidade desses closes extremos em agulhas, feridas, nas costas de Elisabeth sendo costuradas? A nudez das atrizes é um elemento apelativo compreensível para essa história, mas o filme fica dando ênfases gratuitas em tudo que é chocante, desagradável, como se achasse uma virtude incomodar.
- Após o nascimento de Sue, começa a ficar evidente um furo central do roteiro: o “pacto fáustico” da história simplesmente não faz sentido. Sue e Elisabeth não dividem a mesma consciência; elas são pessoas diferentes. Se a motivação inicial de Elisabeth era ser amada, voltar a ser jovem e bela, que benefícios a Substância realmente trará pra ela? Nenhum! Ela continuará com sua aparência, sua idade, só que agora com uma cicatriz enorme nas costas, e tendo que abdicar de metade de seu tempo de vida (e ela não foi enganada, era isso mesmo que a Substância prometia). Como isso resolverá seu problema? Se Elisabeth só queria uma versão sua mais jovem, mas com outra consciência, não teria sido mais fácil ela ter uma filha? Eu consigo entender o que faz o Neo tomar a pílula vermelha em
Matrix, o que faz os personagens de
Quero Ser John Malkovich entrarem na mente de John Malkovich, o que faz os personagens da série
Severance separarem suas vidas em duas, o que faz a Ellen Burstyn tomar os comprimidos em
Réquiem para um Sonho — já o apelo da Substância não tem muito sentido narrativo, psicológico, e fica parecendo apenas um conceito mal pensado.
- Até o momento do parto, o filme é envolvente, cheio de suspense. Mas depois, o roteiro começa a se perder. Elisabeth não tem o que fazer depois que Sue nasce. Quando é a semana dela acordada, ela fica só vendo TV, cuidando de burocracias, sem nenhum propósito (até porque o filme ignora o furo no roteiro que mencionei no parágrafo anterior). Daí quando é a semana de Sue acordada, o filme fica só mostrando como ela é sexy, como sua vida é divertida. Até quando ela está sozinha em casa ela fica agindo como uma ninfeta — ela nunca se torna uma personagem convincente, relacionável, capaz de carregar a história. É um estereótipo vazio.
- Estranhamente, o filme resolve ignorar a empresa misteriosa por trás da Substância, e não usa isso pra engrossar a trama, criar reviravoltas, etc. A única coisa que sobra agora é esperar as coisas começarem a dar errado para Elisabeth e o filme apelar cada vez mais pro horror corporal.
- Muito do impacto do filme vem da fotografia, da edição, do som. É aquele tipo de sobrecarga sensorial que te distrai da pobreza do enredo. Ouvimos um “swishhh” ou um “whooshhh” toda vez que a câmera se mexe; as ações mais irrelevantes, como Dennis Quaid fumando um cigarro, viram praticamente um vídeo de TikTok hiper estimulante, cheio de efeitos sonoros, ângulos extremos, cortes rápidos. Não há uma única cena normal no filme; tudo tem que ser um videoclipe sexy, estilizado, super dirigido.
- Qual o sentido da reforma que a Sue faz no banheiro (sozinha!) pra esconder o corpo de Elisabeth?
- Durante o filme todo temos a impressão de estarmos em uma mansão no alto da Mulholland Dr. em Los Angeles, até pela vista da janela. O maior plot twist do filme pra mim é o vizinho que vem reclamar do barulho da furadeira e acaba revelando que estamos em um prédio comum de classe média! É um fato que vai totalmente contra a caracterização de Elisabeth.
- Lá pela 1 hora de filme, Sue começa a quebrar as regras e a história ganha certo interesse, pois queremos saber onde tudo irá parar. Além disso, Elisabeth, que não tinha nada pra fazer no filme, agora pelo menos ganha a motivação de impedir os danos causados por Sue. Mas não há nada de prazeroso mais pra se esperar da história.
- O conflito que vai surgindo entre as duas é bobo e pouco convincente. Vira um filme sobre duas “roommates” com hábitos incompatíveis tendo problemas banais de convivência.
- Ao introduzir alucinações, o filme começa a perder um pouco da objetividade que tinha no começo e a abrir espaço para o interpretativo, o aleatório.
- Como a trama não tem muito pé nem cabeça, e o filme já esgotou tudo o que tinha a dizer sobre Hollywood, homens, padrões de beleza (que se resume a: “são maus”), violência, horror corporal e bundas se tornam a única forma do filme prender a atenção. O filme quer fazer uma crítica à superficialidade do entretenimento, mas ele mesmo aposta em superficialidades pra prender o público.
- Meio forçado Elisabeth trombar com o senhor com a marca na mão em uma das únicas vezes que sai de casa. O filme espera tão pouco da inteligência do público que acha que a marca não será o bastante pra explicar que ele é a “matriz” do jovem do hospital: precisa fazer ele derrubar o cartão da Substância no chão, e ainda expor a cicatriz nas costas quando ele abaixa pra pegar! Tudo no filme é mastigado, na cara — sou super a favor de clareza, mas quando um filme quer parecer inteligente, o ideal é que ele estimule um pouco o raciocínio do espectador.
- O único desenvolvimento interessante da premissa básica é a cena onde a Elisabeth tenta sair pra um date e não consegue. Nessa cena, o filme acrescenta uma camada interessante à discussão, revela algo novo sobre a personagem. Só que há muito pouco disso no filme. 95% do tempo, ele não tem nada de relevante a dizer. Falta substância a A Substância — mostrar 15 variações da mesma cena onde a protagonista encara uma mulher perfeita em um outdoor/TV/quadro não é o mesmo que desenvolver o tema do filme.
- Elisabeth poderia interromper a experiência a qualquer momento, mas não o faz. Por quê? Ela já sabia dessa opção desde o início? É aqui que o furo do roteiro faz a narrativa perder o sentido. Você tem que começar a supor que existe uma conexão mística entre Elisabeth e Sue que o filme não se deu ao trabalho de estabelecer.
MONSTROS
- Depois que Elisabeth começa a parecer a velha do
Iluminado, o filme assume a palhaçada. Eu me divirto com os excessos de cineastas como David Lynch ou até do David Cronenberg na medida em que eles parecem guiados por um propósito dramático/intelectual — quando a loucura parece vir de um estilo autêntico e é justificada pela história. Mas o clímax de
A Substância soa forçado, e é autoconsciente demais pra divertir. Está mais pra uma paródia sarcástica de filmes cult do que algo feito com honestidade.
- Os 15 minutos finais são o ponto baixo do filme (me lembrou
Barbie, que pra mim foi uma inversão completa do
Princípio da Ascensão: começou brilhante, e daí foi piorando progressivamente, guardando as piores ideias pro final). O filme não tem nada a acrescentar, mas fica fazendo referências pretensiosas a
Um Corpo que Cai,
2001, e apelando pro grotesco pra tentar tirar algumas reações do público, que a essa altura já não se impressiona com mais nada nesse nível puramente sensorial.
- SPOILER: O final na calçada da fama cria um falso senso de circularidade, como se o roteiro tivesse sido “bem amarrado” por terminar onde tudo começou — mas circularidades assim só são um mérito quando ocorrem por consequências naturais dos eventos. Aqui, não havia razão alguma pro monstro estar perto da calçada da fama e se arrastar até a estrela de Elisabeth. Ele só faz isso pra dar ao filme esta falsa simetria.
The Substance / 2024 / Coralie Fargeat
Satisfação: 4
Filmes Parecidos: Saltburn (2023) / Titane (2021) / Triângulo da Tristeza (2022) / Réquiem para um Sonho (2000) / Cisne Negro (2010) / A Baleia (2022) / Men: Faces do Medo (2022)