terça-feira, 5 de novembro de 2024

Aviso

Pretendo dar um tempo nas postagens aqui. Se surgir algum filme muito interessante ou polêmico que mereça maiores comentários, pode ser que eu escreva algo. Mas pelas próximas semanas pelo menos, vou tentar saciar meus impulsos de criticar os filmes deixando apenas as avaliações no Letterboxd e quem sabe fazendo comentários breves no Instagram (@amaralcaio). 


P.S.: Coringa 2 eu vi agora e achei bem ruim. É menos revoltante que o primeiro (tem menos violência, menos críticas tolas ao "sistema"), mas esteticamente, tem muito mais defeitos óbvios. Além do roteiro pobre, sem trama, e dos problemas do filme original que se repetem, a ideia de transformar essa história em um musical realmente não deu certo (o trailer me enganou que eles tinham dado um jeito de fazer funcionar — devia ter confiado na minha intuição inicial), e Joaquin Phoenix tem mais uma daquelas performances desajeitadas, irregulares, tipo a de Napoleão.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Outubro 2024 - outros filmes vistos

Sorria 2 (Smile 2 / 2024 / Parker Finn)

Sentimentos mistos. O filme nos transporta pra um universo novo, inesperado, não tenta apenas repetir o 1°, Naomi Scott está convincente como estrela pop (embora a ideia de situar o filme no mundo da música não seja tão bem costurada na trama), algumas cenas de suspense e de jump scares funcionam, mas o filme tem 2 padrões narrativos que não gosto. 1) A história onde tudo parece ser uma alucinação na cabeça da protagonista. No primeiro, várias mortes ocorriam e eram confirmadas por personagens externos, o que provava que a personagem não era louca. Aqui, a linha entre realidade e imaginação é totalmente borrada, prejudicando o suspense. 2) O filme de terror onde o “monstro” não traz nada de positivo para a protagonista. Terror bom pra mim não é sobre sofrimento, sobre contemplar a dor, mas sobre aventura, escapismo, sobre superar medos, descobrir forças, combater o mal, etc. Sorria 2 ignora isso e foca apenas no desagradável. A "ascensão" narrativa aqui é a protagonista dando cada vez mais vexame em público, perdendo controle sobre sua mente, tendo sua carreira cada vez mais arruinada, ferindo pessoas que ama, o que não é algo prazeroso de assistir.

Satisfação: 5 (Idealismo Corrompido)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Brutalista

Se esse filme chegar na temporada de prêmios como um dos favoritos, como muitos críticos vêm apostando, eu vou sentir falta dos "bons tempos" de Nomadland, A Forma da Água, quando o Oscar dava prêmios pra filmes com valores negativos, qualidade estética duvidosa, mas que pelo menos não eram constrangedoramente idiotas.

O Brutalista parece a noção de uma tiktoker de 15 anos do que seria um filme "denso", de temática "adulta". Temos sobreviventes do holocausto com nomes tipo László, Erzsébet, Zsófia, sussurrando frases melodramáticas com sotaque húngaro, uma saga de 3h30 que abrange várias décadas, com uma crítica ao Sonho Americano embutida, sequências de créditos desconstruídas que rolam em todas as direções exceto de baixo para cima; tudo soa extremamente "europeu" — até que a maturidade de tiktoker começa a se revelar na tolice dos diálogos, na falta de noção sobre a era retratada (o comportamento dos personagens e a direção de arte permitem uma margem de uns 30 ou 40 anos de imprecisão histórica). Dizem que ao escrever um livro ou dar uma palestra você deveria saber 10 vezes mais sobre o conteúdo do que aquilo que irá de fato apresentar. O Brutalista passa a impressão de saber 1/10 das coisas que discute: como age um arquiteto, como era a vida de um imigrante nos EUA nos anos 40/50, como empresários ricos vivem e fazem negócios, como adultos falam...

O filme é Pseudo-Sofisticação em esteroides; uma combinação de Oscar-bait com Cannes-bait — duas coisas que até hoje eu não sabia que podiam coexistir. É o tipo de filme que me faz ter vontade de colocar eletrodos nas poltronas pra medir os pensamentos e emoções da plateia, pois tenho certeza que daria pra provar que ninguém de fato gostou da experiência ou sequer entendeu o que estava acontecendo metade do tempo, apesar de todo mundo sair dando 5 estrelas no cartão de avaliação (vi o filme na Cinemateca, na Mostra de SP, onde as filas são quilométricas, os assentos são ruins, cabeças te impedem de ler a legenda, o ar-condicionado não funciona — coisas que pra muitos tornam o filme ainda mais "artístico").

Fica a impressão que o cineasta leu A Nascente da Ayn Rand, gostou muito da parte onde Howard Roark é um arquiteto visionário que preza por integridade artística, mas detestou toda a ética e a filosofia por trás da história, então resolveu subvertê-la (notem a Estátua da Liberdade de cabeça pra baixo já no pôster). Temos aqui então uma premissa parecida, mas servindo pra denunciar o capitalismo e os ideais americanos — o protagonista escapa de ditaduras fascistas/comunistas no início da história, apenas para chegar nos EUA e ser estuprado pelo capitalismo, outro sistema igualmente vil. É uma ideia ridícula, claro, mas que poderia ter rendido um filme espertinho e provocativo se viesse da mente de um Lars von Trier (com quem Brady Corbet trabalhou em Melancolia e poderia ter aprendido umas lições). Mas quando você tem uma ideia dessa mal argumentada, discutida com a profundidade intelectual de uma redação do ENEM, se passando por inteligente apenas por truques estilísticos como os sotaques húngaros e créditos multidirecionais, você fica naquela situação estranha de lamentar que uma coisa, além de mal-intencionada, é também fraca e tola. Isso não deveria ser um alívio?

Minha indignação no fim não é com o filme, nem com Corbet. É com a crítica e os espectadores que cairão nessa fraude.

The Brutalist / 2024 / Brady Corbet

Categoria: Não Idealismo / Anti-Idealismo

Satisfação: 0

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A Substância

(Esta crítica está no formato de anotações - em vez de uma crítica convencional, os comentários a seguir foram baseados nas notas que fiz durante a sessão.)

ANOTAÇÕES:

ANTES DA DIVISÃO

- Ótima a cena do ovo se duplicando após ser injetado com a Substância, e mais brilhante ainda é a sequência seguinte mostrando a deterioração da estrela da Elisabeth Sparkle na calçada da fama. É um pouco estranho colocar duas sequências “high concept” assim uma seguida da outra, mas são boas ideias, que introduzem visualmente os conceitos principais da história.

- O filme tem uma noção excelente de narrativa visual, e sabe usar símbolos de forma objetiva pra comunicar ideias (a deterioração da estrela, a foto de Elisabeth no outdoor sendo rasgada quando ela passa de carro, as escolhas de lentes pra deixar o personagem do Dennis Quaid repulsivo, etc.).

- Demi Moore está linda na primeira parte e tem uma ótima performance o filme todo. Ela transita bem entre os momentos mais sérios da personagem e os momentos mais “Nicolas Cage”. Foi uma ótima ideia de casting, até porque acrescenta uma camada metalinguística à história.

- As referências forçadas ao Kubrick (O Iluminado / 2001) fazem o filme parecer um pouco imaturo e pretensioso (quando você é estudante de cinema e quer se posicionar como “genial", sua primeira ideia é sempre fazer uma referência ao Kubrick em um trabalho — até eu fui culpado disso aos 18 anos).

- O programa de ginástica à la Jane Fonda e o comportamento rude dos homens parecem mais uma caricatura da cultura dos anos 70/80 do que da atual, que já não tolera esse tipo de coisa há muito tempo. 

- O filme é abertamente anti-homens. Todos os homens da história são patéticos, repulsivos (o produtor, o date da Elisabeth, o vizinho, o produtor de elenco, o garoto motoqueiro, os acionistas, etc.).

- Além da linguagem visual e da direção estimulante, um dos motivos da história ser envolvente é que Elisabeth tem uma motivação extremamente simples, que até uma criança de 5 anos consegue entender: se tornar jovem, bela, e ser amada de novo. É um “filme de arte”, mas com uma narrativa que não é mais difícil de acompanhar que a de um desenho infantil.

- A crítica a Hollywood / fama / padrões de beleza é bem superficial. O filme não desenvolve nenhum raciocínio interessante sobre esses temas. Apenas fica mostrando imagens de mulheres perfeitas e de símbolos idealistas sob uma luz meio sinistra — mas isso apenas indica que a cineasta tem uma visão negativa dessas coisas, não é uma “crítica” de fato. O filme usa muito daquela tática vazia que descrevi na crítica de Titane:

Sempre que você pega elementos ligados a sexo, violência, religião, tecnologia, dinheiro, política, e os usa de maneira contrastante e provocativa numa obra, você não precisa realmente ter algo a dizer. O público inventará um significado sozinho. Por exemplo: pegue uma figura de Jesus (religião), e coloque um “M” do McDonald's (capitalismo) em cima da cruz — trabalho feito! Pinte uma mulher nua (sexo), mas com o botão de “Unlock” do iPhone (tecnologia) no lugar do órgão genital — já será o suficiente pra todos acharem sua “crítica” genial (e se a mulher estiver cheia de hematomas então [violência], melhor ainda).

- Há vários contextos onde demitir uma mulher por causa da idade/aparência seria sexista, etarista, injusto — mas exigir corpos no auge da forma em um programa de ginástica na TV não é exatamente “cruel” (o filme escolher esse ambiente pra fazer sua crítica sugere que ele tem aquela visão progressista radical onde aparência física nunca deveria ser um critério, nem mesmo pro cargo de “musa fitness”).

- Aliás, padrões de beleza e procedimentos estéticos estão entre os grandes vilões do cinema de 2024, considerando A SubstânciaFeios (2024) A Different Man (2024).

- Tudo que envolve design no filme é muito bem feito. O “unboxing” da Substância com todas as orientações é particularmente satisfatório.

- A cena do “parto” é bem feita e cria um bom Set Piece.


ELISABETH + SUE

- Qual a necessidade desses closes extremos em agulhas, feridas, nas costas de Elisabeth sendo costuradas? A nudez das atrizes é um elemento apelativo compreensível para essa história, mas o filme fica dando ênfases gratuitas em tudo que é chocante, desagradável, como se achasse uma virtude incomodar.

- Após o nascimento de Sue, começa a ficar evidente um furo central do roteiro: o “pacto fáustico” da história simplesmente não faz sentido. Sue e Elisabeth não dividem a mesma consciência; elas são pessoas diferentes. Se a motivação inicial de Elisabeth era ser amada, voltar a ser jovem e bela, que benefícios a Substância realmente trará pra ela? Nenhum! Ela continuará com sua aparência, sua idade, só que agora com uma cicatriz enorme nas costas, e tendo que abdicar de metade de seu tempo de vida (e ela não foi enganada, era isso mesmo que a Substância prometia). Como isso resolverá seu problema? Se Elisabeth só queria uma versão sua mais jovem, mas com outra consciência, não teria sido mais fácil ela ter uma filha? Eu consigo entender o que faz o Neo tomar a pílula vermelha em Matrix, o que faz os personagens de Quero Ser John Malkovich entrarem na mente de John Malkovich, o que faz os personagens da série Severance separarem suas vidas em duas, o que faz a Ellen Burstyn tomar os comprimidos em Réquiem para um Sonho — já o apelo da Substância não tem muito sentido narrativo, psicológico, e fica parecendo apenas um conceito mal pensado.

- Até o momento do parto, o filme é envolvente, cheio de suspense. Mas depois, o roteiro começa a se perder. Elisabeth não tem o que fazer depois que Sue nasce. Quando é a semana dela acordada, ela fica só vendo TV, cuidando de burocracias, sem nenhum propósito (até porque o filme ignora o furo no roteiro que mencionei no parágrafo anterior). Daí quando é a semana de Sue acordada, o filme fica só mostrando como ela é sexy, como sua vida é divertida. Até quando ela está sozinha em casa ela fica agindo como uma ninfeta — ela nunca se torna uma personagem convincente, relacionável, capaz de carregar a história. É um estereótipo vazio.

- Estranhamente, o filme resolve ignorar a empresa misteriosa por trás da Substância, e não usa isso pra engrossar a trama, criar reviravoltas, etc. A única coisa que sobra agora é esperar as coisas começarem a dar errado para Elisabeth e o filme apelar cada vez mais pro horror corporal.

- Muito do impacto do filme vem da fotografia, da edição, do som. É aquele tipo de sobrecarga sensorial que te distrai da pobreza do enredo. Ouvimos um “swishhh” ou um “whooshhh” toda vez que a câmera se mexe; as ações mais irrelevantes, como Dennis Quaid fumando um cigarro, viram praticamente um vídeo de TikTok hiper estimulante, cheio de efeitos sonoros, ângulos extremos, cortes rápidos. Não há uma única cena normal no filme; tudo tem que ser um videoclipe sexy, estilizado, super dirigido. 

- Qual o sentido da reforma que a Sue faz no banheiro (sozinha!) pra esconder o corpo de Elisabeth?

- Durante o filme todo temos a impressão de estarmos em uma mansão no alto da Mulholland Dr. em Los Angeles, até pela vista da janela. O maior plot twist do filme pra mim é o vizinho que vem reclamar do barulho da furadeira e acaba revelando que estamos em um prédio comum de classe média! É um fato que vai totalmente contra a caracterização de Elisabeth.

- Lá pela 1 hora de filme, Sue começa a quebrar as regras e a história ganha certo interesse, pois queremos saber onde tudo irá parar. Além disso, Elisabeth, que não tinha nada pra fazer no filme, agora pelo menos ganha a motivação de impedir os danos causados por Sue. Mas não há nada de prazeroso mais pra se esperar da história.

- O conflito que vai surgindo entre as duas é bobo e pouco convincente. Vira um filme sobre duas “roommates” com hábitos incompatíveis tendo problemas banais de convivência.

- Ao introduzir alucinações, o filme começa a perder um pouco da objetividade que tinha no começo e a abrir espaço para o interpretativo, o aleatório.

- Como a trama não tem muito pé nem cabeça, e o filme já esgotou tudo o que tinha a dizer sobre Hollywood, homens, padrões de beleza (que se resume a: “são maus”), violência, horror corporal e bundas se tornam a única forma do filme prender a atenção. O filme quer fazer uma crítica à superficialidade do entretenimento, mas ele mesmo aposta em superficialidades pra prender o público. 

- Meio forçado Elisabeth trombar com o senhor com a marca na mão em uma das únicas vezes que sai de casa. O filme espera tão pouco da inteligência do público que acha que a marca não será o bastante pra explicar que ele é a “matriz” do jovem do hospital: precisa fazer ele derrubar o cartão da Substância no chão, e ainda expor a cicatriz nas costas quando ele abaixa pra pegar! Tudo no filme é mastigado, na cara — sou super a favor de clareza, mas quando um filme quer parecer inteligente, o ideal é que ele estimule um pouco o raciocínio do espectador.

- O único desenvolvimento interessante da premissa básica é a cena onde a Elisabeth tenta sair pra um date e não consegue. Nessa cena, o filme acrescenta uma camada interessante à discussão, revela algo novo sobre a personagem. Só que há muito pouco disso no filme. 95% do tempo, ele não tem nada de relevante a dizer. Falta substância a A Substância — mostrar 15 variações da mesma cena onde a protagonista encara uma mulher perfeita em um outdoor/TV/quadro não é o mesmo que desenvolver o tema do filme.

- Elisabeth poderia interromper a experiência a qualquer momento, mas não o faz. Por quê? Ela já sabia dessa opção desde o início? É aqui que o furo do roteiro faz a narrativa perder o sentido. Você tem que começar a supor que existe uma conexão mística entre Elisabeth e Sue que o filme não se deu ao trabalho de estabelecer.


MONSTROS

- Depois que Elisabeth começa a parecer a velha do Iluminado, o filme assume a palhaçada. Eu me divirto com os excessos de cineastas como David Lynch ou até do David Cronenberg na medida em que eles parecem guiados por um propósito dramático/intelectual — quando a loucura parece vir de um estilo autêntico e é justificada pela história. Mas o clímax de A Substância soa forçado, e é autoconsciente demais pra divertir. Está mais pra uma paródia sarcástica de filmes cult do que algo feito com honestidade.

- Os 15 minutos finais são o ponto baixo do filme (me lembrou Barbie, que pra mim foi uma inversão completa do Princípio da Ascensão: começou brilhante, e daí foi piorando progressivamente, guardando as piores ideias pro final). O filme não tem nada a acrescentar, mas fica fazendo referências pretensiosas a Um Corpo que Cai, 2001, e apelando pro grotesco pra tentar tirar algumas reações do público, que a essa altura já não se impressiona com mais nada nesse nível puramente sensorial.

- SPOILER: O final na calçada da fama cria um falso senso de circularidade, como se o roteiro tivesse sido “bem amarrado” por terminar onde tudo começou — mas circularidades assim só são um mérito quando ocorrem por consequências naturais dos eventos. Aqui, não havia razão alguma pro monstro estar perto da calçada da fama e se arrastar até a estrela de Elisabeth. Ele só faz isso pra dar ao filme esta falsa simetria. 

The Substance / 2024 / Coralie Fargeat

Satisfação: 4

Categoria: Idealismo Corrompido / Anti-Idealismo / Pseudo-Sofisticação

Filmes Parecidos: Saltburn (2023) / Titane (2021) / Triângulo da Tristeza (2022) / Réquiem para um Sonho (2000) / Cisne Negro (2010) / A Baleia (2022) / Men: Faces do Medo (2022)

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Pesquisa de tráfego

Queria ter uma noção de quantas pessoas realmente veem uma postagem nova no blog. (Google Analytics e ferramentas do tipo acho meio confusas por causa dos bots, dos visitantes recorrentes, VPNs, etc.)

Vote apenas 1 vez se visualizar esse post. É anônimo. Tks! (Estou vendo se ainda faz sentido fazer certos posts aqui).


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Resultado: 26 pessoas em 6 dias


Obrigado a quem votou. Estava esperando que umas 5 ou 6 pessoas respondessem, então até me surpreendi, apesar do número ser minúsculo ainda, se comparado com os de redes sociais, YouTube, etc. (tive que diminuir 2 votos que foram meus de teste).

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Cultura - Setembro 2024

18/9 - A Nascente (The Fountainhead) em alta?

Dois filmes importantes de 2024 aparentemente beberam da fonte de The Fountainhead. The Brutalist (2024), que foi uma das maiores sensações do festival de Veneza e deve concorrer a vários Oscars, é sobre um arquiteto que muda para os EUA após a 2ª Guerra e enfrenta uma série de dificuldades até fechar um contrato com um cliente rico. Não vi o diretor Brady Corbet citar o livro de Rand como uma de suas inspirações, mas esta matéria da IndieWire anuncia o filme como uma “homenagem” a The Fountainhead.

Fora este, Francis Ford Coppola colocou The Fountainhead (1949) entre os filmes que inspiraram Megalópolis (2024):



















Não espero, no entanto, que esses filmes carreguem quaisquer mensagens do livro (no caso de The Brutalist, estou esperando quase o oposto).




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14/9 - Filmes Conservadores

Entre as tendências que continuam numa crescente no cinema, dá para incluir essa onda de filmes voltados especificamente para o público cristão-conservador, que não tinham tanto destaque até uns 3, 4 anos atrás. Entre as maiores bilheterias dessa semana, temos 4 filmes desse tipo (que costumam ser artisticamente precários, produzidos fora do sistema, e movidos pela “mensagem”): Am I Racist? (o novo documentário do Matt Walsh, de What Is a Woman?), Reagan (uma cinebiografia do Ronald Reagan), The Forge (do diretor/pastor Alex Kendrick) e o 5º filme da série Deus Não Está Morto.

É um sinal negativo de que o declínio da era “woke” não está incentivando uma nova onda Idealista, apenas uma revanche “anti-woke”.



segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Setembro 2024 - outros filmes vistos

Robô Selvagem (The Wild Robot / 2024 / Chris Sanders)

Visual mais bonito que vi esse ano (assisti ao filme em uma sala com projeção laser, o que tornou tudo ainda mais impactante). A história remete a filmes como WALL·E, E.T., Dumbo, e é bem contada na maior parte, apesar de parecer mais uma reciclagem inteligente do que uma narrativa inspirada, com luz própria. O ato final tem alguns conflitos forçados e algumas mensagens duvidosas do eixo “misticismo-altruísmo-coletivismo”, mas nada a ponto de arruinar a experiência.  

Satisfação: 7 (Idealismo Imperfeito)



Silvio (2024 / Marcelo Antunez)

O que eu mais tenho aprendido vendo filmes brasileiros ultimamente é a apreciar a competência que existe por trás até de produções medianas dos EUA; qualidades que passam despercebidas, pois achamos que aquilo é o “normal” do cinema, algo automático, mas que na verdade já são reflexo de inúmeros cuidados. Em Silvio, os problemas começam no roteiro, que decide contar a história de Silvio Santos via flashbacks, usando o sequestro como moldura narrativa. Isso não funciona, primeiro porque não faz sentido Silvio começar a narrar sua história para um sequestrador naquela situação, o que torna todos os flashbacks artificiais. Depois, porque não há motivo para o Silvio ficar refletindo profundamente sobre sua vida, como se o sequestro tivesse algo a ver com sua trajetória, com escolhas que fez no passado. O sequestro no fim é um incidente aleatório que não tem relação alguma com a vida pessoal de Silvio Santos. Dramaticamente, faria mais sentido se víssemos flashbacks da vida do sequestrador ao longo do filme. É ele quem precisa tomar decisões importantes na trama, repensar seus valores, agir. Outro problema é que o sequestro não é particularmente dramático; não há desdobramentos interessantes, reviravoltas, um contexto cultural/político maior, e o desfecho é particularmente tedioso. Fica a impressão de que o sequestro foi usado como moldura só pra baratear a produção, já que desta forma, a biografia se passa na maior parte do tempo dentro de uma casa moderna, e as reconstituições mais elaboradas de época são reduzidas a umas poucas cenas. Além disso, o foco no sequestro dá ao filme aquele ingrediente indispensável do cinema nacional: bandidos e policiais falando palavrão e trocando tiros. Qualquer história que você queira contar aqui, parece que basta você passá-la pelo filtro Cidade de Deus / Tropa de Elite que o filme se torna automaticamente mais “comercial” (pelo menos na cabeça dos produtores). 

Tudo isso passaria batido pro público se a execução do filme fosse de primeira: se o casting fosse excelente, se a maquiagem convencesse, se o som e a fotografia tivessem num padrão internacional de qualidade. Mas o filme desliza em todos esses aspectos mais concretos também, especialmente na representação do Silvio Santos, que não lembra nem em aparência e nem em personalidade o apresentador alegre e visionário que todos conhecemos tão bem.

Satisfação: 2 (Idealismo Corrompido)



Rebel Ridge (2024 / Jeremy Saulnier)

Quando não gosto de um filme, é geralmente por eu achá-lo ruim esteticamente, ou então por achar a história mal intencionada, os heróis detestáveis, etc. O caso de Rebel Ridge é diferente, pois não só o filme é bem feito, como tinha tudo pra ser um suspense empolgante, uma versão mais Idealista de histórias de vigilante tipo John Wick — e o que o estraga é só uma questão de ênfase. A trama se encaixa na História Idealista #4 — a do personagem gostável que sofre uma injustiça e parte para corrigir a situação. Só que apesar do filme não relativizar bem e mal, e de parecer estar caminhando para um final feliz, o sentimento-chave de Rebel Ridge acaba sendo o de raiva, de indignação moral, pois os vilões são tão corruptos, odiosos (e realistas, o que é pior), e o filme cria tantas complicações e contratempos para o herói, que 1 hora filme adentro sua corrente sanguínea já está tão inundada de cortisol que nem uma vingança à la Dogville poderia te fazer sair feliz da sessão. É um ótimo lembrete de que o cinema deve ser tanto sobre a jornada quanto sobre o destino.

Satisfação: 2 (Idealismo Corrompido)

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DESISTÊNCIAS (comecei a ver e perdi o interesse):

- Feios (2024)
- Xógun: A Gloriosa Saga do Japão (2024) T1.E1

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Os Fantasmas Ainda se Divertem - Beetlejuice Beetlejuice

“MacArthur Park” e “Tragedy” estão entre minhas músicas disco favoritas, mas até eu achei que o Tim Burton se empolgou demais nos needle drops em Beetlejuice Beetlejuice, que estão entre as poucas sequências do filme que não funcionam tão bem — um pouco pela seleção das músicas (algo mais excêntrico, menos pop, teria casado melhor com o espírito anárquico da produção) mas também porque o roteiro não cria um pretexto narrativo pra essas sequências, que acabam soando meio gratuitas (a piada com o programa Soul Train já achei engraçada, pois tem uma conexão com a cena).

O roteiro no fim é o aspecto mais frágil do filme. Não por ser genérico, sem criatividade, mas porque falta uma direção para a trama, que fica saltando entre diversas gags, narrativas paralelas e demora demais para definir um conflito central. Ainda assim, o filme entretém porque ele é surpreendentemente rico em ideias originais, sacadas cômicas, além do elenco todo estar muito bem. Até os representantes Gen Z da história estão menos irritantes que de costume, pois em vez de jovens aborrecidos e superficiais, aqui temos jovens aborrecidos e altamente cultos, inteligentes, o que já é um avanço.

Fiquei bastante impressionado com a qualidade geral da produção. É daquelas raras estreias que te dão a sensação de estar vendo um filme real, feito com o mesmo nível de energia e profissionalismo que se via nos tempos áureos de Hollywood (senti algo parecido em O Retorno de Mary PoppinsTop Gun: Maverick, mas em pouquíssimas outras sequências dessas que tiveram um longo intervalo no meio). O fato de Winona Ryder estar com uma ótima aparência, e de idade não ser uma questão também para o personagem do Michael Keaton, aumenta ainda mais essa ilusão de que 1988 não foi há tanto tempo assim — que a magia do cinema talvez nunca tenha morrido de fato, é só uma questão de alguém querer ressuscitá-la. Os efeitos práticos também estão excelentes e servem como argumento a favor dessa nova onda anti-CGI.

Podia ter sido melhor se tivesse uma trama mais focada, um conflito central mais sólido, mas ainda assim, é um retorno à forma para o Tim Burton (nunca fui um grande entusiasta dos filmes dele ou do próprio Beetlejuice original, então “7” não é uma decepção), e é mais uma prova que 2024 é o ano em que a diversão está tentando fazer um comeback no cinema. 

Beetlejuice Beetlejuice / 2024 / Tim Burton

Satisfação: 7

Categoria: I

Filmes Parecidos: Wandinha (2022–) / Abracadabra 2 (2022)

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Han Solo e Leia: Quase Corrompidos

É uma pena que eu ainda não tivesse visto o documentário Império dos Sonhos: A História da Trilogia Star Wars (2004) quando fiz o vídeo sobre The Acolyte, pois ele contém uma ilustração excelente da questão dos relacionamentos conflituosos e das expressões faciais que discuto no vídeo. O documentário mostra que O Império Contra-Ataca quase teve uma cena entre Han Solo e Leia que teria um clima mais cínico e pessimista como o das produções atuais. A cena chegou a ser filmada, mas na edição os produtores sentiram que havia algo de errado, e resolveram refilmá-la.

Os comentários do Gary Kurtz (produtor) no vídeo abaixo sugerem que os cineastas não tinham uma compreensão muito clara de qual era o problema da cena. Ele diz que a atitude dos atores parecia “óbvia demais”, e que depois eles refilmaram a cena de forma “mais sutil”, o que não tem nada a ver com o real problema. O que eles estavam fazendo, sem saber, era “descorromper” a cena e alinhá-la de volta com o Idealismo, dando aos personagens uma aura de benevolência e pureza de caráter. Ainda assim, intuitivamente, eles perceberam que a cena destoava do resto do filme, e fizeram os ajustes certos.

Na cena deletada, Han Solo começa fazendo um comentário meio hostil e cínico sobre o jeito de Leia se vestir, ofendendo a feminilidade dela. Depois vemos ela olhando pra ele em silêncio, desconfiada. No diálogo sobre Lando, há uma clara desarmonia entre os dois. Enquanto conversam, Han Solo avança pra cima de Leia, tentando beijá-la, e ela vira a cara. Mas no fim, ela acaba o beijando mesmo assim, apesar deles não terem resolvido o conflito de fato, o que torna o beijo meio sujo e melancólico.


Contraste isso com a cena regravada. A discussão quando Han Solo entra na sala já é muito mais leve — a voz exaltada, mais veloz e teatral, cria a impressão de um atrito não-sério desses de comédias românticas clássicas, onde a dupla obviamente se gosta e o desentendimento é superficial. O beijo na testa apenas confirma isso, quebrando qualquer senso de hostilidade. O diálogo depois também é mais amigável, o que se reflete nas expressões faciais. Ainda existe um conflito, mas não há mais o toque malevolente. Han Solo parecer triste e abaixar a cabeça no final, quando Leia fala sobre ele querer partir, revela um anseio por união, por harmonia, que faz a gente torcer para que eles fiquem juntos — algo bem diferente da aceitação do conflito e da incompatibilidade que o beijo da outra cena comunicava.

(No vídeo acima eles editaram a parte do beijo na testa, no clipe abaixo dá pra ver a cena final completa.)

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Problemas do Objetivismo #11 - O Homem Comum Como Racional

Já abordei este tópico da "natureza humana vs. a implementação do Objetivismo" na postagem #8, mas enquanto lá eu estava focando mais no lado da implementação das ideias, aqui eu queria elaborar melhor a questão da natureza humana.

No Objetivismo, acredita-se piamente no livre arbítrio e na capacidade do ser humano de pensar e agir racionalmente (e, consequentemente, no potencial de todo homem de se tornar um indivíduo independente, produtivo, que vive em sociedade sem violar os direitos de outras pessoas). Ainda que objetivistas reconheçam que a maioria dos homens não faz um bom uso dessa capacidade, eles ainda acreditam que todo ser humano poderia atingir este potencial se ele realmente quisesse (exceto no caso de pessoas com graves deficiências, que são uma pequena minoria).

Eu não concordo 100% com essa posição, e pra desenvolver essa ideia eu provavelmente teria que escrever um livro, o que não é minha intenção. Mas vou tentar fazer um resumo simplificado da ideia, já que ela está na base de algumas das principais divergências que eu tenho com o movimento objetivista "ortodoxo".

Assim como Rand, eu acredito no livre-arbítrio. A diferença é que eu não acredito que ele existe plenamente, no mesmo grau, em toda a espécie humana. Pra mim, o livre-arbítrio, assim como a inteligência e a racionalidade, parece existir em um espectro entre os homens — como se sua origem fosse um "órgão" relativamente novo no processo evolutivo da humanidade, que não tivesse sido 100% consolidado na espécie, como os pulmões e os olhos. Cada pessoa, portanto, nasce com um certo potencial intelectual, e ela até tem algum controle sobre este potencial, mas não um controle irrestrito. A elasticidade deste potencial parece existir também em um espectro: quanto maior o potencial intelectual com o qual a pessoa nasce, maior a elasticidade e a capacidade dela se auto programar na vida adulta para ampliar sua inteligência e o escopo do seu livre-arbítrio. Quanto menor o potencial inicial, menor a elasticidade e menor essa capacidade de "auto programação". Alguns homens, portanto, seriam menos limitados por seus instintos primitivos (que governam todos os outros animais) e mais capazes de viver conforme a razão e o livre-arbítrio, e outros seriam mais ligados aos seus instintos primitivos, e menos capazes de viver racionalmente. E, pra mim, os mais capazes de viver racionalmente (ou seja, não dominados por seus instintos primitivos, como aqueles descritos na teoria do Dabrowksi) estão em minoria, não em maioria como alguns objetivistas sugerem.

Ou seja, o homem não seria tanto o "animal racional", mas o animal "potencialmente racional" ou "parcialmente racional". E o Objetivismo não seria "uma filosofia para viver na Terra", mas "uma filosofia para as minorias mais racionais viverem na Terra".

O Objetivismo baseia toda sua teoria política no fato do homem ser racional e ter livre-arbítrio. Por isso há um certo receio em questionar este ponto, afinal, se o homem não for racional, isso poderia colocar a filosofia em xeque e abrir a porta para todo tipo de autoritarismo, para ideias nietzschianas / platônicas sobre como as massas ignorantes devem ser comandadas por uma elite iluminada, etc.

Mas eu não acho que esta visão espectral da racionalidade coloca em xeque os princípios básicos do Objetivismo, nem mesmo na política. Continuo achando válidos os conceitos de direitos individuais, de igualdade perante à lei, de governo limitado, etc. Se, em vez de uma minoria, a maioria dos homens tiver tendências irracionais, a função do governo de proteger direitos individuais não muda em essência — a diferença está mais no tamanho do governo, na quantidade de "policiais" necessários para impedir os trapaceiros, os criminosos, que seriam mais numerosos do que gostaríamos de imaginar, nesse caso.

O Objetivismo diz que o conceito de direitos individuais só é aplicável a seres racionais — por isso Rand não defendia a autonomia absoluta de menores de idade, de fetos, de animais, etc. Portanto, mesmo que a maioria dos homens se prove irracional por natureza, isso não quer dizer que temos que alterar esta visão política e abraçar o autoritarismo. Liberdade continuará sendo defendida para quem respeitar os direitos dos outros. Limitar a liberdade de criminosos nunca foi "autoritarismo".

O que teria que ser mudado no objetivismo é apenas essa visão positiva que se tem às vezes da índole do homem comum (que inclui o trabalhador comum, o homem de negócios comum, o leitor de A Revolta de Atlas comum), pois isso interfere nos caminhos escolhidos para implementar ideias, para tentar melhorar a sociedade, etc. A estratégia atual de educar intelectuais e expor o maior número possível de jovens às ideias de Ayn Rand, até que elas se tornem mainstream, faz sentido apenas se a maioria dos homens for racional e tiver um grande potencial intelectual. Mas se a maioria não for tão racional assim, o Objetivismo nunca será mainstream e a estratégia provavelmente terá que ser outra.

Na minha visão, uma sociedade baseada em liberdade/direitos individuais só existe quando é formulada por homens mais conscientes e "imposta" de cima para baixo, sem a total compreensão e a total sanção do cidadão médio (que, por ser amplamente dominado por instintos, vai sempre preferir economias mistas e governos semi-autoritários que permitem uma boa dose de parasitismo nas relações humanas).

Na minha visão, o normal da espécie humana não é a independência, a honestidade, a produtividade, a racionalidade. O normal é a inconsistência, a mistura de algumas dessas virtudes com uma série de vícios — ações motivadas por racionalizações, por impulsos emotivos, por "egoísmo irracional", pelo pensamento a curto prazo, etc. O enorme progresso da civilização ocidental nos últimos séculos não é necessariamente uma prova da racionalidade humana, e sim uma prova da racionalidade daqueles que elaboram o sistema capitalista. Quando um rio passa por uma hidrelétrica e gera eletricidade, isso não prova que o rio é inteligente e produtivo, e sim que os cientistas que criaram a hidrelétrica são. A humanidade em seu estado natural tende à estagnação, à pobreza, à violência, ao parasitismo. Além disso, toda a riqueza e a prosperidade gerada pelos homens mais produtivos tende a ser corroída ao longo do tempo pelo parasitismo do homem comum. Apenas dentro de um sistema político meticulosamente planejado para conter seus impulsos destrutivos e liberar seu potencial produtivo é que o homem comum prospera e esse processo de "oxidação" pode ser retardado, revertido. Mas esse sistema nunca é espontaneamente criado pelas massas, nem é espontaneamente preservado pelas massas. Na ausência de proteções firmes e monitoramento constante por parte dos homens mais conscientes, o curso natural se segue, que é a corrupção do sistema. 

Rand escreveu em "Conservatism: An Obituary":

"Qual é a racionalidade daqueles que esperam enganar as pessoas rumo à liberdade, enganá-las rumo à justiça, iludi-las rumo ao progresso, trapaceá-las para que elas preservem os seus direitos e, ao mesmo tempo que as doutrinam com o estatismo, dar-lhes uma rasteira para que um dia acordem numa sociedade capitalista perfeita?"

Por passagens como esta, fica claro que Rand era contra qualquer tipo de jogo ou manipulação na implementação da liberdade, pois na visão dela, isso levaria a uma corrupção dos ideais e a um sistema impuro. De fato, seria incoerente apelar para o estatismo para chegar à liberdade. Mas o tipo de "jogo e manipulação" que eu tenho em mente não envolve autoritarismo nem a corrupção do sistema. Envolve apenas a constatação de que é inútil tentar lidar racionalmente com o lado irracional do público; que você deve lidar com ele da mesma forma que se lida com crianças que precisam ir ao dentista, ou com animais ferozes que precisam de uma focinheira: você não espera aprovação, compreensão intelectual plena, mas você também não age sem tato, sendo violento, sendo explícito quanto às suas intenções, pois você sabe que se despertar uma reação de revolta, você não atingirá seu objetivo tão facilmente.

Quando você está lidando com um ser que é parte racional, parte irracional, você deve ao mesmo tempo respeitar os direitos de seu lado racional e negar "direitos" (como honestidade plena) ao seu lado irracional. Não deve nem ser autoritário e atropelá-lo, nem confiar totalmente em sua autonomia. Você deve conduzi-lo inteligentemente e cautelosamente na direção certa, mas sem feri-lo.

De certa forma, os Founding Fathers talvez tenham sido mais sagazes que Rand nesse ponto. Claro, é provável que a Declaração de Independência seja intelectualmente vaga e superficial por limitação filosófica da parte deles, não por uma estratégia brilhante. Mas suspeito que se Rand tivesse escrito o documento e deixado ele "perfeito" em suas definições, os EUA nunca teriam sido fundados, pois as maiorias se rebelariam.

Muitos dos dilemas e das frustrações no movimento objetivista não estão ligados aos princípios filosóficos em si, mas à maneira de implementá-los na sociedade e de comunicá-los aos outros. E esses conflitos me parecem ser causados em grande parte por esse otimismo duvidoso quanto à racionalidade do homem comum. Quando você olha para o mundo de maneira mais fria, considerando que 50%, 60% ou uma fatia até maior da população pode ser amplamente incapaz de viver racionalmente, muitos dos dilemas da filosofia desaparecem.

Soa como uma visão deprimente e determinista da humanidade, mas não estou dizendo que é inútil tentar melhorar a sociedade, educar as pessoas, e que uma sociedade livre é impossível de ser implementada nesse cenário. Acredito que as transições entre "vermelhos", "laranjas" e "verdes" no gráfico sejam móveis; que a parte verde possa aumentar um pouco, que a parte vermelha possa encolher um pouco em determinada sociedade. Só não acho que seja possível tornar o gráfico inteiro verde — e nem acho necessário tornar a humanidade inteira verde para que o sistema possa ser verde. Uma sociedade baseada em liberdade e em direitos individuais pode existir mesmo à luz dessas tendências das maiorias. Mas as pessoas que irão promover e assegurar esta sociedade precisam ter uma visão realista da natureza humana para serem eficazes. 

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