sexta-feira, 28 de julho de 2017

Dunkirk

NOTAS DA SESSÃO:

- Produção excelente. A imersão audio-visual que o filme proporciona é incrível. Parece que estamos num simulador da Disney (especialmente em IMAX).

- A trilha sonora é uma das piores que já ouvi. Em vez de uma composição musical com melodia, estrutura, diversos climas que acompanham a narrativa e se integram à imagem, temos apenas um zumbido constante dando um clima de gravidade, e eventualmente barulhos pulsantes irritantes que soam como um alarme pra deixar a plateia tensa.

- A ideia do filme se passar em 3 tempos (1 semana, 1 dia, 1 hora) é um mecanismo tolo. Não cria nenhum tipo de ordem na cabeça do espectador, não acrescenta nada à história, não vemos nenhuma conexão especial entre as 3 histórias. É apenas um daqueles truques de Nolan pra narrativa parecer mais elaborada do que é (o "sonho dentro do sonho", etc).

- Um pouco mal explicada a ideia do Mark Rylance partir de barco sozinho pra Dunkirk, arriscar a vida de seus filhos junto. Falta uma motivação melhor, uma explicação mais convincente pra ele colocar crianças nessa situação.

- O filme não tem nenhum desenvolvimento de personagem, não tem protagonista, não estabelece a motivação de ninguém, não cria empatia por ninguém. Fica apenas mostrando homens em situações de perigo, esperando o resgate sem ter muito o que fazer, intercalando eventuais ataques aéreos com outras situações menores de tensão do tipo: soldado quase é esmagado, soldado quase morre afogado, soldado quase é baleado, soldado quase pega fogo, soldado quase explode, etc. Literalmente não há nenhuma história ou conteúdo no filme. É apenas um simulador de parque de diversões como disse acima, pra gente sentir como é estar no meio da guerra.

- O garoto tropeça dentro do barco e fica cego? É um incidente totalmente desnecessário pra história. E de repente ele começa a falar em tom poético, como se tivesse vivendo um drama grandioso, sendo que ele só teve um acidente idiota! O cineasta busca qualquer oportunidade pra mostrar tragédia, personagens contemplativos diante da morte, glamourizando o sofrimento humano (não em contraste com momentos positivos na história, mas como um fim em si mesmo). Há uma série de acidentes banais (portas que emperram, trens de pouso que enguiçam, etc) só pra mostrar atores com expressões de desespero. (Minha postagem Emoções Irracionais resume bem o filme.)

- Não temos a menor noção de onde estão os inimigos, de quanto tempo falta pra eles chegarem, em quantos eles estão, por onde chegarão, etc... Imagina assistir Titanic sem ter uma ideia de quanto tempo demora pro navio afundar, quanto tempo falta pro resgate chegar, o quão letal é a temperatura da água, etc.

- Todo esse "respeito" que Nolan tenta demonstrar pelo cinema, pela tradição, no fim parece uma grande farsa. Ele grava o filme em 70mm, se apresenta como um defensor da verdadeira experiência cinematográfica, se coloca contra Netflix, ver filme em telas pequenas, etc, mas ao mesmo tempo ele joga no lixo aquilo que é o principal de tudo: a arte de contar histórias. Ele só quer que as pessoas vejam o filme dele em IMAX porque ele sabe que ele não tem nada a oferecer além de imagens e sons impactantes. Se você vê um filme do Kubrick em casa numa VHS velha, ainda é um ótimo filme. O que sobraria de Dunkirk? As pessoas acham que Nolan é o diretor que trouxe de volta a inteligência pros blockbusters, que ele representa uma união entre o cinema comercial e o cinema de arte, entre "corpo e mente", mas no fundo ele é apenas "corpo". Apenas experiência sensorial, sem conteúdo, sem cérebro. Não é muito diferente de um Transformers, uma experiência audio-visual desmiolada - a diferença é que Transformers não finge ser algo mais sofisticado do que é.

- Toda essa sub-trama dos soldados escondidos no casco do barco é muito mal desenvolvida: os inimigos praticando tiro ao alvo justo onde eles estão, a ideia deles esperarem a maré subir pra poderem fugir, depois tentando tampar os buracos de bala com as mão pra água não entrar - é tudo muito forçado e mal conduzido. O diretor inventou que não pode mostrar nenhum inimigo no filme, mas isso acaba tornando cenas como essa confusas e irreais.

- SPOILER: Quando chegam os barcos no fim pra resgatar os soldados, eles surgem como um milagre. Não é um "pay-off" pra algo que já estava sendo desenvolvido na trama, é apenas uma solução mágica que cai no colo deles. Não é consequência de decisões tomadas pelos protagonistas ao longo do filme, então não é um desfecho satisfatório (e esses barquinhos vão conseguir resgatar 400.000 homens?!).

- Mal dirigida a sequência do avião sem combustível no fim que consegue abater o outro avião. E por que todo mundo começa a aplaudir, a musica fica épica de repente? O filme quer dar a falsa sensação de que esse foi o "ataque final", o mais perigoso do filme, e que agora todos estão a salvo e o filme pode acabar. Mas na realidade foi apenas mais 1 ataque como dezenas de outros que ocorreram. Não há nenhuma dinâmica, nenhuma construção ao longo do filme... Ele começa mostrando soldados sendo atacados, e 1 hora e meia depois ainda está mostrando soldados sendo atacados nas mesmas condições. Não houve uma "vitória" especial agora, um senso real de desfecho. Eles ficaram apenas aguardando o resgate o tempo todo, tentando não morrer, e daí chegou o resgate.

- Péssima toda essa música triunfante no fim, o discurso emotivo, tentando criar uma emoção artificial no espectador, sendo que o filme não se importou em fazer a gente se envolver com nenhum personagem desde o início.

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CONCLUSÃO: O nada mais grandioso do ano.

Dunkirk / Reino Unido, Países Baixos, França, EUA / 2017 / Christopher Nolan

FILMES PARECIDOS: O Regresso (2015) / Interestelar (2014) / Gravidade (2013) / A Árvore da Vida (2011)

NOTA: 3.5

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Emoções Irracionais

(Capítulo 21 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

Filmes podem tentar provocar emoções/reações/impressões de forma racional ou irracional no espectador. Uma “emoção racional” acontece quando o filme concretiza suas abstrações de maneira eficaz, como discutido no capítulo “Os 4 Pilares do Idealismo”: quando ele primeiro apresenta fatos, informações, eventos, e espera que o espectador reaja/se emocione com base nesses fatos, após assimilar aquilo que viu, e julgar de acordo com suas próprias percepções e critérios. Uma emoção irracional é quando o filme tenta driblar o estágio de percepção, julgamento, e provocar emoções de maneira direta, quase que por osmose, apelando para os instintos subconscientes do espectador — por exemplo, usando música, fazendo os atores emularem certas expressões faciais e esperando que a mesma emoção surja no espectador por “contágio”, driblando a mente e apelando diretamente para o lado mais inconsciente do público.

Essa é uma maneira comum que até filmes populares apelam para o Subjetivismo e rompem com o pilar da Objetividade. Não estou sugerindo aqui que esses recursos (trilha sonora, interpretação) sejam ruins — apenas que eles não devem tentar substituir os fatos e o conteúdo da história. Nos bons filmes, as duas coisas acontecem em conjunto: os fatos da história te conduzem a uma certa emoção, e daí o cineasta utiliza todos os “truques” cinematográficos junto com os atores para tornar aquela emoção mais vívida, intensa e real.

Os bons cineastas pressupõem sempre que o espectador seja racional e não esteja sujeito a manipulações baratas. Infelizmente, a verdade é que a maior parte da plateia está sim sujeita a essas manipulações, e responde prontamente a impressões superficiais, aparências, sugestões vagas, como se fossem equivalentes a fatos e acontecimentos concretos.

Por causa dessa deficiência, alguns filmes e cineastas conseguem se tornar extremamente populares apenas por saberem apertar esses “botões” e apelar para o lado emotivo dos espectadores, assim como um político pode chegar à presidência de um país hoje em dia sem ter nada de coerente a dizer, sem explicar claramente seus planos, apenas conseguindo criar certas emoções em seus discursos, sendo um bom showman, passando um ar de poder e respeitabilidade através de sua aparência e atitude, sem que nada disso esteja fundado na realidade.

Para ilustrar o que seriam emoções racionais, vamos pegar o filme E.T.: O Extraterrestre (1982), mais uma vez. Certamente a performance de Henry Thomas, os efeitos especiais e a música poderosa de John Williams contribuem muito para o impacto emocional do filme. Mas se o espectador se emociona no final, na sequência de despedida, por exemplo, não é apenas porque os personagens estão chorando em sua frente e a orquestra está tocando uma música bonita —, e sim porque os eventos da história o prepararam para aquele estado (talvez para o espectador puramente emocional, bastassem as lágrimas, as reações e a música fora de contexto, mas um bom filme sempre tentará atingir o espectador focado, consciente).

Por que a plateia está correta em ficar triste com o fato de E.T. ir embora? Porque o filme estabeleceu, cena após cena, ao longo do filme inteiro, que E.T. é um valor importante para o protagonista. Nós primeiro vimos como era chata a vida de Elliott antes da chegada de E.T. (uma criança que ninguém levava a sério, levando uma vida comum, tentando fazer parte da turma sem sucesso, sendo perturbado pelos colegas da escola, pelo irmão mais velho etc.), e depois vimos como E.T. transformou tudo isso para melhor, através de ações concretas. Vimos como ele fez de Elliott um garoto mais forte, responsável, respeitado, tornou sua vida mais excitante, grandiosa. Tão importante quanto E.T. ser um valor para Elliott, é o fato de E.T. ser um valor para a plateia — pelo personagem ter tornado a experiência do espectador mais divertida. Ao longo do filme, E.T. foi o causador de uma série de emoções prazerosas: o espectador riu com seu jeito, se encantou com seus poderes mágicos, então, quando E.T. vai embora, a plateia não se comove só por consideração a Elliott, mas porque o espectador também sentirá falta do personagem e das emoções positivas associadas a ele. O espectador tem razões palpáveis para se emocionar no final. Não adianta um filme mostrar uma mãe perdendo um filho fora de contexto, filmar uma cena trágica de guerra, mostrar atores reagindo de forma dramática, e achar que isso automaticamente irá comover o espectador por serem coisas “intrinsecamente” tristes. Isso não irá convencer o espectador consciente, que tem controle sobre suas emoções. Já se a abordagem do cineasta for correta, ele poderá comover o espectador até com a “morte” de objetos inanimados, como, por exemplo, a bola de vôlei do filme Náufrago (2000).

Estou focando aqui na emoção de tristeza, mas isso vale pra todas as emoções e reações que um filme pode causar: um senso de vitória, surpresa, esperança, medo etc. Há sempre a maneira racional de provocar essas emoções, e a maneira fajuta, enganosa, que apela para impressões, aparências e clichês.

Imagine, por exemplo, um filme de esporte no qual os heróis precisam vencer a disputa final. Para o espectador ficar feliz com a vitória, algumas coisas teriam que ser estabelecidas antes. Primeiro, os protagonistas têm que fazer coisas concretas para que se tornem gostáveis, e, com isso, o espectador queira torcer por eles. Depois temos que ter uma noção da importância da vitória para eles: o que aquilo significará, que mudança irá trazer para suas vidas. E temos que saber do lado negativo também: o que de ruim pode acontecer caso eles não conquistem esse objetivo, e também por que os adversários não merecem a vitória. Obedecendo o Princípio do Contraste, precisamos também sentir um gostinho das emoções negativas associadas à perda, para que o objetivo não pareça fácil demais. Os adversários precisam parecer fortes, ameaçadores. E a vitória, quando ocorrer, tem que ser mostrada de maneira convincente. Esta seria a forma de criar uma emoção legítima.

Ainda assim, através do poder do cinema, é possível provocar arrepios e reações no espectador simplesmente através de técnicas, manipulação, apelando diretamente para as emoções, para o subconsciente. E, muitas vezes, mesmo o espectador objetivo pode se ver caindo nessa manipulação — se arrepiando contra sua vontade, com um misto de prazer e resistência. Mas essas serão sempre emoções superficiais se elas não forem apoiadas pelos eventos e elementos concretos que o espectador observou na história.

Peguem, por exemplo, a cena do filme Interestelar (2014) onde o personagem do Matthew McConaughey, que está há anos numa missão espacial, abre mensagens de vídeo de seus filhos na Terra e começa a chorar. Se nos emocionamos com essa cena, não podemos dizer que é pelo apego que tínhamos em relação aos personagens dos filhos, pela importância que o protagonista atribuiu à paternidade ao longo da história, pelo fato de acharmos os filhos personagens carismáticos, sentirmos falta deles. A emoção vem fora de contexto, simplesmente por causa da performance do ator, da música, da edição, e por causa da percepção comum de que é triste estar separado de seus filhos. Nada que tenha de fato sido estabelecido como um valor dentro do contexto da história e construído pela narrativa. Se Interestelar fosse um livro e lêssemos essa cena no papel, ela não teria grande impacto emocional, pois estaríamos apenas lidando com os fatos da história, sem o poder do cinema de forjar certas sensações.

É uma regra conhecida na literatura que o uso de adjetivos deve ser limitado — que o bom escritor deve mostrar ao invés de contar. Esse tipo de atalho no cinema é o equivalente ao uso excessivo de adjetivos na literatura.

Em todos os seus filmes, Nolan usa métodos parecidos para dar a impressão de que algo inteligente ou profundo está acontecendo. Em vez de apresentar uma série de fatos e ideias palpáveis, esperar que a plateia enxergue sozinha a inteligência naquelas associações, e, com isso, fique admirada, Nolan apela para emoções irracionais: confunde o espectador com tramas obscuras, impedindo que ele tenha uma medida exata daquilo que está sendo dito, toca em temas técnicos e confusos como viagem no tempo, física quântica, o funcionamento do cérebro, deixando o espectador desarmado, sem tempo de julgar as ideias com clareza, e, em cima disso, usa suas habilidades como cineasta para criar a impressão de um acontecimento profundo, arrebatador, com atores fazendo expressões de espanto, uma música épica tocando no último volume — imitando o estilo de uma cena dramática, mas sem o conteúdo que a tornaria de fato dramática.

Pegue, por exemplo, a cena de A Origem (2008) onde Leonardo DiCaprio desafia a personagem da Ellen Page a desenhar um labirinto que leve um minuto para ser solucionado. Ela tenta duas vezes, mas DiCaprio resolve o labirinto antes do tempo. Na terceira tentativa, Page é bem-sucedida, pois tem a ideia de desenhar um labirinto redondo, em vez de quadrado. Mas por que um labirinto redondo leva mais tempo para resolver do que um quadrado? Não fazemos ideia. A cena apenas cria a impressão de que ela foi inteligente, pensou “fora da caixa”, mas a ideia em si não faz sentido para o espectador (assim como a trama do filme todo). É bem diferente da cena de Contato (1997), de Robert Zemeckis, onde os cientistas tentam por dias sem sucesso encaixar as páginas de dados enviadas pelos extraterrestres, até que Hadden encontra a solução, pensando fora da caixa — imaginando uma estrutura em 3D em vez de um quebra-cabeça bidimensional. Ali nós entendemos a solução, e temos uma reação do tipo: “claro, por que não pensei nisso antes?!” — a ideia está conectada à realidade, então a descoberta vem seguida de uma satisfação genuína, e convence que o personagem foi inteligente.

Filmes do Nolan são um verdadeiro pesadelo epistemológico para um espectador com uma mentalidade objetiva. Assista as cenas de ação de Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), como a luta na garagem com os múltiplos Batmans, ou a do Batman contra o time da SWAT no prédio, e repare no senso de caos, como o espectador nunca sabe exatamente o que está acontecendo, quem está onde, quem atirou em quem, como tudo parece uma colagem de imagens desconectadas — e compare isso com qualquer sequência de ação num filme de James Cameron. Estudem a excelente perseguição de moto no canal de O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991), e repare como temos uma noção espacial perfeita a todo momento, como conseguimos observar e entender cada ação de cada personagem, como existe um senso de unidade, de causalidade, e como a cena segue uma linha inquebrada de raciocínio.

Embora Cameron goste de ficção científica e lide com acontecimentos impossíveis, ele sempre demonstra um enorme respeito pela razão em seus filmes, não só na maneira de contar a história e se comunicar com o espectador, como também apresentando heróis e heroínas que explicitamente funcionam com base na razão (me vem à mente Sigourney Weaver em Aliens – O Resgate perguntando aos seus empregadores da Weiland Corporation se os Q.I.s despencaram durante os anos que ela ficou hibernando no espaço). Nolan, por outro lado, não tem concepção de Objetividade, e isso se reflete tanto em suas histórias, que são sempre sobre realidades inconsistentes, universos paradoxais, personagens que não distinguem sonho de realidade, como também em seu estilo e sua maneira de se comunicar com o espectador.

M. Night Shyamalan é outro cineasta que muitas vezes apela para emoções irracionais, embora num nível menos grave que Nolan. O que há em comum entre os dois é que ambos são muito eficazes como diretores, mas nem sempre são excelentes roteiristas. Eles têm o dom para dirigir uma cena de maneira impactante, mas nem sempre o de dar substância a essas cenas, algo que é a função de um bom roteirista. Eles são muito bons com o “como”, mas não com o “o que”. No filme Fragmentado (2016), de Shyamalan, há um momento no final onde aparece o personagem do Bruce Willis, criando uma conexão inesperada entre Fragmentado e o filme Corpo Fechado (2000). A revelação só parece impactante por causa da maneira como a cena é dirigida: a música edificante, a câmera se aproximando lentamente, a aparição inesperada de um ator famoso que não estava no resto do filme —, mas é uma reviravolta que não tem qualquer consequência para a história que acabamos de assistir, para os destinos dos personagens que estávamos acompanhando, e a conexão com o filme Corpo Fechado não parece especialmente lógica ou engenhosa a ponto de gerar uma grande satisfação. O filme simula muito bem a emoção de uma surpresa arrebatadora, inspirada por diversas cenas similares de outros filmes, mas não consegue dar substância para essa emoção. Algo bem diferente do incrível final de O Sexto Sentido (1999), por exemplo, onde tínhamos razões legítimas para ficarmos surpresos.

No livro The Romantic Manifesto, Ayn Rand faz uma comparação entre os estilos de literatura de Thomas Wolfe e Mickey Spillane que têm a ver exatamente com isso. Ela analisa trechos onde os dois autores fazem uma descrição da cidade de Nova York:

[...] os 2 artistas tiveram que recriar uma cena visual e transmitir certa atmosfera. Observe a diferença no método deles. Não há 1 único adjetivo ou palavra emocional na descrição de Spillane; ele não apresenta nada além de fatos visuais; porém ele seleciona apenas aqueles fatos e detalhes eloquentes que transmitem a realidade visual da cena e criam o clima de solidão.

Wolfe não descreve a cidade; ele não nos dá 1 única característica visual. Ele afirma que a cidade é “bonita”, mas não nos diz o que a torna bonita. Palavras como “bonita”, “espantosa”, “incomparável”, “excitante”, “adorável” são estimativas; na ausência de qualquer indicação do que foi que levou a essas estimativas, elas são afirmações arbitrárias e generalizações sem sentido.

O estilo de Spillane é orientado para a realidade e se dirige a uma mentalidade objetiva: ele fornece os fatos e espera que o leitor reaja de acordo. O estilo de Wolfe é orientado para emoções e se dirige a uma mentalidade subjetiva: ele espera que o leitor aceite emoções divorciadas de fatos, e que as aceite de segunda mão.

Spillane tem que ser lido em foco, pois a mente do próprio leitor é que tem que estimar os fatos apresentados e responder com as emoções apropriadas; se você o lê fora de foco, nada acontece — não existem generalizações soltas, pré-fabricadas, emoções pré-digeridas. Se você lê Wolfe fora de foco, você tem uma aproximação vaga, grandiloquente, sugerindo que ele disse algo importante ou inspirador; mas se você o lê em total foco, você percebe que ele não disse nada.

domingo, 23 de julho de 2017

Em Ritmo de Fuga

NOTAS DA SESSÃO:

- Horrível esse começo com o Ansel Elgort dançando no carro enquanto os amigos cometem o assalto (isso nem combina com o personagem, que é tão introvertido que mal abre a boca). O que há de engraçado no fato deles serem criminosos? Não há nenhum contexto que justifique esse humor por enquanto - exceto a noção de que, no cinema, bandidos são automaticamente "cool" por algum motivo.

- A perseguição de carro em seguida é muito bem feita. Ao longo do filme o diretor demonstra bastante estilo, domínio técnico - capricho na edição, nos movimentos de câmera, na integração entre música e imagem, etc. A direção parece o grande destaque do filme.

- Todo o cinismo tira um pouco da minha boa vontade (compromete o pilar da Benevolência). Primeiro o fato do filme glamourizar bandidos. Depois tem o lance da trilha sonora - o uso de músicas antigas alegres em tom sarcástico (como fazem em Guardiões da Galáxia, Perdido em Marte, etc).

- O romance do Baby com a garçonete (Lily James) é bem superficial, não chega a criar um novo interesse dramático. Os personagens não são muito bem desenvolvidos.

- Falta certo conflito na história. Baby está meio que sendo "forçado" a participar dos assaltos, mas ele não parece resistir à situação de nenhuma forma. Não parece ter um grande conflito moral (está até fazendo dinheiro com isso), ou um plano pra se vingar do Kevin Spacey, etc. Ele não tem um objetivo muito forte, apenas obedece o grupo. A história não é motivada por ele. As coisas que acontecem ao longo do filme (toda a trama dos assaltos) não são interessantes pra plateia, pois são apenas um serviço que o protagonista faz de forma apática, não por um desejo pessoal.

- Pelo menos mais pro final do filme ele começa a planejar escapar, o que cria um conflito mais interessante entre ele e os outros do grupo.

- SPOILER: Mas a maneira como ele é "desmascarado" é muito forçada (a história dele estar usando o gravador; depois associarem magicamente que a Debora da fita é a mesma Debora da lanchonete, etc).

- SPOILER: Forçado também o Jon Hamm ser baleado na lanchonete, não morrer, ainda conseguir alcançar o Baby, depois escapar do carro quando cai do prédio... E ele nem era o vilão do filme. Nem havia uma rivalidade pessoal entre ele e o Baby que dê intensidade e sentido pra esse confronto épico no fim (o Jamie Foxx e o Kevin Spacey eram muito mais inimigos do que ele).

- SPOILER: Baby rouba uma série de carros, assassina o Jamie Foxx, destrói um monte de propriedade... E ainda é pra acharmos que ele é um cara inocente que apenas se meteu numa confusão sem querer. Que bom que pelo menos ele vai preso no fim pra dar uma equilibrada na ética do filme.

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CONCLUSÃO: Filme ágil, bem editado, filmado, etc, mas que está mais preocupado em parecer "cool" do que em provocar emoções verdadeiras ou contar uma história interessante.

Baby Driver / Reino Unido, EUA / 2017 / Edgar Wright

FILMES PARECIDOS: Dois Cara Legais (2016) / Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) / Beijos e Tiros (2005) / Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994)

NOTA: 6.0

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Carros 3

NOTAS DA SESSÃO:

- As cenas de corrida no início não empolgam. O filme não consegue mostrar as qualidades que tornam McQueen o melhor corredor. Ele apenas faz "cara de força" e ultrapassa os outros carros facilmente. Em termos de ação as cenas também são chatas (até por esse ser um esporte meio monótono e previsível, tirando os acidentes).

- O filme insiste nessa ideia tradicionalista de que as técnicas do passado eram melhores, mas não explica por que, nem qual o problema com as técnicas atuais.

- Toda a história de superação do McQueen não funciona direito. Ele não tem uma motivação pessoal interessante, um desejo de realizar algo admirável que a plateia ainda não tenha visto (o personagem é desinteressante, comum, assim como os coadjuvantes). Quer apenas vencer por vencer, pra derrotar o adversário que é metido e agora passou na frente dele. É uma meta subjetiva, baseada numa rivalidade tola, sem carga emocional. E já vimos ele vencendo diversas vezes no começo do filme. Vê-lo fazendo cara de força mais uma vez no final e vencendo mais um adversário não é uma boa motivação pra plateia.

- O filme quer passar a ideia de que, pra vencer, você precisa praticar, treinar, se exercitar, buscar técnicas diferentes das do adversário. Mas não mostra nada que pareça minimamente plausível ou inteligente a partir disso. O espectador não absorve nenhum conceito ou informação que pareça ter qualquer utilidade na vida real. A única "sacada" é a velha ideia de que as técnicas tradicionais são as melhores. Que treinar com equipamentos high-tech não adianta: é preciso se sujar, correr na areia, na lama, na terra, ser "old school". Além disso não ser nenhuma novidade pro McQueen (ele já corria na terra na parte 2), é uma ideia sem sentido. Se ele quer ser o melhor em uma pista de asfalto, ainda mais num esporte tão tecnológico onde tudo é tão milimétrico e cada detalhe é tão decisivo, por que faz sentido ele correr em todo tipo de lugar exceto em pistas como as que acontecem a corrida? Não há muita inteligência na história.

- Meio falso a Cruz Ramirez ser a melhor treinadora do mundo sendo tão jovem e sem nunca ter competido 1 única vez na vida. Pelo menos é um drama mais forte que o do McQueen - dá pra torcer pra que ela explore mais o seu potencial, deixe de ser reprimida, etc.

- Filmes da Pixar mesmo quando são fracos costumam ser ter muitas ideias criativas na composição do universo dos personagens (por exemplo, como funciona o cérebro em Divertida Mente, etc). Esse aqui é bem baixo em criatividade, e o humor também é fraco.

- Frustrante a treinadora ganhar do McQueen nos exercícios. Quer dizer que mesmo com as melhores técnicas do mundo, McQueen não conseguirá se superar?

- SPOILER: Revoltante o McQueen se sacrificar no final e deixar a treinadora competir no lugar dele. Finalmente entendemos porque a história estava tão chata, pouco convincente: é que a intenção do filme nada tinha a ver com mensagens inspiradoras, com o desejo de estimular a autoestima das crianças, etc. No fundo é apenas mais uma animação infantil promovendo coletivismo, altruísmo, que estava apenas disfarçada de história motivacional. Por isso pouco importava o que McQueen fazia nos treinos, se eram coisas plausíveis ou não, pouco importava fazer o espectador torcer por ele. Toda essa pseudo-trama seria jogada fora no fim pra celebrar a Cruz Ramirez. No fim, o grande herói americano cede espaço para a mulher latina (Disney e suas agendas políticas "sutis")! É um insulto à inteligência da plateia dizer que uma novata que NUNCA competiu na vida entraria pela primeira vez numa corrida de verdade e venceria o adversário que nem o melhor do mundo conseguia superar.

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CONCLUSÃO: Uma das produções mais esquecíveis e desnecessárias da Disney / Pixar.

Cars 3 / EUA / 2017 / Brian Fee

FILMES PARECIDOS: O Bom Dinossauro (2015) / Detona Ralph (2012) / Turbo (2013)

NOTA: 4.0

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Fala Comigo

Longa de estreia do brasileiro Felipe Sholl sobre um garoto de 17 anos que se envolve com uma das pacientes de sua mãe (psicóloga) que tem mais do dobro de sua idade. O filme tem algumas boas performances e um enredo simples mas que se mantém estimulante do começo ao fim. Meu maior problema com a história (além de algumas manobras improváveis da trama) foi aceitar e torcer pelo romance entre os dois, que acaba de fato parecendo desequilibrado, imaturo, e me deixou torcendo mais pela mãe do garoto (Denise Fraga), que tenta impedir a relação, do que pelos desejos do casal. Desde o começo fica claro que o garoto apenas tem uma tara por mulheres mais velhas - ele não se apaixona especificamente pela personagem da Karine Teles por suas qualidades pessoais, por uma compatibilidade especial entre os dois que seja compreensível pra plateia. Fica difícil entender o que um garoto como ele veria numa mulher como ela. Em filmes sobre relações improváveis como essa, como A Primeira Noite de um Homem ou O Medo Consome a Alma, o parceiro tem sempre uma "virtude compensatória" que acaba ofuscando as diferenças, o que não vemos direito aqui. Ela, por outro lado, já se mostra uma mulher dependente, psicologicamente instável, que mergulha nessa nova relação de forma irresponsável simplesmente pra fugir da depressão e esquecer o ex-marido. Ou seja, se a intenção do filme era a de quebrar tabus, mostrar que toda forma de amor é bonita e válida, ele acaba não funcionando muito bem (pelo contrário, alguns detalhes sexuais acabam até beirando o repulsivo). Ainda assim é um filme que, com um mínimo de recursos, consegue tirar algumas boas reações da plateia.

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Fala Comigo / Brasil / 2017 / Felipe Sholl

FILMES PARECIDOS: Que Horas Ela Volta (2015) / Casa Grande (2014)

NOTA: 5.0 

sábado, 8 de julho de 2017

Homem-Aranha: De Volta ao Lar

NOTAS DA SESSÃO:

- Interessante a introdução - mostrar os trabalhadores que limparam os destroços em Nova York depois da batalha dos Vingadores, etc. Dá um toque realista que torna todo o universo Marvel mais convincente.

- Tom Holland convence no papel, é simpático, mas o personagem em si não é dos mais empolgantes (há alguns sinais do Herói Envergonhado). O maior esforço aqui está em mostrar como ele é comum, desastrado, um garoto como qualquer outro da plateia, e não alguém excepcional.

- Outro sinal de que o filme está querendo agradar os politicamente corretos são esses personagens coadjuvantes (como Ned) que parecem ter sido escalados só pra dar um ar "multicultural" pra produção - e não porque eles são particularmente carismáticos e convencem no papel.

- Referência a Curtindo a Vida Adoidado: se a ideia era que Peter Parker lembrasse Ferris Bueller, os produtores realmente não devem ter assistido ao clássico.

- Michael Keaton é sempre bom ator, mas o vilão em si é fraco. Por que ele vira do mal se era um cara normal no começo? Excesso de poder? Qual sua motivação? Não sabemos que perigo o Homem-Aranha corre. Parece um vilão de segunda-linha, e não uma grande ameaça pra cidade. E também não fica claro o que Peter Parker irá ganhar se derrotá-lo. Se irá de fato ser "promovido" a Vingador pelo Stark ou não, etc.

- O romance também é um tédio. A relação entre os dois não tem nenhum drama, não faz o espectador torcer, não acreditamos que Peter está de fato apaixonado por ela. Tudo que acontece no filme parece mecânico: Peter lutar contra criminosos, se apaixonar... Nada parece vir de dentro dele, de suas convicções, emoções, desejos...

- O traje do Homem-Aranha desenvolvido pelo Stark é ótimo. Divertido ele tentando usar a roupa no "modo avançado" e se confundindo com os novos comandos.

- Desnecessária e sem propósito toda essa sequência em que ele fica preso dentro do galpão. E a cena depois no obelisco é bem tensa e vertiginosa, porém é motivada por um acidente banal, desnecessário (não foi um evento provocado pelo vilão, algo necessário pra trama, etc).

- Fraca a cena de ação na balsa de Staten Island. Dá a impressão que quando o Homem-Aranha tenta ajudar, muito mais desgraça acaba acontecendo. Se o vilão fosse deixado em paz, ele simplesmente estaria traficando algumas armas. Mas quando entra o Homem-Aranha em ação, a cidade começa a ser destruída, a população entra em risco, etc. Sem falar que a ideia da balsa ser partida ao meio e depois remendada sem afundar beira o ridículo.

- Peter ser despedido do "estágio" pelo Stark é legal... Cria uma nova motivação, agora ele precisa se provar e tem a desvantagem de não ter mais o traje.

- SPOILER: Não faz o menor sentido o vilão ser justamente o pai da garota que ele está a fim. É uma coincidência totalmente aleatória que demonstra displicência dos roteiristas (a intenção de integrar o vilão com a vida pessoal de Peter é positiva, mas foi tudo muito mal feito). A maneira como o Michael Keaton descobre que Peter é o Homem-Aranha (na cena do carro) também é bem forçada.

- Que chatice Peter estar sempre decepcionando a menina que ele gosta, largar ela no baile sozinha, etc. Nem faz sentido ele descobrir algo no meio do baile e ter que sair, e daí ser atacado pelo Shocker.. Como o Shocker sabia o que ele iria fazer, etc?

- Não convence também que agora sem o traje, Peter iria conseguir vencer essas pessoas todas que nem antes ele conseguia derrotar. Que chances ele teria contra o Michael Keaton sem o traje? Por que ele vai ao encontro dele naquele galpão então? Óbvio que iria dar errado (como dá). É meio tolo também aquela roupa do Vulture (com tecnologia alienígena) não ter poder pra derrotar o Homem-Aranha, e ser mais prático derrubar o teto do galpão na cabeça dele (!).

- Confusa visualmente (e forçada) toda a sequência de ação no avião. Mais uma vez o Homem-Aranha provoca um desastre muito maior do que seria necessário pra combater o tráfico das armas. Sem ele o avião não teria caído.

- SPOILER: No fim o Michael Keaton não é pego por mérito do Homem-Aranha, e sim porque o traje dele dá um defeito inesperado.

- Parece que matar o vilão hoje em dia é muito cruel, então o Homem-Aranha tem que mostrar compaixão, tentar salvar sua vida, etc.

- SPOILER: O final é uma chatice. Não só o "romance" termina num tom desagradável, a menina sem entender porque Peter a tratou mal o filme inteiro... Como depois ele é promovido a Vingador pelo Stark, recebe tudo o que sonhava, mas daí rejeita o convite!!!!!! É patético. O filme quer mostrar que o herói é "maduro" por abrir mão do sucesso, por sacrificar sua glória em nome de "metas pessoais" mais nobres que nem entendemos direito quais são.

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CONCLUSÃO: "Padrãozinho" da Marvel prejudicado por alguns descuidos de roteiro e algumas das tendências ruins da atualidade.

Spider-Man: Homecoming / EUA / 2017 / Jon Watts

FILMES PARECIDOS: Capitão América: Guerra Civil (2016) / Homem-Formiga (2015)




NOTA: 5.5 

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Os 4 Pilares do Idealismo

(Capítulo 6 do livro Idealismo: Os Princípios Esquecidos do Cinema Americano)

O fato de um filme agradar e entreter ao espectador ainda não garante que ele seja Idealista, afinal pessoas com valores opostos terão prazer e se sentirão inspiradas por coisas opostas. O Idealismo não é uma teoria neutra moralmente, preocupada apenas com questões técnicas. Ele é baseado em valores específicos e tem um viés filosófico específico. Existem quatro elementos em particular, quatro valores, quatro emoções ou quatro experiências mentais que formam a base do Idealismo:

— Objetividade
— Autoestima
— Benevolência
— Excitação

Esses conceitos estão diretamente ligados à felicidade humana, e as melhores obras são aquelas que melhor conseguem concretizar esses valores e torná-los reais na consciência do espectador, pelo menos durante o consumo da obra. Cada um desses termos é na verdade uma espécie de conceito “guarda-chuva” sob o qual se agrupa uma série de outras ideias e valores relacionados. Vamos expandir cada um deles para podermos compreendê-los melhor:

1. OBJETIVIDADE

É a experiência de entender a realidade, de ver ordem no universo, estabilidade, estrutura, coerência, de ter confiança em nossas capacidades cognitivas, de ver a realidade simplificada, de saber a verdade por trás das coisas, o que nos dá um senso de controle e segurança (a realidade crua, não filtrada, sempre será complexa demais para gerar um estado de clareza mental no espectador). É a atitude de nunca aceitar a ignorância, a confusão e a incomunicabilidade como o estado natural das coisas. De nunca aceitar o subjetivismo como uma resposta, de ter respeito pela razão e pelos fatos.

Uma obra de arte pode proporcionar essa experiência principalmente através de seu estilo, pela maneira como ela apresenta seu conteúdo: mostrando uma trama clara, lógica, criando um universo crível, coeso, com regras bem estabelecidas, personagens que agem de maneira consistente, eventos que respeitam a lei da causalidade, através da precisão com que o artista se comunica com o espectador, conduz a atenção da plateia, da clareza com que ele apresenta ideias em sua obra, da objetividade das técnicas que ele usa para expressar valores, criar emoções, narrar a história, demonstrar seu talento, da maneira como ele retrata a realidade, o ser humano, tornando claro e ordenado aquilo que muitas vezes é caótico e confuso na vida real. Mas a objetividade pode ser transmitida também através do conteúdo, em histórias cuja essência da trama é a busca por conhecimento, por explicações, soluções — histórias de detetive, mistérios, filmes de tribunal, só para citar alguns exemplos.

Esse conceito de Objetividade é o valor mais básico do Idealismo, e é uma pré-condição para a expressão de todos os outros valores. É o que torna os outros três pilares possíveis e reais. Se você tentar projetar Autoestima, por exemplo, mas não tiver respeito pela realidade (as ações dos personagens não forem convincentes, não forem comunicadas com clareza), a emoção não será real para o espectador. É um valor mais epistemológico, enquanto os outros três são mais emocionais.

Objetividade é algo que tende a ser naturalmente respeitado por obras comerciais, sendo desafiado principalmente por filmes de arte, filmes Experimentais (ou por cineastas que simplesmente não tenham competência o bastante para se comunicarem objetivamente).

É por causa desse pilar que irei enfatizar a importância da clareza na direção cinematográfica, na condução da trama, e é por isso que o Idealismo é incompatível com o Experimentalismo, por exemplo, que pretende retratar a realidade de maneira ambígua, inconsistente, ou pior, criar um estado de caos na mente do espectador, diminuindo (em vez de aumentar) a confiança dele no poder de sua consciência.

2. AUTOESTIMA

É a experiência de se sentir importante, especial, capaz, orgulhoso, de obter respeito e ser reconhecido por suas virtudes, de ser o melhor em algo, de acreditar no seu potencial individual, de acreditar que a vida pode ser grandiosa, que o ser humano pode ser admirável, heroico. É a atitude de não aceitar a impotência e a fragilidade como a verdadeira essência do ser humano. A banalidade como a essência da vida. Não aceitar os próprios defeitos como coisas naturais, inevitáveis. De sempre desejar virtude, progresso, sucesso, de nunca se orgulhar de suas próprias falhas ou ser condescendente com elas.

Uma obra de arte não consegue de fato dar autoestima a uma pessoa, mas pode simular/incentivar essa emoção e, através do exemplo, dar estímulo e confiança para que ela a conquiste em sua vida pessoal. A obra pode criar essa emoção através do conteúdo, mostrando heróis, indivíduos admiráveis, contando histórias sobre conquistas, sucesso, eventos grandiosos, mas também através das virtudes demonstradas pelo artista na realização da obra em si — virtudes como domínio técnico, expertise, pioneirismo, originalidade, genialidade, ambição, que provocam um senso de admiração no espectador em relação ao trabalho diante de si (ou seja, mesmo uma obra que retrata personagens falhos pode estimular um senso de Autoestima nesse sentido).

É por causa desse pilar que vou criticar mais pra frente a tendência atual de anti-heróis na cultura popular, e é por isso também que sou crítico em relação a filmes Naturalistas, que não só costumam retratar personagens comuns, sem grandes virtudes, com vidas simples, como também não deixam transparecer grandes virtudes técnicas por parte do cineasta, que está mais interessado em retratar a realidade, passar uma mensagem social etc.

3. BENEVOLÊNCIA

É a experiência de acreditar que o universo é um lugar receptivo para o ser humano, harmonioso, onde a felicidade é possível e nossos valores podem ser atingidos. De acreditar que os homens podem ser perfeitamente morais, felizes, e que seus interesses não precisam estar em conflito. Que conflitos, a dor e o mal não são o estado natural da vida, e sim coisas a serem combatidas e superadas. É um certo respeito pela inocência da infância, pela visão daquilo que o mundo poderia ser (mesmo um filme com final triste ou um filme sobre um personagem decadente podem respeitar o valor da Benevolência, desde que a culpa pelos resultados trágicos recaia sobre as escolhas erradas dos personagens, e não sobre a vida em si, sobre a natureza humana, como se fosse algo natural e inescapável).

Isso pode ser vivenciado através do conteúdo — em histórias em que o bem é retratado positivamente e o mal negativamente, em que os personagens têm livre-arbítrio e o poder de atingir seus objetivos, em que vemos relacionamentos positivos e harmoniosos entre os personagens (em vez de relações de cinismo, desconfiança, desprezo mútuo, incompatibilidade, que é o que predomina hoje), em que os heróis são puros moralmente (não aceitam o mal e a corrupção em si mesmos), nunca desejam o mal ou fazem algo para prejudicar pessoas inocentes. Mas a Benevolência também pode ser sentida através do estilo do artista, em sua atitude geral em relação ao público: na escolha de mostrar beleza, no desejo de se comunicar, falar de assuntos que lhe interessam, no desejo de provocar emoções positivas e inspiradoras, agradar aos sentidos etc.

É com base nesse pilar que o Idealismo se opõe a filmes com um Senso de Vida malevolente, filmes que glamourizam a violência, o sofrimento, que mostram apenas relacionamentos conflituosos, situações desagradáveis, que enaltecem personagens corruptos e imorais, que insinuam que o ser humano é perverso por natureza, que a vida é essencialmente trágica, filmes que são feitos para exteriorizar os sentimentos destrutivos do artista etc.

4. EXCITAÇÃO

É o desejo de entretenimento, escapismo, diversão, prazer, variedade, estímulo, emoções intensas. É a experiência de fugir do tédio, da monotonia do dia a dia e dos estados normais de consciência, das regras e dos deveres irracionais impostos pelos outros e pela sociedade. É o desejo de tornar a vida interessante e prazerosa. É o que nos faz buscar risada, aventura, catarse, fantasia, êxtase, adrenalina, terror, choro, surpresas. É a atitude de não aceitar o tédio, o dever, a monotonia ou a melancolia como os estados naturais e inescapáveis do ser humano. De considerar a felicidade o estado de consciência mais elevado e desejável. De não considerar uma virtude a capacidade de reprimir seus desejos, de sacrificar seus prazeres.

Isso pode ser proporcionado pelo conteúdo de uma obra — por exemplo, em filmes em que os personagens passam por grandes aventuras, situações extraordinárias, divertidas, vivem momentos emocionantes, incomuns; mas também pelo estilo, pelo método com que a história é contada: se há suspense, envolvimento, surpresas, emoções intensas, se o ritmo da história é empolgante, se há um clímax satisfatório (ou seja, mesmo um filme sobre uma história trágica ou um monólogo podem ser Excitantes dependendo de como eles forem executados).

É do pilar da Excitação que vem a necessidade de uma boa narrativa, de uma trama bem planejada, de clímax, de Set Pieces e Ascensão (que discutirei mais tarde), e é por isso também que o Idealismo se opõe a filmes Naturalistas, Experimentais, sem trama, ou filmes que colocam a função social/educativa da obra acima do aproveitamento da plateia.

Assim, quando digo que um filme é Idealista, é porque ele foi bem-sucedido em projetar esses quatro valores, todos eles indispensáveis. É aceitável alguns desses valores serem mais dominantes, e outros menos dominantes numa obra em particular, ou em um gênero em particular, mas todos eles precisam estar presentes em algum nível. Se algum pilar for totalmente derrubado e rejeitado pelo artista, os outros começarão a desmoronar também — todas essas ideias estão interligadas, portanto é impossível proporcionar uma dessas experiências sem começar a proporcionar algumas das outras. Por exemplo: para criar um personagem admirável e inspirar Autoestima no espectador, é preciso primeiro que exista o valor da Objetividade na obra (você só pode se sentir inspirado por ações e valores que você possa observar, em que possa acreditar, e que estejam sendo comunicados racionalmente pelo artista). E ao se estimular esse sentimento de Autoestima na plateia, haverá também um elemento de Benevolência na intenção da obra.

EXEMPLO DOS 4 PILARES EM AÇÃO

Em Uma Linda Mulher (1990), um dos momentos mais tocantes é quando Vivian (Julia Roberts) e Edward (Richard Gere) dão o primeiro beijo. Como Vivian é uma prostituta e Edward um empresário bem-sucedido, há um senso de desconfiança e desesperança ao longo da história, pois apesar de eles gostarem um do outro e de Vivian provar ser uma mulher de bom caráter, as diferenças sociais acabam sendo um enorme obstáculo e parecem tornar um relacionamento entre eles algo altamente improvável. Então, quando os dois finalmente quebram o tabu do beijo (não beijar na boca tinha sido uma regra estabelecida por Vivian no início da história), é o pilar da Benevolência que é concretizado e que torna a cena emocionante — um senso de que apesar de todos os obstáculos e conflitos, a felicidade será possível e os objetivos dos personagens poderão ser atingidos. Reparem que, se a regra do beijo não tivesse sido estabelecida claramente antes, e se o obstáculo social não parecesse grave o suficiente à plateia, a cena não causaria nenhuma emoção — é nesse sentido que a Objetividade é indispensável para projetar qualquer tipo de valor.

Embora essa cena em particular foque o valor da Benevolência, os outros valores ainda estão presentes em segundo plano: o fato de Vivian ser uma mulher belíssima e Edward ser um homem extremamente bem-sucedido, charmoso, reforça um sentimento de Autoestima (contraste isso com filmes Naturalistas que mostram romances entre pessoas comuns). A intensidade da paixão entre os dois e o fato de a cena ser um momento importante da história, construída como um pequeno clímax — uma cena bem orquestrada, com começo, meio e fim, com uma trilha eficaz —, gera também uma experiência de Excitação. Em outros momentos marcantes do filme, serão valores diferentes que vão estar em primeiro plano, como na clássica cena da “vingança” em que Vivian vai fazer compras na Rodeo Drive cheia de dinheiro, e resolve passar na loja onde ela tinha sido rejeitada antes pela atendente por aparecer malvestida. A ideia de ela estar na Rodeo Drive fazendo compras, sem limite de gastos, extremamente elegante, e ainda dar o troco na funcionária cria uma combinação perfeita de Excitação e Autoestima que torna a cena um dos pontos altos do filme (sempre com o auxílio da música: se, na cena do beijo, o tema calmo e romântico de James Newton Howard estimulava o sentimento de Benevolência, na cena das compras, a canção Pretty Woman de Roy Orbison já é usada para reforçar a Excitação e a Autoestima).

É sempre através de elementos concretos (ações específicas, eventos, objetos, palavras, sons, atitudes) que esses pilares são concretizados em uma história. A “Autoestima” não pode existir isoladamente; apenas através de coisas específicas apresentadas no filme que irão transmitir essa ideia e gerar a emoção correspondente no espectador. Como Rand diz no livro The Art of Fiction, um escritor precisa aprender a “concretizar suas abstrações” para que ele consiga construir uma trama e expressar os temas da história. Ele tem que se tornar fluente nessa língua: olhar para um elemento concreto e saber identificar os valores abstratos que este projeta, e ao mesmo tempo pegar um conceito abstrato como “Autoestima” e saber que elementos concretos ele pode usar para materializá-lo numa obra.

Recentemente no meu blog, um leitor veio me perguntar intrigado sobre um comentário que eu tinha feito na crítica do filme Intocáveis (2011), na qual observei que o filme usava “voo”, “música alegre” e o “poder da cura” de forma estratégica na história, e que embora Intocáveis não reflita 100% o Idealismo, esses elementos estavam presentes em muitos filmes de que eu gosto. Intocáveis não é uma fantasia, um filme explicitamente escapista, mas de certa forma ele está muito próximo de filmes como Mary Poppins (1964) ou E.T.: O Extraterrestre (1982), tramas em que figuras “mágicas” surgem para transformar a vida do protagonista, trazendo diversão, magia, aventura, e ajudando ele a resolver seus problemas. Esse tipo de figura costuma sempre provocar experiências ligadas aos pilares da Benevolência e Excitação, e é muito comum esses três ingredientes estarem presentes na história:

Música alegre: cria um senso de otimismo, felicidade, diversão (Benevolência + Excitação).

Voo: projeta um senso de liberdade, esperança e fantasia (Benevolência + Excitação, lembrando que fantasia cai sempre dentro do “guarda-chuva” da Excitação).

Poder da cura: cria um senso de esperança, superação de problemas, além de fantasia no caso de curas sobrenaturais (Benevolência + Excitação).

Em Intocáveis, o personagem de Omar Sy é um enfermeiro que vem tomar conta de um tetraplégico, então o tema de cura é o mais evidente (ele usa até maconha como instrumento). A música alegre vem em cenas como a de Sy dançando Boogie Wonderland para entreter Philippe, e o voo é realizado na cena do paraglider. Já num filme como E.T., o personagem literalmente tem um poder mágico de cura, e literalmente faz o protagonista voar. Ele não traz música a Elliott, mas o fantástico Flying Theme de John Williams está diretamente associado a ele, então, do ponto de vista da plateia, E.T. é sim um vetor para música alegre (surpresa: no fundo, é a plateia que E.T. veio “curar”). Mary Poppins traz música, está cantando o filme todo, e surge voando já na primeira cena. Ela não tem o poder da cura como E.T., mas ao dar às crianças uma “colher de açúcar para ajudar o remédio a descer”, ela acaba evocando um pouco este tema. Nem sempre essas ideias aparecem juntas, e isso não é nenhuma regra, apenas um padrão curioso que ilustra como os pilares do Idealismo se manifestam através de elementos concretos numa história. Em Titanic (1997), por exemplo, Jack é a figura “mágica” que vem solucionar os problemas de Rose. Ele começa já a salvando de um suicídio: o poder da cura. Mais tarde ele a leva para dançar e se divertir com a música irresistível da terceira classe. E quando ele a conduz para a proa do navio e abre os braços dela feito asas, Rose exclama: “Jack, eu estou voando!”. Em A Noviça Rebelde (1965), Maria traz música alegre a uma casa onde a música tinha sido explicitamente banida. Ela não cura ferimentos físicos, mas cura feridas emocionais de diversos personagens: os traumas do Capitão Von Trapp ligados à morte da esposa, as dores das crianças que se sentem rejeitadas e oprimidas pelo pai, a dor de Liesl quando tem seu coração partido. Maria não voa, mas está sempre “escalando as montanhas”, subindo colinas, e no final a família é salva justamente por causa das montanhas de Maria — o filme termina com todos chegando ao cume, se aproximando do céu, do “divino”, e a câmera vai subindo sem parar, levando o espectador em direção às nuvens.

Uma coisa que achei útil no passado foi criar tabelas no computador e ao longo do tempo ir listando dezenas de exemplos concretos para cada um dos valores do Idealismo (e outros valores também). Na tabela de Autoestima, por exemplo, fiz diversas colunas, cada uma para uma categoria diferente de “concreto”: ações, pessoas e profissões, lugares, elementos da natureza, corpo e expressões físicas, roupas, objetos, sons, elementos visuais etc. Na coluna de elementos visuais, por exemplo, coloquei o termo “silhueta”, pois muitas vezes mostrar um personagem em silhueta é uma forma eficiente de fazê-lo parecer grandioso, icônico, e reforçar a ideia de Autoestima. Na coluna de elementos da natureza, coloquei termos como “águia”, “leão”, “montanhas altas”, “um pôr do sol espetacular”. Na coluna de ações e eventos, incluí “passar em uma audição difícil”. Sob a coluna lugares, coloquei “uma mansão”. Na coluna de construção de personagem inseri: “ter um talento oculto”. Em pessoas e profissões incluí “presidente”, “um astro da música”.

Já na tabela de Excitação, coloquei na coluna de ações e eventos coisas como “aparição de óvnis”, “voar” e “desastres naturais”. Na coluna de lugares, listei locações como “parques de diversão”, “o velho oeste”, “o espaço”, “uma praia ensolarada”. Em objetos coloquei “globo de espelho”, “máscaras, perucas e disfarces”, “fliperama”. Em comidas incluí “pizza”, “sorvete”, e por aí vai.

Este é um ótimo exercício não apenas para espectadores que queiram identificar mais facilmente os valores por trás de uma obra como também para artistas, podendo servir de ferramenta valiosa no processo de criação.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Meu Malvado Favorito 3

NOTAS DA SESSÃO:

- Logo de cara fica clara a baixa pretensão artística / criativa do filme. Ideias fracas como a do chiclete gigante que faz levitar o navio; o desenvolvimento tolo da trama (a maneira como o vilão rouba o diamante); músicas pop ou cenas de dança que surgem aleatoriamente só pra manter um clima animado, etc.

- A produção é vazia de valores de entretenimento. Nem os Minions que são divertidos têm grandes momentos de humor, piadas bem elaboradas. E o filme é todo meio contaminado pelas tendências culturais atuais que são adversas ao Idealismo. Eles tentam criar um entretenimento inteiro evitando justamente as emoções que são a alma do entretenimento, e que são consideradas tabu por certos grupos, como a ideia de autoestima. É mais ou menos o que digo no texto Idealismo Corrompido. Mas aqui me parece mais uma espécie de veganismo cultural (ideia pra um futuro post). Uma tentativa de alimentar o espírito das crianças mas proibindo as substâncias que realmente proporcionariam prazer e satisfação. "As crianças não devem se sentir especiais ou importantes, e elas também não devem ter ambição nem sonhar muito alto, então vamos garantir que não haja nenhum personagem atraente no filme, e que as crianças em particular sejam fisicamente feias na história, e que ninguém tenha um humor inteligente demais, e que o heroísmo retratado na aventura não seja convincente nem inspirador, apenas uma ação tola e irreal, e vamos inserir uma sequência que nada tem a ver com o filme onde a filha do Gru aprende que unicórnios não existem, só pro público infantil já ir se acostumando com desilusões e a reprimir seus desejos."

- Claro que os anos 80 têm que ser retratados de maneira cínica pelo filme (afinal, nada mais oposto ao "veganismo cultural" que eles propõem do que os anos 80) - tudo ligado à época parece meio patético e está associado ao vilão. O lado bom é que acabam tocando algumas músicas boas no filme (embora sob uma luz feia).

- Falta um mínimo de bom senso e plausibilidade na história. Que história é essa de ter que escalar a torre até um cubo mágico gigante no meio do mar? Depois que eles fogem com o diamante, como é que o vilão escapa do chiclete, coloca a máscara da Lucy, pega um helicóptero e consegue enganar o Gru em tão pouco tempo? É um tipo de niilismo que só pode fazer mal pro cérebro de uma criança.

- No final temos os anos 80 na forma de um grande monstro que volta pra aterrorizar Hollywood, jogando chiclete em tudo que é lugar e querendo mandar a cidade pro espaço (chiclete é tão doce e divertido que só pode ser obra do demônio).

- Qual o sentido dessa "dance fight" no final? Não tem o menor sentido o Gru propor uma dança na hora do confronto - é só mais uma oportunidade de colocar dancinhas e músicas divertidas no filme pra prender a atenção do público de forma imediatista e vulgar, já que não há emoções mais sólidas sustentando a história.

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CONCLUSÃO: Mais um caça-níqueis esquecível da Illumination Entertainment.

Despicable Me 3 / EUA / 2017 / Kyle Balda, Pierre Coffin

FILMES PARECIDOS: A Era do Gelo: O Big Bang (2016) / Angry Birds: O Filme (2016) / Minions (2015) / Meu Malvado Favorito 2 (2013)

NOTA: 4.0